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Celso de Carvalho – “EM PÚBLICO” (rubrica | série | dossier | entrevista)

pop rock >> quarta-feira >> 19.01.1994


EM PÚBLICO (rubrica / série)

CELSO DE CARVALHO *




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Por onde começou, pelo jazz, pelo rock, por outras músicas?
A minha primeira boa experiência de música foi no liceu, em 1965, tinha quinze anos. Houve um concurso que o meu grupo ganhou. O prémio, além de uma taça simbólica, era ir à Emissora Nacional gravar dois temas à escolha. Lembro-me que fomos gravar dois temas instrumentais dos Shadows. Tocava piano e viola ritmo. O grupo chamava-se Misters. O Plexus formou-se mais tarde, em 1968. Da sua primeira formação faziam parte, além de mim, o José Teixeira Lopes, que já vinha dos Misters, o Carlos Zíngaro, o Jorge Valente, o Luís Pedro Fonseca. Gravámos um disco de quatro temas na garagem do José Cid. Depois veio o fantasma da tropa e cada um seguiu para seu lado. Consegui meter-me numa banda militar, não saí de cá. Tocava violoncelo na banda da GNR, por influência do meu pai. [Impossível não recordar aqui a figura de Woody Allen, em “O Inimigo Público”, desfilando em parada a arrastar pela rua a cadeira e o violoncelo…] Dois anos mais tarde o Plexus reformou-se, comigo, o Zíngaro, o Jorge Valente e novos músicos.

Que motivos levaram à extinção do Plexus?
Eu e o Paulo Gil pretendíamos uma direcção musical mais aberta, enquanto o Zíngaro queria manter-se na anterior linha, mais vanguardista. Separámo-nos. A confusão toda que houve a seguir deve-se a que a coisa foi mal explicada. O Zíngaro resolveu continuar o Plexus, mas não disse nada. Ele depois fez umas coisas esquisitas. Primeiro quis ficar detentor do nome, e isso irritou-me na altura. Foi um assunto que nunca ficou bem esclarecido.

Zíngaro entretanto partiu para uma carreira no estrangeiro bem sucedida. Por que razão não tentou o mesmo? Por uma questão de feitio?
Quando o Plexus acabou, quis tocar outro tipo de música, na altura já estava um bocado farto do “free jazz”. Sempre houve em mim uma componente rock. No liceu gostava dos Beatles, dos Stones e por aí fora. Mais tarde, nos anos 70, interessei-me pelos King Crimson, pelo rock progressivo, a escola de Canterbury… O Zíngaro não, além de que terá começado a sentir que já não era ele só o “director”, a figura-chave do grupo. Senti que houve um bocado de ciúmes musicais da parte dele… Depois do Plexus acabar fiquei a fazer cinco ou mais coisas simultâneas: a orquestra do São Carlos, ainda estava na banda da GNR, mais a Band do Casaco, o Rão Kyao e de vez em quando ainda era chamado para fazer sessões de estúdio…

Essa diversidade não o terá prejudicado, na medida em que impediu uma orientação definida para a sua carreira?
Isso é nítido. Lembro-me de que uma vez fomos em excursão a um festival em Château-Vallon, em França, onde assisti a seminários com músicos como o Steve Potts ou o Barre Philips, mas, se em algumas coisas ainda encontrei algum “feedback”, noutras vi que já não era o que me interessava. Pelo contrário, o Zíngaro encontrou logo ali a linha-mestra daquilo que queria fazer. Foram duas opções diferentes.

Na Band do Casaco encontrou a música que lhe interessava?
No princípio havia uma magia grande, de facto. Os dois primeiros discos resultaram muito bem. Mas envolvi-me mais na Banda do Casaco sobretudo nos últimos tempos. O Pinho tinha saído e a minha participação já podia ser mais de compositor e produtor. A princípio eram só o Nuno Rodrigues e o Pinho que tinham as decisões finais.

Com a extinção da Banda do Casaco o seu nome desapareceu também…
Pois, na passagem dos anos 70 para os 80 queimei os fusíveis, em termos de rentabilidade. Vi que era um disparate ter tido todos aqueles projectos ao mesmo tempo. Não dava. Foi nessa altura que comecei a compor. Também lamento não ter tentado há mais tempo pôr essas músicas a funcionar, em vez de as ter guardado. Da parte das editoras também não houve “feedback”. Das várias que contactei, só tive resposta de duas: uma foi a Valentim de Carvalho, onde me disseram que tinham achado a música interessante mas um bocado de difícil audição (na altura, ainda me desafiaram para fazer trabalho de produção, mas até agora não aconteceu nada…), a outra foi a Numérica, onde me disseram que estavam numa fase de recessão e não previam um projecto como o meu. O que é que uma pessoa pode fazer?

