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Carlos Paredes, José Afonso, Luiz Goes – “Carlos Paredes, José Afonso, Luiz Goes”

pop rock >> quarta-feira, 14.04.1993


O QUE FAZ FALTA É INFORMAR A MALTA

CARLOS PAREDES, JOSÉ AFONSO, LUIZ GOES
Carlos Paredes, José Afonso, Luiz Goes
CD Emi – Valentim de Carvalho



Reedição do álbum lançado pela primeira vez em 1956 e posteriormente reeditado em 1983, reunindo três ilustres representantes da tradição coimbrã e nomes míticos da música popular portuguesa. “Coro dos Caídos”, na versão vocalizada (existe outra, instrumental, gravada por imposição da censura, durante o período salazarista), “Maria” e “Canção do Mar” são as restantes canções do autor de “Cantigas de Maio”, “Venham Mais Cinco” e “Traz Outro Amigo Também” (a totalidade da sua discografia foi reeditada o ano passado) aqui incluídas, trazendo consigo a voz, a guitarra e a inspiração deste músico revolucionário, até agora apenas disponíveis em edições (esgotadas) em “single”. As restantes faixas ficaram reservadas para o fado de Coimbra (género que José Afonso também cultivou, antes de se dedicar à balada) de Luiz Goes e para a saudade que a guitarra de Carlos Paredes sempre transporta. O primeiro faz-se representar por “Alegria”, “Homem, só meu irmão”, “Boneca de trapo” e “Canção do regresso”, acompanhado à guitarra por João Bagão e Aires de Aguillar e, à viola, por António Toscano, Fernando Neto e João Gomes. O segundo empresta a sua genialidade a “Variações em Ré Maior”, “Divertimento”, a mítica “Canção dos Verdes Anos”, “Melodia nº 2” e “Fantasia”. Sobra de boa música neste apanhado de talentos o que falta em informação e contexto. Nem uma nota explicativa, uma abebiazinha, nada. Somos (nós, no jornal) presenteados, na folha promocional, com meia dúzia de linhas que nada dizem sobre as intenções e os objectivos do disco em questão e, em adenda, um enigma, através da referência a “um trecho antológico do reportório coimbrão, pela primeira vez incluído em disco após a sua edição em ‘single’ talvez há vinte anos atrás”. Em que disco? Neste não, de certeza. E talvez há 20 anos, não há a certeza? Ainda por cima, o citado “trecho antológico” dá pelo nome de “Balda de Coimbra” (apenas conhecíamos a balda), numa hipotética alusão ao estilo de vida das célebres repúblicas coimbrãs. Ou à maneira como foi lançado este disco. O melhor é ficarmo-nos pela música e esquecer o resto. (8)

Amália Rodrigues – “Coimbra Homenageia Lisboa, No Casino Estoril – Amália, Doutora Do Fado”

Secção Cultura Segunda-Feira, 07.10.1991


Coimbra Homenageia Lisboa, No Casino Estoril
Amália, Doutora Do Fado


Coimbra homenageou Amália, nomeando-a doutora “honoris fadus”. A serenata de homenagem deu para tudo: espetada de lagosta, Mozart, “topless” e fado. O fado é que induca, a lagosta é que instrói, lá diz o povo. Amália soube, como sempre, ser rainha, na noite em que trocou o xaile pela capa estudantil.



