cultura >> sábado >> 02.07.1994
Amália Rodrigues Celebra Aniversário Televisivo
Prendas Em Directo
Parabéns , Amália! Com o patrocínio da Quatro. Amália fez ontem 74 anos de idade. A televisão da Igreja resolveu celebrar, organizando uma festa, mais uma, de homenagem, no Largo do Município. A diva apareceu na varanda do edifício camarário, aguentou estoicamente o estendal de banalidades, ensaiou uns passos de dança e tentou mesmo puxar pela voz, dando corda a uma tuna estudantil.
Tudo começou por volta das 22h, com o desfile dos fadistas, juniores e seniores, vencedores do Grande Prémio do Fado de 1993 e 1994. Ficaram na memória a voz maravilhosa de Alda Isabel, com 13 anos e uma voz como não há muitas, e na retina o alucinante microvestido negro, acompanhado igualmente por uma bela voz, de outra concorrente sénior, que nos lembramos de ter visto na televisão, mas de quem o vento levou o nome.
A partir das 23 h, a TVI passou a transmitir o acontecimento em directo, com a apresentação de Maria de Lima e Tó Zé Martinho. Aliás, estava tudo montado para o espectáculo de televisão, com as cerca de mil pessoas que se aguentaram estoicamente de pé e ao frio no local a serem desviadas para os lados e para trás do palco.
Foi tudo um bocado triste de se ver. Aos fadistas seguiu-se a Tuna Estudantina Universitária de Lisboa, com os seus temas popularuchos aos quais Amália, nessa altura já de pé na varanda da Câmara, procurou responder, lançando umas notas soltas ao vento e bailaricando com aquela desafectação que se lhe conhece.
A “gaffe” da noite veio com um indivíduo já um tanto ou quanto bebido que, ouvindo à sua maneira os primeiros acordes de acordeão, num dos temas da tuna, logo exclamou em júbilo: “Olha, é aquela do bacalhau!”
Noutro ponto da praça, um casal de baixa estatura chamava as atenções pela maneira como resolveu o problema da falta de estatura, graças a um engenhoso dispositivo de espelhos, construído segundo os princípios ópticos do periscópio, que permitia ver tudo o que se passava por cima das cabeças.
Os inevitáveis parabéns, entoados de forma espontânea pela pequena multidão, apanharam desprevenida a Quatro, logo por azar, durante um dos vários intervalos publicitários da noite. Mais tarde, “televisão oblige”, lá se forjaram uns novos parabéns, tecnicamente mais perfeitos, registados para a posteridade, com bolo de velas e tudo onde era bem visível o símbolo da Quatro.
Houve ainda uma serenata de fados por antigos estudantes de Coimbra e muitos agradecimentos recíprocos. O desfile da marcha popular da Madragoa, vencedora deste ano, aconteceu a horas impróprias, perante uma assistência diminuta que nessa altura, cumpridas as obrigações da efeméride, rumara já na maior parte para vale dos lençóis, que o dia seguinte era de trabalho.
Num golpe tecnicamente prodigioso, a TVI superava o paradoxo do espaço-tempo e transmitia, com a indicação “em directo” ao canto do ecrã, uma retrospectiva das marchas, com Beatriz Costa e Vasco Santana a entrarem ao vivo e em directo na casa dos telespectadores.
E Amália? Amália merece tudo, por todas as razões. Há, aliás, duas Amálias. A Amália, pessoa simples que não veste o verniz do estrelato, que baila e chora por tudo e por nada. Uma Amália que não é símbolo nem imagem de nada senão dela própria, e a Amália que vive em nós, ideal e mitificada. E, no meio, a sua voz, oferenda dos deuses. Não interessa saber qual das duas é a mais verdadeira. Há uma pureza intrínseca em cada uma delas. A pureza onde se revê todo um povo e o faz venerá-la para além do fado, do negro fado de se ter nascido português.
Está certo, e ela não se importa, que lhe chamem símbolo vivo de Portugal. Há nela uma certa pieguice, um sentido trágico da vida e uma falta de noção de grandeza, que é em si já uma forma de grandeza, que definem bem a nossa original maneira de ser. Mas, mais importante que os nossos sonhos e a nossa paralisia disfarçada com as bandeiras de um qualquer império que há-de vir, se vier, é que Amália teve e tem a coragem de ser apenas ela própria. E de se ter abandonado até ao fim e enquanto pode a um destino e a uma vocação maiores que ela e que nós. Amália foi, é e será somente Amália. Sem fingimentos, sem maneiras falsas nem intermediários.
Por isso é bom que Amália chore sem razão, só porque sim, como uma criança que não perdeu a capacidade de se emocionar consigo própria. A água cura. A água das lágrimas sem propósito de Amália cura-nos. Parabéns, Amália!