Mas há alguma dificuldade específica na sua música que impeça de todo a sua audição?
O meu drama se calhar é ser muito individualista. Toco vários instrumentos e consigo fazer sozinho aquilo que idealizo. Outro drama é não ter feitio para andar a pedir batatinhas, a percorrer as capelinhas todas a tentar impingir o meu trabalho. Depois também me isolo muito. Não ponho os pés num Hot Clube há uma dúzia de anos, deixei de me interessar ainda no tempo em que tocava lá. Era sempre o mesmo público, e cansei-me sobretudo daquele público mais conservador.

No Plexus , como na Banda do Casaco, pensa que terá havido alguma azar em ter ficado sempre à sombra das individualidades?…
Os instrumentos que tocava, em particular o contrabaixo, predispunham um bocado essa situação. Senti isso sobretudo com o Rão Kyao. O Rão Kyao usava muito um esquema que era tocar um tema baseado numa ou duas tonalidades, algo que tem a ver com a música indiana. Estávamos dez minutos a tocar a às tantas sentia que estava a fazer o meu melhor, mas no fundo pensava em qual era a utilidade do que estava a fazer. Estava sempre a servir de suporte para a “estrela” brilhar. Era um papel subalterno.

E em relação ao violoncelo?
A minha voz, de facto, é o violoncelo, é como comunico melhor. No violoncelo liberto-me desse papel subalterno.

Quanto às suas composições, vão ficar para sempre na gaveta?
Este ano vai sair um disco meu, nem que seja em edição de autor. Tenho tudo pronto, escrito em pauta. Até o título, que vai ser “Violoncelo”. Vou precisar de um teclista que esteja bem batido nas programações de computador. Falei com o António Emiliano e ele mostrou-se interessado. A minha vontade era também fazer concertos, só fazer o disco não tem piada. Se o Emiliano tiver disponibilidade… O grupo terá mais um baterista e um baixista. Eu vou tocar violoncelo e alguns teclados. Tenho um “alter ego”. Sou um guitarrista frustrado. Sempre fui influenciado pelos guitarristas, do Satriani ao Steve Vai ou, mais jazzísticos, o Allan Holdsworth ou o Scott Henderson, já para não falar no Stanley Jordan. Como no violoncelo não poso fazer o que eles fazem, arranjei o tal “alter ego”, uma guitarra simulada, a que chamo “fake guitar”, que é um registo feito num sintetizador que tenho em casa.
Ter ou não sucesso é uma questão que o preocupa?
Não quero ter sucesso em termos de popularidade da minha pessoa, mas sim de a minha música começar a ser conhecida.

Precisamente, num meio pequeno como o português, atendendo às especificidades da sua música, não teria sido preferível seguir um percurso semelhante ao do Carlos Zíngaro ou Maria João, e procurar fazer carreira no estrangeiro?
Não quero, como acontece com os nomes que cita, ter de me manter fiel a uma linha musical. Não gosto de sentir amarras. Prefiro estar em várias áreas. Quem tem a sorte de ter uma carreira internacional depois tem que se manter um bocado fiel a essa carreira.

Mas não parece que a Maria João e o Zíngaro estejam muito condicionados na música que fazem…
Mas isso é porque já têm um nome e a partir daí é uma bola de neve.

Sim, mas não lhe parece que eles tiveram de lutar até conseguirem esse estatuto?
São as tais questões de aproveitar ou não aproveitar as oportunidades.

Não gostaria, por exemplo, de voltar a tocar com o Carlos Zíngaro?
Acho que sim. O tal problema pessoal, ou mal-entendido, é ele que tem de o resolver, não sou eu. Se ele quiser falar comigo, tudo bem. Não sei o que se passa na cabeça dele.

Nunca se interrogou sobre se o problema não será afinal devido à sua maneira de ser?
Não, sempre fui muito aberto, nunca impus a minha opinião. Normalmente as pessoas querem logo marcara a sua posição, mostrar que são isto ou aquilo, mas acabam por só fazer asneiras. Ou então mostram logo tudo de repente e depois não acontece mais nada. Eu não. Acho que sou espontâneo. O meu problema será talvez o de não conviver com as pessoas.

* Violoncelista, contrabaixista e compositor. Tocou com os Plexus, Rão Kyao, Né Ladeiras e Banda do Casaco. Prepara o lançamento do seu primeiro álbum a solo, intitulado “Violoncelo”.

