cultura >> segunda-feira >> 09.05.1994
Música Celta No Coliseu
Uma Estrela Ascende, Outra Cai
Há vozes que envelhecem bem. A de Dolores Keane envelheceu mal. Fosse do álcool, por estar grávida ou do ambiente gelado do Coliseu o facto é que a cantora irlandesa foi uma sobra de si própria. Kathryn Tickell, pelo contrário, mostrou que o futuro da folk britânica passa por ela.

Está bem que a música folk é das mais férteis mas não exageremos. É que as cantoras desta área musical que nos últimos tempos nos têm visitado andam a exagerar. Só falta fazerem de Portugal uma maternidade. Márta Sebestyen, no recente Intercéltico, tinha acabado de dar à luz. Foi o que se (não) ouviu: a voz por um fio e os Muzsikas a salvarem, de que maneira, a honra do convento. Sábado à noite, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, em espectáculo integrado na programação de Lisboa-94, Dolores Keane apresentou-se por sua vez com uma barriga de quase nove meses. Já não bastava a Maria do Amparo!…
Fosse por este ou por outro motivo qualquer – fortes indícios apontam para o álcool como principal agente de deterioração das cordas vocais da senhora ou não fosse ela da melhor cepa irlandesa – a actuação da mítica Dolores Keane saldou-se numa enorme desilusão. Se o reportório – uma mistura de canções de autores e proveniências variadas servidas por arranjos bacocos e músicos bastante pouco inspirados – até nem surpreendeu, confirmando ao vivo as debilidades dos seus últimos álbuns a solo, já a voz, uma voz que aprendêramos a amar desde quando Dolores era a jovem vocalista dos De Danann, deu uma pálida imagem da grandeza do passado. Dolores cantou em esforço. O seu vozeirão, com aquela gravidade rouca que o whiskey concede aos seus lacaios ao fim de anos de bons serviços, não teve porém o controlo de uma June Tabor, por exemplo, mostrando-se impotente para respirar com a naturalidade que seria legítimo esperar. O som, metálico e estridente, também não ajudou, destruindo o timbre vocal da irlandesa. Aliás, sempre que Dolores se afastava do microfone, logo a voz se lhe suavizava e tornava mais humana.
Enfim, a dama grávida (esta terá sido de resto a sua derradeira apresentação ao vivo antes do parto) cantou sobretudo canções do último álbum “Solid Ground” e autores como Kieran Alpen, Mick Hanly, Linda Thompson e Paul Brady entre várias “immigrant songs”, um exercício de “mouth music” e temas de influência “country”, um dos quais da tradição dos Apalaches com referências a Doc Watson e aos Carter Family. Por duas ocasiões Dolores Keane trocou o canto por uma flauta, nuns “reels”, “jigs” e uma valsa mal amanhados mas que serviram para quebrar a monotonia.
Sobre a banda – guitarras, baixo, bateria e teclados – que acompanhou Dolores Keane a Lisboa pouco há a dizer. Vulgar como qualquer grupo de baile. Nem John Faulkner, marido da cantora e músico de renome, escapou ao cinzentão. A voz não parecia a mesma de um álbum com a qualidade de “Kind Providence”. Quanto ao que mostrou na guitarra, bouzouki e violino, só na Irlanda há hoje centenas de putos capazes de fazerem melhor. Mas pronto, melhores dias virão e o que mais desejamos é felicidades para o casal e para o futuro rebento.
Felizmente tivemos na primeira parte Kathryn Tickell. Uma jovem instrumentista digna de se ver e de se ouvir que, aos 25 anos, é já uma das maiores intérpretes de gaita-de-foles em Inglaterra. Com ela veio a sua nova banda, tudo gente novinha, merecendo destaque o guitarrista Ian Carr e a agilidade digital de Karen Tweed, a acordeonista de laçarote vermelho na cabeça com ar de Pipi das meias altas. Kathryn alternou as “Northumbrian pipes” com o violino, rubricando neste instrumento “reels” em que deixou patente mais elegância do que virtuosismo. Mas foi nas “pipes” que a jovem mostrou todas as suas capacidades. Nem tanto nas acelerações, apoiadas numa utilização inteligente das escalas descendentes e dos meios tons que no final levaram parte da assistência a ir para a frente do palco dançar, como sobretudo num espantoso lamento enriquecido por um jogo de ornamentações, todo ele síncopes e “swing”, ao nível do que escutáramos antes e ao vivo em Paul James, no concerto para iniciados que este músico deu há uns anos em Algés com Nigel Eaton, ou no gaiteiro dos Perlinpinpin Folc.
Kathryn Tickell tem tudo para se tornar uma estrela: talento e fotogenia, a par de uma sensibilidade pop e de uma energia que transformam, sem a trair, a linguagem folk em qualquer coisa de excitante para outro tipo de audiências.