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Depeche Mode – “Depeche Mode – Liturgia Da Perversão”

destaque >> sábado, 10.07.1993


Depeche Mode
Liturgia Da Perversão


Começaram por ser meninos ladinos que brincavam com sintetizadores de plástico e percussões de metal. Dos “hits” que levaram a música industrial para as pistas de dança, os Depeche Mode passaram a manequins de estádio. Alvalade vai ser a catedral onde farão ouvir a sua “música para as massas” e as suas “canções de fé e devoção”, onde misturam sexo e religião.



É verdade, os Depeche Mode actuais vestiram os paramentos e são os celebrantes de um novo tipo de missa. Para Martin Gore, músico e mentor espiritual da banda, “a maior parte das pessoas deixou de ir à igreja e agora os templos são lugares semidesertos e as pessoas necessitam de um substituto para essa ausência”, como afirmou em entrevista exclusiva ao PÚBLICO [Pop Rock de 7 de Julho].
O estádio passou, então, a ser o local privilegiado de novas liturgias. O problema está em que Gore, no seu papel de apóstolo, não se preocupa tanto em transmitir uma mensagem com conteúdo específico, mas, ele próprio confessa, em “’flirtar’ com a imagética rea”, ou seja, “não ao nível da crença mas da iconografia” – o que significa a inversão do próprio termo “religião”. No fascínio exclusivo pelas formas, no deslumbramento pelas imagens, os Depeche Mode instauram o vazio. Mas não é, afinal, isso mesmoq eu eles t~em vindo a proclamar desde a ´poca em que gravaram “Black Celebration”, álbum negro onde dissecavam “a vida na denominada era espacial”?
Sabe-se, de resto, o efeito que a música, ou o discurso inflamado de um político, tem sobre o comportamento das massas. Frank Zappa sabia-o melhor do que ninguém quando, num concerto que realizou há anos, na Alemanha, conseguiu pôr a assistência inteira a fazer a saudação nazi. Nessa redução do indivíduo à massa amorfa, sabe quem sabe a maneira de aproveitar a energia que se liberta de milhares de corpos funcionando na cegueira de maquinismos em uníssono.
Se a noção de maquinismo permite compreender o desenrolar de um espectáculo de rock de estãio em geral, melhor ainda se aplica à música dos Depeche Mode em particular. Herdeiros assumidos dos papas da desumanização e da música tecnológica – os alemães Kraftwerk -, os Depeche Mode, desde a assunção do “techno pop” de tend~encia industrial até às inflexões “blues” e “gospel” que emergem no novo álbum “Songs of Love and Devotion”, têm vindo a cobrir de pele e carne o corpo frio de um manequim.
Forçados em parte pelas circunstâncias de um sucesso comercial que nunca parou de aumentar, sobretudo a partir de “Music for the Masses”, a assumirem-se como representantes da face humanizada da “techno”, o grupo viu-se impelido a moderar o discurso e a limar as arestas da música – de modo a tornar mais perfeita a ilusão e a não assustar em demasia o seu público, maioritariamente adolescente.
Daí também o modo como foi estruturado o novo espectáculo ao vivo, com as imagens de vídeo (assinadas pelo fotógrafo Anton Corbijn, colaborador habitual dos U2, David Bowie e Brian Eno) em movimento de mutação lenta, por oposição à estética de fractura que caracteriza os vulgares “videoclips”. De modo a levar, à semelhança do que fez Zappa na ocasião mencionada, as pessoas a chegarem ao ponto pretendido – de forma gradual e sem se darem conta. Como se a perversão fosse a coisa mais inocente do mundo. Até à heresia final, num dos temas que terminam a “devotional tour” dos Depeche Mode: “Personal Jesus”, acompanhado pelo “strip tease” de Dave Gahan, que ao mesmo tempo se auto-acaricia. E, a fechar, “Everything counts”, cantado em coro pela assistência, sem qualquer acompanhamento – a música das massas.

Laurie Anderson + Sérgio Godinho + Bob Dylan – “Estados Unidos Da Ficção”

pop rock >> quarta-feira, 07.07.1993


ESTADOS UNIDOS DA FICÇÃO

“A linguagem é um vírus do espaço.” A frase, da autoris de William Burroughs, é repetida por Laurie Anderson no álbum “Home of the Brave”. Faz sentido. Dizer, dizer tudo. Em sons, imagens e ficções, nos antípodas da linguagem convencional. Disse um dia que “o português é uma língua linda”. Vem a Portugal cantar ao lado de Dylan, sua antítese dialéctica.



