Arquivo da Categoria: Electronic Pioneers

Suicide – “Suicide” + Suicide – “Alan Vega – Martin Rev – Suicide”

pop rock >> quarta-feira >> 04.05.1994


A MAIOR PROVA DE AMOR

Suicide
Suicide (10)
Alan Vega – Martin Rev – Suicide (7)
Restless, import. Contraverso



Em plena fúria “punk”, os Suicide foram mais longe que todos os outros. Alan Veja, o anjo negro do “rockabilly” martirizado, e Martin Ver, percursor da “techno” industrial, provocaram em 1977 arrepios na espinha de muita gente com o seu disco de estreia intitulado simplesmente “Suicide”, as letras do título a vermelho e a escorrerem sangue. Veja, espécie de duplo negro de Elvis, cantava então num registo semideclamado de palavras, gritos e murmúrios de uma América em galopada para o abismo, sobre os ritmos metálicos e saturados de electricidade e veneno de Martin Ver. Um coração em chaga a agonizar, no meio dos horrores de uma serração fantasma. “Cheree” ficará para sempre como a última canção de amor deste século e “Frankie teardrop” – história de um trabalhador enlouquecido que assassina toda a família para finalmente se lançar de uma janela sobre o tráfico da cidade – como documento, de audição quase insuportável, versão dos anos 70 de “The end” dos Doors, da paranóia urbana e do caos psicológico. Extremos de um álbum todo ele elaborado sobre o excesso que prolonga e supera a estética de demência anunciada pelos Velvet Underground (grupo que os Suicide são os herdeiros directos, transpostos para um contexto industrial) e levada ao niilismo absoluto por Lou Reed em “Metal Machine Music”, Veja e Ver habitavam nessa época em pleno coração das trevas, num ciclo de amigos que a morte ia levando uma um, enquanto nos concertos a banda era sistematicamente agredida em palco. “Ainda uma prova de amor, a última das provas de amor”, diziam então os Suicide, “preferível à pior das mortes, que é a indiferença.”
Comparado com este pesadelo, o álbum seguinte, “Alan Veja – Martin Ver – Suicide”, gravado três anos mais tarde, perdera já grande parte da energia e da raiva originais pelo caminho, dando início a um processo de domesticação do som levado a cabo por Ric Ocasek, dos Cars, produtor de serviço da banda a partir deste disco. Em vez do massacre, passou a haver um “techno pop” minimalista. Operação de limpeza que limou as arestas mais salientes do som Suicide, tornando-o porventura mais suportável e apto para o consumo das massas. Dois álbuns seminais reunidos pela primeira vez num CD simples.

Laurie Anderson + Sérgio Godinho + Bob Dylan – “Estados Unidos Da Ficção”

pop rock >> quarta-feira, 07.07.1993


ESTADOS UNIDOS DA FICÇÃO

“A linguagem é um vírus do espaço.” A frase, da autoris de William Burroughs, é repetida por Laurie Anderson no álbum “Home of the Brave”. Faz sentido. Dizer, dizer tudo. Em sons, imagens e ficções, nos antípodas da linguagem convencional. Disse um dia que “o português é uma língua linda”. Vem a Portugal cantar ao lado de Dylan, sua antítese dialéctica.



