Arquivo da Categoria: Críticas 2000

Mice Parade – “Collaborations”

20 Outubro 2000
POP ROCK – DISCOS


Mice Parade
Collaborations (7/10)
Bubble Core, distri. Symbiose



Para entrarmos a 100 por cento na música dos Mice Parade (um sexteto formado por gente conhecida do pós-rock como Jim O’Rourke e Doug Sharin) é preciso afastarmo-nos para o canto mais escuro da mansão assombrada por Freddy Kruger e aí juntarmo-nos ao grupo de crianças que recitam obscuras “lengalengas” aos fantasmas. “Collaborations” apresenta-se sob a forma de três longos temas instrumentais, “The fall from Andalucia”, “Rela circle” e “Mystery brethren vironment”, mais duas remisturas deste último. “Andalucia” integra-se na geografia geral do pós-rock, com batida sincopada, flocos de vibrafones e uma guitarra de flamenco a justificar o título. Podia passar por um tema dos Gastr Del Sol. “Rela circle” é mais ambiental, colando efeitos de reverberação ao vibrafone e à guitarra acústica mas sem alcançar qualquer lugar de relevo. “Mystery…” quase amedronta e é nele que, sobre vibrafones minimalistas, se fazem ouvir as vozes das criancinhas aprisionadas na mansão do homem das garras de metal. Virginia Astley podia ser uma delas. Mas, ai dela se o fosse, pois na parte final do tema vem uma guitarra elétrica ”hardcore” com dentes a devorar a delicada cançãozinha. Das duas remisturas, a primeira, assinada por Jim O’Rourke, é a mais interessante, ao transformar o tema num jogo de círculos minimalista pulverizado primeiro por um “Wall of sound” de guitarras e a seguir por um loop de fita a rodar ao contrário e pelo cântico das infantas recolocado sob a forma de “cut ups”, sobre uma base rítmica estacionada nos The Sea and the Cake. O mesmo tema é remisturado de novo numa variante “noise”/Glenn Branca. Aí a meninada bem tenta afinar as vozes mas Freddy Kruger, atento, atira-lhes para cima um caldeirão borbulhante de metal fundido.



Natalie MacMaster – “In My Hands” + Sandy Denny – “No More Sad Refrains – The Anthology” + Jean-François Dutertre – “Ballades Françaises – Volume 2” + Faubourg de Boignard – “Terra Gallica” + Vários – “Naciones Celtas”

27 Outubro 2000
FOLK


A idade do “glamour”



Para os lados da folk céltica de rosto feminino, retocam-se as imagens, esmera-se na produção e, se for caso disso, carrega-se no “sex appeal” e no “glamour”. É o caso de Natalie MacMaster, violinista canadiana com raízes familiares em Cape Breton, autora do recente “My Roots are Showing”. No novo “In my Hands” é realçada sua fotogenia e a música submete-se aos imperativos do “marketing”. Mas Natalie, como Kathryn Tickell, Eileen Ivers, ou Susana Seivane, é muito mais do que um simples rosto bonito. É verdade que o tema de abertura que dá título ao álbum é um tiro disparado ao mainstream e às estações MOR (“middle of the road”) com todas as hipóteses de agradar ao grande público, mas Natalie não perde tempo em mostrar que está longe de renegar o passado, ao utilizar em “Gramma” uma gravação da voz da sua avó de 91 anos de idade, antes de se lançar num “reel” imaculado. “Space ceilidh” é outra das curiosidades – positiva ou negativa, consoante a perspetiva… – de “In my Hands”, música de baile “ceilidh” vestida com programações eletro e sintetizadores espaciais, a fazer lembrar os Rare Air. Mas quando Natalie se lança, logo de seguida, num fair-portiano “Olympic reel”, fantástico de técnica e de swing, tudo se perdoa a esta rapariga de cabelos louros encaracolados. Alison Krauss e Sharon Shannon são duas convidadas especiais de “In my Hands”, um álbum de contrastes marcado pelo espírito da época (Rounder, import. FNAC, 7/10).

Sandy Denny, o mito e a voz, nunca morrerá na memória dos amantes da folk. A obra que legou ficará para sempre como imagem de uma vida trágica e de uma carreira prematuramente interrompida por um estúpido acidente (queda de uma escada) que pôs termo à sua vida em 21 de Abril de 1978. Personalidade insegura, senhora de uma voz e de um estilo inigualáveis, Sandy Denny notabilizou-se nos Fairport Convention e nos Fotheringay, depois de uma passagem fugaz pelos Strawbs e antes de enveredar por uma carreira a solo que se saldou pela edição de “The North Star Grassman and the Ravens”, “Sandy”, “Like An Old Fashioned Waltz” e “Rendez-Vous”. A presente coletânea (mais uma!), “No more Sad Refrains – The Anthology”, surgida pouco tempo depois do volume “An Introduction to…” que lhe foi dedicado, passa em revista, em dois CD, o melhor da sua música, incluindo clássicos com os Fairport Convention e Fotheringay, um par de temas que gravou com o projeto The Bunch e dois “demos”. “Fotheringay”, “Who knows where the time goes?”, “Crazy man Michael”, “Farewell, farewell”, “The sea”, “Late November”, “The north star grassman and the ravens”, “It suits me well”, “Solo” e “Like an old fashioned waltz” são canções que nunca deixarão de nos assombrar. Uma edição para acarinhar até ao dia em que a rosa deixar de ter espinhos (Island, distri. Universal, 9/10).