Santana – “Sacred Fire” (vídeo | VHS)

pop rock >> quarta-feira, 22.12.1993
VÍDEOS


SANTANA
Sacred Fire
Polydor, distri. Polygram, 97”, venda directa



O disco é fraco. O vídeo é chato. A vida tem destas coisas. As coisas são como são e os Santana já deveriam há muito ter dado por encerradas as suas actividades. Infelizmente ainda por cá andam, com Carlos Santana a arder no fogo sagrado. O vídeo limita-se a mostrar, com toda a preguiça, que pode haver nestes “long forms” de espectáculos ao vivo as inexistentes peripécias do concerto recente realizado pela banda na Cidade do México. Às vezes, quando a música é má, as imagens compensam e podem justificar a aquisição da cassete. Não é o caso. Aliás, a regra deveria ser, para cada suporte na área do audiovisual, a existência, nas respectivas linguagens específicas, de um mínimo de originalidade e criatividade. Aqui não há nada que atraia o olhar para o ecrã ou o ouvido para as colunas. É a sensaboria do princípio ao fim: plano geral de banda, grandes-+lanos dos váriso executantes, “close ups” sobre alguns pormenores aleatórios do que se passou no palco, planos do público, de novo plano geral da banda, música a metro, os sentidos sem alimento que lhes mate a fome, a paciência a esgotar-se. Talvez com “sensorround”, talvez com ecrã gigante em cristais líquidos, talvez com uns Santana interactivos, “Sacred Fire” se deixasse ver com algum agrado. Assim como está tem tanto interesse como um taparuere e a vivacidade de uma múmia. (1)

Frank Zappa – “Frank Zappa Morre Vítima De Cancro – O Pai Da Invenção” (obituário)

cultura >> terça-feira, 07.12.1993


Frank Zappa Morre Vítima De Cancro
O Pai Da Invenção



“Estamos nisto apenas pelo dinheiro”, dizia o título de um álbum dos Mothers of Invention. A provocação durou quase 20 anos, durante os quais Frank Zappa criou uma obra onde o humor cáustico, o virtuosismo instrumental e a experimentação inventaram novas formas para o rock. A arte, como a política, usou-as com a habilidade de um prestidigitador.
Chamaram-lhe génio, pervertido e impostor. Zappa achou sempre que o aplaudiam “pelas razões erradas”.

Frank Zappa, o grande sátiro do rock, morreu na noite de sábado na sua residência em Los Angeles, com 52 anos de idade, vítima de um cancro na próstata. A notícia chegou assim, com a frieza de um boletim clínico, como algo de inevitável e de há muito esperado.
O pais das mães (ou seja, seu avô comum) da invenção morreu. Os escândalos, as provocações e as posições incómodas que sempre defendeu, contra o “business” e a sociedade norte-americana em geral, deixaram de chocar uma América hipócrita que pode finalmente engolir e digerir com prazer e segurança aquilo que antes condenara mas agora consente como sendo apenas as excentricidades de um génio. Com o seu desaparecimento perdeu-se, e isto é o mais importante, um músico que revolucionou por completo os sons, a pose e as ideias da música Rock. Já para não falar dos bigodes.
Zappa, um dos últimos nomes que figuram na Enciclopédia da música popular deste século, nasceu a 21 de Dezembro de 1940. Passou os anos da juventude a ouvir Varese, a escrever bandas sonoras para filmes de série B, a fazer gravações pornográficas e, por consequência, a ser preso. Em 1967 resolveu tirar dividendos deste tipo de actividades e a gravar discos, tornando-se deste modo um dos maiores terroristas musicais que a História conheceu. Nesse mesmo ano em que os jovens de ambos os lados do Atlântico se enfeitavam com flores e falavam de paz, Frank Zappa, com os Mothers of Invention, entrava a matar, despedaçando o mito “hippie”, em “We’re in it only for the Money”, álbum que satiriza, desde a “pastiche” da capa, o mito máximo dessa filosofia, o monumental “Sgt. Peppers” dos Beatles. Antes, a sua veia satírica exercitara-se a gozar os clássicos dos anos 50 – osmesmos que habitam o núcleo da sua música – na estreia “Freak Out”, para em “Absolutely Free” deitar por terra a hipocrisia e o falso bem estar da América do põs-guerra.