Noite de gala, anteontem à noite, no Casino Estoril. Noite do “doutoramento” de Amália Rodrigues, distinção que lhe foi concedida pelos estudantes de Coimbra, mais concretamente pela Associação Académica desta cidade. O fado de Coimbra prestava assim tributo ao seu congénere lisboeta, na voz e na pessoa da sua pironisa. A festa incluía jantar, meninas em “topless” a dar vivas a Mozart, e fado, como não podia deixar de ser.
Animaram-se os espíritos, logo à entrada do auditório do casino, ao depararem com um grupo de gentis meninas de Coimbra que, de saia negra e curta, distribuía simpatia e os convidados pelos respectivos lugares. Coimbra dos amores, diz a canção. Caso para dizer: amores platónicos, os quais, como tónicos que são, servem para abrir o apetite.
Satisfeitos os olhos, foi com uma enorme dose de curiosidade que nos preparámos para enfrentar o segundo ponto do programa: “jantar” (o primeiro tinha sido uma “bebida de boas vindas”). O dito consistiu num prato de lagosta mais outro de carne de vaca. Durante a refrega com os comestíveis, um agrupamento de música de câmara, primeiro, e a orquestra privativa do casino, depois, fizeram-se ouvir suficientemente alto para disfarçar o ruído da mastigação. Faça-se-lhes justiça: tinham menos nervo que a carne. O contraponto líquido cumpriu o que geralmente se lhe pede nestas ocasiões: alegrar os espíritos e avermelhar as bochechas. A propósito, o Presidente da República era suposto estar presente. Se estava, não deu de si. Pelo contrário, foi notada a presença de outro presidente, da Federação Portuguesa de Futebol, o dr. João Rodrigues, aparentemente sem problemas de regressar a Lisboa a tempo de votar.
Seguiu-se o show “Viva Mozart”. Muita luz, excelente coreografia, o assassínio sistemático e bem-humorado da música daquele compositor e, sobretudo, muitas maminhas ao léu, ao nível das melhores exposições artístico-anatómicas que o “Moulin Rouge” ou as “Follies Bergères” têm para oferecer. A maminha nacional é, de resto, como o resto do país – abana, mas não cai. Destaque para dois quadros realmente fora-de-série: um em que um corpo de mulher se metamorfoseia em diversos instrumentos musicais, manuseados pelo seu parceiro masculino. Outro, composto por um ser monstruoso que se contorce sobre o palco, assumindo formas grotescas entre o fálico, o intestinal e o cano de esgoto.

“Quem Me Dera Estar Contente”

Terminada a paródia passou-se ao lado sério do espectáculo, justificativo da designação “Serenata a Amália”. Altura para se cantar o fado de Coimbra. Feito silêncio, gemeram as guitarras e as violas, a acompanhar as vozes de Almeida Santos, Luís Góis, Camacho Vieira e Costa Brás, entre outros, vestidas de negro, trespassadas de saudade. Abriu-se o espaço em outro espaço, num beijo furtivo, na serenata à silhueta recortada contra a janela da noite.
Dona Amália subiu por fim ao palco, no momento por todos ansiado.m Cheia de medo, como é seu hábito – “dá-me vontade de chorar, não posso continuar”. Mas continuou, agradeceu, balbuciou e cantou o fado, o seu fado. Cantou primeiro um fado de Coimbra, receosa – “vocês têm todos melhor voz” – com a letra a ser-lhe segredada no próprio instante ao ouvido. Depois um fado lisboeta, da cidade que lhe é alma e destino.
Antes foram as cerimónias e a praxe académica. Amália, nomeada doutora “honoris fadus”, “punida” em seguida, na condição de “caloira estrangeira”, com as palmadas de uma colher de pau, por não ter vestido a capa segundo as regras e por ter sorrido ao venerável presidente da Associação. Por dentro dos sorrisos, invisíveis aos olhos ofuscados pela euforia e pelo ritual dos gestos, sentimentos mais profundos, que as palavras de Almeida Santos inscritas no programa sintetizam: “Nesta homenagem à grande Amália há, implícita, uma homenagem a tudo o que Amália simboliza: as almas sensíveis, os corações generosos, a Lisboa e o Portugal que nela se revêem”. Amália, em noite de serenata, acabou a cantar em conjunto com estudantes e doutores a “balada da despedida”: “Quem me dera estar contente, enganar a minha dor”.

Madredeus – “Os Madredeus No Coliseu Dos Recreios, Em Lisboa – Canções Do Quinto Império” (concerto)

Secção Cultura Quinta-Feira, 02.05.1991


Os Madredeus No Coliseu Dos Recreios, Em Lisboa
Canções Do Quinto Império


Para os Madredeus foi a consagração. Para os milhares de pessoas que encheram o Coliseu, a oportunidade de reencontro com uma música que aprenderam a amar. Teresa Salgueiro cantou como só os anjos sabem. Carlos Paredes juntou-se ao grupo para “mudar de vida” e seguir com “o navio” pela noite fora.