Comunicação/incomunicação. Entre humanos e humanos, entre humanos e máquinas, entre máquina e máquinas. “Big Science”. Alquimia do verbo aprisionado na Babel dos infinitos sentidos. A linguagem, no centro da acção. Operação cirúrgica tendo por objectivo a criação do novo homem, enorme de signos, de apêndices tecnológicos, de memória computorizada. O homem arranha-céus, multiforme, sintético, virtual. O “empire state human” que os Human League anunciavam no álbum “Reproduction”. “O superman”, primeiro single de Laurie Anderson, extraído de “Big Science”, oito minutos de hipnose sintética, subiu ao segundo lugar do top de singles no Reino Unido.
A tarefa que Laurie Anderson se propõe levar a cabo parece à partida desmesurada, demasiado grande para poder conter em si uma mensagem minimamente compreensível pelo receptor. Robin Denselov escreveu uma vez na “Observer” que na sua obra “há inúmeros temas mas nenhuns argumentos”. Percebe-se a confusão do articulista e igualmente que não compreendeu a instauração de uma nova ordem semântica que a artista americana empreendeu, nem o significado da frase que encabeça este texto: “A linguagem é um vírus.”
Recuemos ao passado, ao fotograma inicial do filme. Laurie Anderson começou por estudar violino, passando rapidamente para as experiências interdisciplinares que viriam a caracterizar o seu trabalho futuro. Há uma prévia intoxicação de cultura. Laurie escreveu sobre arte nas conceituadas “Art in America” e “Art Form”. Deu aulas no City College de “arquitectura egípcia” e “escultura assíria”. Conta ela que, enquanto passava os “slides” para os alunos, se esquecia dos ensinamentos teóricos, ficando presa no fascínio das imagens e inventando explicações fictícias. A linguagem já então era um vírus. Foi despedida, claro.
Antes ocorrera outro tipo de intoxicação – pelas imagens-paisagens do “mid-west” americano onde viveu e cresceu, entre seus espaços amplos que permitiam o livre voo da imaginação. Laurie imaginava situações e possibilidades de novos ajustamentos da realidade. O sonho. Numa instalação montada em Queens, Nova Iorque, Laurie Anderson ilustrava a tese de que o lugar onde se dorme determina o conteúdo dos sonhos com uma série de cartazes onde era retratada a dormir em diversos locais (um museu, uma praia,,,), juntamente com a descrição do sonho respectivo.
As acções que empreendeu ao longo dos anos 60 e 70 no campo “multimédia” (como uma mesa que tocava música ao toque de um cotovelo, uma das suas primeiras instalações) permitiram-lhe o contacto e a experimentação com diversos materiais de composição: “slides”, escultura, vídeo, cinema, computador, dança, arte gestual, etc. “The Life and Times of Joseph Stalin” representou, em 1978, o resultado global desta abordagem “totalitária” da arte, através de uma experiência audiovisual com 12 horas de duração apresentada na Academia de Música de Brooklyn.
Se “Big Science”, lançado em 1982, é a primeira obra a obter o reconhecimento internacional, em parte devido ao êxito alcançado pelo single “O superman”, revelando uma artista madura (Laurie Anderson contava já nessa altura 32 anos), é na obra descomunal “United States” que se entrecruzam e entrechocam as referências mais importantes do seu trabalho. De excesso em excesso, em cinco álbuns (mais tarde reeditados em quatro compactos), divididos em 76 secções e subordinados aos tópicos “transportes”, “política”, “dinheiro” e “amor”, “United States” é o retrato pluridimensional, “sociológico”, nas palavras da autora, complementar ao posterior “Empty Spaces”, este “psicológico”, onde efectivamente nos podemos perder, defendendo-nos com o tal argumento dos “inúmeros temas e nenhuns argumentos”. Procure-se aqui a ordem nova atrás citada, as pistas, simultaneamente verdadeiras e falsas para uma nova compreensão e realinhamento do mundo (vide os Estados Unidos da América). Proeza só ao alcance do super-homem – orednar e sintetizar num discurso coerente tamanha multiplicidade de estímulos e sinais. Informação. Disponível para mil (re)criações do real.
Deus (encarado como mero conceito, logo, a uma palavra) é reduzido a uma imagem entre outras imagens. O verbo divino, dentro desta nova racionalidade, ao mesmo tempo e paradoxalmente aleatória e ordenada (“o computador [o super-homem é o homem-máquina] permite esta enorme rapidez, possibilitando a criação de um ‘patchwork’ visual dos mais variados. Tudo com rapidez e precisão”, disse a artista em entrevista concedida a Katia Canton publicada há três anos no jornal “Expresso”), constitui obviamente apenas uma outra forma de vírus linguístico. O “Fiat lux” criativo transfere-se em exclusivo para o domínio do humano. Deus será afinal o super-homem, como dizia Nietzsche. Único capaz de abarcar e percepcionar a globalidade do sistema. Sem asas, mas da altura do “empire state human”, com a perspectiva aérea, aquela que permite visionar e controlar os movimentos inferiores. Neste aspecto, Laurie Anderson descreve o mesmo quadro que David Byrne (o mapa dos “States” fotografado por satélite na capa de “More Songs about Buildings and Food”) percorre em velocidade e com mais humor.
Implantado o figurino, Laurie Anderson passou a habitar cada novo disco como um jogo de realidade virtual – manipulando imagens, sons, palavras, conceitos, o próprio corpo (a voz, através do “Vocoder”, a amplificação da percussão nas pernas e nos braços ou dos batimentos cardíacos) a seu belo prazer. Em “Mr. Heartbreak”, “Home of the Brave” (com produção de Nile Rogers e a voz de William Burroughs) e “Strange Angels”, este o álbum de inflexão pop onde Laurie canta onde antes apenas declamava. Imagem-paradigma deste novo universo simulado por um “deus ex-maschina”, em que a “realidade” e a “ilusão” se confundem, é aquela dada a “ver” num dos seus espectáculos, na canção “White lillies”, de “Home of the Brave”: o computador cria no espaço um lírio branco, electrónico, que fica suspenso no ar. Laurie Anderson debruça-se e apanha-o com a mão.
LAURIE ANDERSON
(COM BOB DYLAN E SÉRGIO GODINHO)
DIA 13, ESTÁDIO DO RESTELO