Manifestos Da Loucura

Continua no mesmo andamento até ao fim, expondo à luz do dia os tabus mais secretos das sociedades modernas, acumulando gozo e perversões (conta a lenda que durante um concerto na Alemanha anterior à queda do Muro, Zappa conseguiu excitar a audiência ao ponto de convencê-la a fazer em peso a saudação nazi) e gravando para a posteridade álbuns em que deixou patentes, além do seu virtuosismo na guitarra, o seu génio de compositor e arranjador. São cerca de 50 obras que esticaram os limites da música popular, com o estatuto de manifestos da loucura: “Cruisin’ with Ruben and the Jets”, uma paródia ao rock ‘n’ rol, “Uncle Meat” (com Jean Luc Ponty no violino, que homenageia e interpreta a sua música no álbum “King-Kong: Jean Luc Ponty Plays the Musico f Frank Zappa”), “Weasels Ripped my Flesh”, “Burnt Weeny Sandwich”, os hilariantes “Overnite Sensation” e “Roxy & Elsewhere”, gravado ao vivo. Já com o nome próprio, assinou a obra-prima “Hot Rats”, “Chunga’s Revenge” (com outro grande violinista, Don “Sugarcane” Harris), o épico-musical “200 Motels”, “The Grand Wazoo”, “Sheik Yerbouti”, “Joe’s Garage” e “Them or Us”, entre dezenas de obras importantes.
A Frank Zappa se deve ainda ter dado a conhecer ao mundo a visão musical tresloucada de três personalidades “sui generis”: o genial, Don van Vliet, aliás Captain Beefheart – de quem produziu o clássico “Trout Mask Replica” e com quem gravou “Bongo Fury” -, um louco verdadeiro, o cantor e animador de rua Wild Man Fischer, cuja demência fiocou registada no inenarrável “Na Evening with Wild Man Fischer”, e, mais maquilhado antes de se dedicar ao golfe, o homem das serpentes (por acaso até perdeu uma delas na sanita da casa de banho) e do “glamour” sanguinolento, Alice Cooper. A sua costela decadentista e provocatória levou-o a produzir o grupo de “groupies” depravadas GTO (Girls Together Outrageously).Em anos mais recentes Frank Zappa compôs o bigode e testou a sua música em tipologias de todo afastadas do rock e da Pop: a experimentação com o computador Synclavier, traduzida em trabalhos como “Mothers of Prevention” ou “Jazz from Hell”, uma colaboração com Pierre Boulez em peças de bailado interpretadas pela Ensemble Intercontemporain que fazem parte de “The Perfect Stranger and Other Works”, a escrita de partituras clássicas e a direcção de orquestras sinfónicas. O humor, esse nunca desapareceu. Uma das peças, encomendadas pelo IRCAM, de Boulez, incluídas em “The Perfect Stranger”, é, segundo Zappa “sobre um vendedor de aspiradores e uma dona de casa desleixada”.

Zappa Candidato

Ficaram célebres algumas considerações do artista sobre a cena musical (“não se pode saber se a música é boa se ela nos atinge no traseiro”) ou personagens dos “media” (jornalistas de rock “são pessoas que não sabem escrever e entrevistar pessoas que não sabem falar para pessoas que não sabem ler”).
Em 1969, durante uma digressão pelo Canadá, desfez pela primeira vez os Mothers of Invention, alegando que o público “aplaudia pelas razões erradas”. É o Frank Zappa intervencionista, sempre acutilante e pronto a pôr o dedo nas feridas. As letras dos discos eram, em certos casos, de fazer corar de vergonha até um tomate, como as de “Uncle Meat” (meia hora de dissertação pornográfico), “Does it hurts when I pee”, “Dinah – moe humm” (que conseguia que todos os homens conjugassem o verbo vir na forma reflexa) ou “Darling Nikki” (apologia da masturbação feminina) ou então autênticas heresias como a frase “God is stupid and a little ugly on the side” (de “You are what you is”, dirigido a Michael Jackson). Os “gays” não lhe perdoaram ter escrito “He’s so gay”. Os judeus sentiram-se ofendidos com “Jewish princess”.
Quando a censura norte-americana, através da criação da “The parents Music Resource Center, decidiu intervir, propondo uma classificação etária para os discos considerados “obscenos” ou de alguma maneira ofensivos para a moral, Frank Zappa insurgiu-se de imediato contra a principal promotora desta iniciativa, Tipper Gore – mulher do senador e vice-presidente dos democratas e actual colaborador de Clinton, Albert Gore – chamando-lhe, em pleno senado, a ela e a outras “esposas de Washington”, “um grupo de donas de casa chateadas”.
Empenhamento que, meio a brincar meio a sério, levou Zappa a apresentar-se como candidato independanete às eleições presidenciais americanas, em 1992. Na altura, o músico declarou que seria fácil vencer “sem precisar sequer de sair de cas”. “As eleições vão ser tão aborrecidas, um enorme bocejo, que as companhias de televisão farão bicha para me entrevistar”, disse. Só por manifesta má vontade dos eleitores Zappa não ganhou.
No ano anterior, o Presidente checo Vaclav Havel, mais liberal e decerto com maior sentido de humor, nomeara-o adido cultural no Ocidente.
Antes de morrer, Frank Zappa editara o álbum “The Yellow Shark”, previsto para ser executado ao avivo, com direcção sua – o que não chegou a acontecer -, pela Orquestra Sinfónica de Berlim. Acabara de terminar outra obra, “Civilization, Phase III”, a editar na próxima Primavera. Com a sua morte foi também parte dessa civilização que se perdeu. Da arte feita e vivida com humor. Humor que seria negro ou não seria humor, como dizia André Breton.