França. Jardim das delícias. Histórias da Gália profunda. Canções tradicionais dramáticas ou líricas, reunidas na série “Ballades Françaises – Volume 2”. O jardineiro dá pelo nome de Jean-François Dutertre, que, para quem não sabe, é um dos magos da folk europeia na sua vertente mais onírica e palaciana, cantor, executante de sanfona e “Épinette des Vosges”, elemento fundador da única banda folk francesa que conseguiu estar à altura (e por vezes ultrapassar!) dos Malicorne, os Mélusine, e participante no projeto seminal do clube “Le Bourdon”, responsável pela obra-prima “Le Galant Noyé”. Neste novo álbum, para o qual recrutou os seus antigos companheiros Jean-Loup Baly, Yvon Guilcher e Emmanuelle Parrenin, Dutertre assume um lado mais narrativo que nos Mélusine, com a beleza, por vezes sufocante, de baladas como “Le deuil d’amour”, “La barbière”, “Bella Louison”, a conferir a este álbum um apelo tão forte para os apreciadores de folk francófona, como para os de música antiga (Buda, distri. Dargil, 8/10).

Ainda em França, os Faubourg de Boignard divertem-se. Com “Terra Gallica”, segundo álbum deste grupo da família de “hereges” como os La Bottine Souriante, Ad Vielle Que Pourra, Blowzabella, Kepa Junkera e Cock & Bull, a folk deita às urtigas o ar sisudo e deixa as gaitas-de-foles, acordeões e violinos aventurarem-se por uma música liberta de constrangimentos formais. Programações, energia contagiante e imagens trocadas do imaginário céltico atropelam-se entre declamações e “trompe l’oeils” onde as geografias europeias, asiáticas e africanas se confundem em citações sem autor. Como se “Terra Gallica” fosse um argumento caído da “Symphonie Celtique” de Alan Stivell. Folk rock ao melhor nível. (Boucherie Productions, import. Lojas Valentim de Carvalho, 8/10).

Mais um volume duplo, o quarto da série “Naciones Celtas”, como sempre abarcando um espectro largo das chamadas “músicas célticas” que aqui se estende ao Kansas, nos EUA (!). Entre nomes consagrados – Relativity, Bothy Band, Bleizi Ruz, JSD Band, De Dannan, The Dubliners, Silly Wizard, Ar Log, Jerry Holland, Jerry O’Sullivan, Ubiña – e ilustres desconhecidos – Connie Dover (a tal norte-americana do Kansas), Mary Jane Lemond (uma Enya de Cape Breton), Jim Fidler, de Newfoundland, Dhais, e Faíscas de Xiabre, ambos da Galiza, Bucca (uns Fairport Convention da Cornualha) e MacLullagh Vannin, da Ilha de Mann, os mais interessantes –, o destaque vai para a presença de artistas canadianos, presentes pela primeira vez nas “Naciones Celtas”. Além dos já bem conhecidos La Bottine Souriante e de um dos seus elementos a solo, Yves Lambert, participam Daniel Roy, Les Charbonniers de L’Enfer, Les Batinses e Barachois, estes últimos com um delicioso pedaço de cajun reel e humor vocal francófono (Fonofolk, distri. Megamúsica, 7/10).



King Crimson – “In the Wake of Poseidon” + King Crimson – “Lizard” + King Crimson – “Islands”

7 de Abril 2000
REEDIÇÕES


King Crimson
In the Wake of Poseidon (9/10)
Lizard (10/10)
Islands (8/10)
Virgin EG, distri. EMI-VC