Brian Eno – “Neroli”

pop rock >> quarta-feira, 30.06.1993


Brian Eno
Neroli
CD All Saints, distri. MVM



Plink. Silêncio. Plonk. Silêncio. Assim mesmo, durante cinquenta e tal minutos. Mas, atenção: os plinks e plonks (e os silêncios) de Brian Eno são diferentes. Na sombra desta estética da quase inaubilidade, algo clama em surdina.
“Neroli” (designação de um óleo aromático extraído da laranja cujo nome deriva do de uma princesa italiana que o usava como perfume) inscreve-se na linha de obras ambientais do autor, de “Discreet Music” a “The Shutov Assembly”, passando por “Music for Airports”, “On Land”, “Apollo Atmospheres & Soundtracks” e “Thursday Afternoon”. Qualquer delas, em comparação com “Neroli”, parece tão variada e movimentada como um disco dos Negativland. Porque em “Neroli” nada verdadeiramente acontece ao nível da percepção auditiva. O que o ouvido capta é a sequência interminável de plinks e plonks flutuando sobre o abismo negro do silêncio, deixando ocasionalmente um rasto de harmónicos e reverberações em suspensão. Mas, e neste “mas” reside o ponto essencial desta música, algo acontece de facto, numa ordem diferente de realidade.
Eis então a finalidade última da música ambiental, tal como Eno a entende: não se trata tanto de um fundo sonoro passivo, no sentido vulgarmente designado por “muzak”, mas de um suporte para uma maneira diferente de perceber os sons e o silêncio, não só do disco, mas de todo o ambiente circundante. Era este, de resto, o objectivo explícito enunciado em “Discreet Music”. “Neroli” vai mais longe. Trata-se já, neste caso, de criar um espaço, um traço (um perfume…) que leve o auditor a escutar a música que constantemente flui no interior de si próprio. Compreende-se desta forma melhor a razão de ser de um livro como “A Voz do Silêncio”, escrito pela teórica do teosofismo, Helena Petrovna Blavatsky, ou as explicações do próprio Eno quando diz que “Neroli” se situa no limiar (no ponto limite) da música, único lugar onde se torna possível desenvolver “uma nova percepção”. Da música, claro, tomada no sentido mais lato de vibração, movimento, harmonia pura – e de silêncio -, fonte e confluência geral de todos os sons. (8)