Coliseu dos Recreios, em Lisboa. Noite de terça-feira. Sala a abarrotar de gente de todas as idades, ansiosa para assistir à prova de fogo da banda de Teresa Salgueiro, Pedro Ayres Magalhães, Rodrigo Leão, Francisco Ribeiro e Gabriel Gomes – os Madredeus – a meio de uma digressão iniciada em Março na cidade de Braga e que os levará, já dia 4, ao Porto, e, no Verão, aos Açores, Rio de Janeiro, Florença e Macau.
Sobre o palco, desenhado pelo escultor António Campos Rosado, uma escada e uma casa, pequena, sem paredes. Escada por onde se sobe para chegar ao céu. Cá em baixo, na terra, a casa, transparente, portuguesa, com certeza. Iluminação discreta e eficaz. A luz colorida contrastando com o negro das vestes dos músicos. Som límpido e potente, permitindo ouvir distintamente as palavras, projectando bem alto as notas e a clareza dos arranjos, na nave majestosa do Coliseu. Acontecimento único que a televisão, felizmente, gravou.

A Voz E A Guitarra

A sequência de canções seguiu o alinhamento prometido, a mostrar que nada foi deixado ao acaso. “Matinal”, “A Saudade”, “A Península”, “Cuidado” e o hino “O Ladrão”, num ápice, conquistaram o público. Ovações estrondosas, estrelinhas e isqueiros acesos, palmas de acompanhamento, a festa, enfim. E no entanto a música dos Madredeus sabe guardar um espaço de silêncio. As canções de Pedro Ayres são capazes de mover multidões ao mesmo tempo que parecem ter sido compostas especialmente para cada um de nós. Música fraterna e solidária. Esquece-se a vida a fingir, o ruído da turba, a espuma dos dias e fica-se sozinho. Na companhia extasiada de uma voz transcendente ao corpo feminino que a sustenta, a voar nas cadências, nossas desde sempre, de um violoncelo, um teclado, uma guitarra acústica e um acordeão. O uno e o múltiplo, juntos na mesma pessoa e na mesma música. “Existir” no Quinto-Império.
Quando Carlos Paredes, acompanhado por Luísa Amaro, tímido como sempre e é característico da sua pessoa excepto na música que faz, subiu ao palco, sentiu-se no ar a emoção dos grandes momentos. Só, dobrado sobre o seu corpo verdadeiro – a guitarra – interpretou “Mudar de Vida”. A seguir, já acompanhado por todos os músicos da banda, improvisou ao sabor do “Canto de Embalar” (música sua, letra de Pedro Ayres) e de “O Navio”. Retirou-se debaixo de uma monstruosa salva de aplausos. Haveria de voltar. Antes do intervalo, a extroversão e alegria de “O pastor”, canção vivida pelo crítico de forma apocalíptica, rendido à força da música e ao magnetismo da multidão, enquanto um “arrumador de retardatários” lhe apontava um foco de lanterna aos olhos e berrava obscuras séries algébricas. Aos ouvidos aturdidos chegavam, incertas, as palavras do poema: “ao largo ainda arde a fila L, números 22 e 24, a barca da fantasia / e o meu sonho mostre-me os seus bilhetes por favor acaba tarde / acordar é o lugar ao lado que eu não queria”.
“As Ilhas dos Açores”, instrumental de colorações eruditas, abriu serenamente a segunda parte do espectáculo. Rui Machado, poeta açoriano, escreveu a propósito: “Na ilha o (deus do tempo dorme entre pedras e flores”. Ilhas dos Açores, do Espírito Santo, Ilha dos Amores. Depois, sempre em crescendo, as canções guardadas no coração: “Vontade de Mudar”, a suite “A Sombra” / “Solstício” (instrumental com novo e inspirado arranjo) / “Estrada do monte” e finalmente a explosão da “Vaca de Fogo” – vaca deleite.

Interpretação Sublime

Carlos Paredes regressou no “encore”, para a segunda interpretação da noite de “As Ilhas dos Açores”, fazendo contrastar o tom arrebatado e as cicatrizes da sua guitarra com a fluência e o vigor jovial dos outros instrumentos. Já no segundo regresso ao palco, Teresa Salgueiro, iluminada por um foco intenso de luz branca e bem apoiada pela guitarra de Pedro Ayres e o violoncelo de Francisco Ribeiro, interpretou de forma sublime, “O Menino” – momento de pura religiosidade, com a multidão, suspensa do canto de uma mulher, escutando-se e vivendo-se a si própria no corpo crístico do infante.
“Mindelo” e de novo “Vaca de Fogo” fecharam em apoteose um concerto inesquecível. Depois da noite de anteontem a música portuguesa ficou um pouco mais próxima de Deus.