As máscaras do lagarto



Esqueçam todas as baboseiras que ouviram sobre a música progressiva, que nunca soube verdadeiramente o que era. Esqueçam e ouçam estes três álbuns dos King Crimson, para repensarem tudo, em novas reedições cartonadas, miniaturas dos vinilos, com capa de abrir, que assim se juntam à de “In the Court of the Crimson King”, na celebração do 30º aniversário das edições originais. Além da apresentação, excelente, o som é soberbo, fruto de remasterizações feitas com máximo cuidado.
“In the Wake of Poseidon” é o segundo álbum dos King Crimson (1970), depois de “In the Court…”, prolongando e refinando a estética seguida então pelo grupo, uma fusão absolutamente inovadora para a época de rock, classicismo, jazz e canções compostas sobre a guitarra e o mellotron de Robert Fripp e as letras de Peter Sinfield, que distinguiam os King Crimson de qualquer outra banda progressiva dos anos 70 (apenas os Van der Graaf Generator os conseguiram ultrapassar…).
Robert Fripp amenizou um pouco neste disco a violência do álbum de estreia, enveredando por uma complexidade da composição que viria a atingir a perfeição no álbum seguinte, “Lizard”. Ainda com Greg Lake e Michael e Peter Giles no grupo, “In the Wake of Poseidon” inclui clássicos como “Pictures in a city” (espécie de continuação de “21st century schizoid man”, do primeiro álbum), o título-tema, uma extensa balada de cores classicizantes conferidas pelo mellotron, o tema satírico (prática que viria a institucionalizar-se nos álbuns seguintes), “Cat food”, com uma fenomenal intervenção no piano de Keith Tippett e a sequência instrumental, dividida em três partes, “The devil’s triangle”, a ilustrar a faceta luciferina desde sempre cultivada por Fripp. Assustador.
Mas “Lizard”, editado também em 1970, vai mais longe, onde nenhum outro grupo fora antes. Obra-prima absoluta na discografia do grupo (opinião não partilhada pelo seu líder, o réptil da guitarra, Robert Fripp…) e um dos marcos da música progressiva dos anos 70, “Lizard” foi recebida quando do seu lançamento pela crítica inglesa como uma obra cuja estrutura a fazia rivalizar com as grandes peças dos compositores clássicos eruditos. Não é um álbum típico dos King Crimson, da mesma forma que “Their Satanic Majesties Request” não é um álbum típico dos Stones, por exemplo. Obra ímpar, houve quem tentasse caracterizá-la como jazz e quem demorasse dezenas de anos até finalmente a compreender e aceitar. Servido por uma produção que coloca em relevo o mínimo detalhe musical, “Lizard” é um monumento que, volvidas três décadas sobre a sua edificação, mantém a solidez das grandes catedrais.
O tema de abertura, “Cirkus”, inclui uma das mais poderosas entradas instrumentais de todos os tempos, com a irrupção abrupta do mellotron a interromper o que de início aparenta ser uma balada, seguida de um solo deslumbrante de swing de Mel Collins no saxofone. “Indoor games” e “Happy family” (canção surrealista sobre a dissolução dos Beatles…) transportam-nos para um universo paralelo onde o free jazz, a atonalidade, a sobreposição de harmonias, mudanças súbitas de compasso e complicados efeitos de estúdio acentuam a catadupa de imagens herméticas sugeridas pela escrita de Sinfield. O primeiro “lado” do disco termina com uma curta balada de ambiente medieval, “Lady of the dancing water”.
Mas é no título-tema, uma longa suite dividida em várias partes, que Fripp revela todo o seu génio como compositor e arranjador. O tema evolui de uma introdução vocalizada por Jon Anderson, dos Yes, para uma verdadeira sinfonia sobre a guerra que culmina nos dez minutos de antologia de “The battle of glass tears”. Os instrumentos combatem entre si como entidades sobrenaturais numa invasão do cérebro e dos sentidos. Sons lancinantes formam um caleidoscópio de ritmos e timbres reinventados segundo a segundo, num jorro contínuo que emerge como a lava de um vulcão irrompendo do inconsciente, até alcançarem uma dimensão cósmica. Free rock, teste projectivo, alucinação sonora, chamem o que quiserem a esta música, que permanece como testemunho perene de um músico que ainda hoje continua a subverter e a remodelar as regras da música popular.
Editado em 1971, o álbum seguinte, “Islands”, com os novos elementos Boz (baixo e voz) e Ian Wallace (bateria), funciona quase como um anticlímax. É o álbum onde as obsessões de Fripp pela música clássica vão ao ponto de ter convidado uma cantora lírica para cantar no tema de abertura, “Formentera lady”, e assinado em “Prelude: Song of the gulls” uma genuína peça de música de câmara. Mas bastaria o instrumental “Sailor’s tale”, marcado por um solo arrasador de Robert Fripp na guitarra eléctrica, para garantir a este álbum, que também inclui o tema satírico “Ladies of the road”, desta feita sobre as prostitutas, um lugar de relevo na discografia do grupo. Depois da gravação ao vivo do álbum “Earthbound”, os King Crimson fariam uma primeira paragem, reaparecendo em 1973 com “Lark’s Tongues in Aspic”, com uma nova formação e uma mudança radical de estética musical, iniciando uma fase que continuaria em “Starless and Bible Black” até explodir num hard rock metálico e visceral em “Red”.