Comunicação/incomunicação. Entre humanos e humanos, entre humanos e máquinas, entre máquina e máquinas. “Big Science”. Alquimia do verbo aprisionado na Babel dos infinitos sentidos. A linguagem, no centro da acção. Operação cirúrgica tendo por objectivo a criação do novo homem, enorme de signos, de apêndices tecnológicos, de memória computorizada. O homem arranha-céus, multiforme, sintético, virtual. O “empire state human” que os Human League anunciavam no álbum “Reproduction”. “O superman”, primeiro single de Laurie Anderson, extraído de “Big Science”, oito minutos de hipnose sintética, subiu ao segundo lugar do top de singles no Reino Unido.
A tarefa que Laurie Anderson se propõe levar a cabo parece à partida desmesurada, demasiado grande para poder conter em si uma mensagem minimamente compreensível pelo receptor. Robin Denselov escreveu uma vez na “Observer” que na sua obra “há inúmeros temas mas nenhuns argumentos”. Percebe-se a confusão do articulista e igualmente que não compreendeu a instauração de uma nova ordem semântica que a artista americana empreendeu, nem o significado da frase que encabeça este texto: “A linguagem é um vírus.”
Recuemos ao passado, ao fotograma inicial do filme. Laurie Anderson começou por estudar violino, passando rapidamente para as experiências interdisciplinares que viriam a caracterizar o seu trabalho futuro. Há uma prévia intoxicação de cultura. Laurie escreveu sobre arte nas conceituadas “Art in America” e “Art Form”. Deu aulas no City College de “arquitectura egípcia” e “escultura assíria”. Conta ela que, enquanto passava os “slides” para os alunos, se esquecia dos ensinamentos teóricos, ficando presa no fascínio das imagens e inventando explicações fictícias. A linguagem já então era um vírus. Foi despedida, claro.
Antes ocorrera outro tipo de intoxicação – pelas imagens-paisagens do “mid-west” americano onde viveu e cresceu, entre seus espaços amplos que permitiam o livre voo da imaginação. Laurie imaginava situações e possibilidades de novos ajustamentos da realidade. O sonho. Numa instalação montada em Queens, Nova Iorque, Laurie Anderson ilustrava a tese de que o lugar onde se dorme determina o conteúdo dos sonhos com uma série de cartazes onde era retratada a dormir em diversos locais (um museu, uma praia,,,), juntamente com a descrição do sonho respectivo.
As acções que empreendeu ao longo dos anos 60 e 70 no campo “multimédia” (como uma mesa que tocava música ao toque de um cotovelo, uma das suas primeiras instalações) permitiram-lhe o contacto e a experimentação com diversos materiais de composição: “slides”, escultura, vídeo, cinema, computador, dança, arte gestual, etc. “The Life and Times of Joseph Stalin” representou, em 1978, o resultado global desta abordagem “totalitária” da arte, através de uma experiência audiovisual com 12 horas de duração apresentada na Academia de Música de Brooklyn.
Se “Big Science”, lançado em 1982, é a primeira obra a obter o reconhecimento internacional, em parte devido ao êxito alcançado pelo single “O superman”, revelando uma artista madura (Laurie Anderson contava já nessa altura 32 anos), é na obra descomunal “United States” que se entrecruzam e entrechocam as referências mais importantes do seu trabalho. De excesso em excesso, em cinco álbuns (mais tarde reeditados em quatro compactos), divididos em 76 secções e subordinados aos tópicos “transportes”, “política”, “dinheiro” e “amor”, “United States” é o retrato pluridimensional, “sociológico”, nas palavras da autora, complementar ao posterior “Empty Spaces”, este “psicológico”, onde efectivamente nos podemos perder, defendendo-nos com o tal argumento dos “inúmeros temas e nenhuns argumentos”. Procure-se aqui a ordem nova atrás citada, as pistas, simultaneamente verdadeiras e falsas para uma nova compreensão e realinhamento do mundo (vide os Estados Unidos da América). Proeza só ao alcance do super-homem – orednar e sintetizar num discurso coerente tamanha multiplicidade de estímulos e sinais. Informação. Disponível para mil (re)criações do real.
Deus (encarado como mero conceito, logo, a uma palavra) é reduzido a uma imagem entre outras imagens. O verbo divino, dentro desta nova racionalidade, ao mesmo tempo e paradoxalmente aleatória e ordenada (“o computador [o super-homem é o homem-máquina] permite esta enorme rapidez, possibilitando a criação de um ‘patchwork’ visual dos mais variados. Tudo com rapidez e precisão”, disse a artista em entrevista concedida a Katia Canton publicada há três anos no jornal “Expresso”), constitui obviamente apenas uma outra forma de vírus linguístico. O “Fiat lux” criativo transfere-se em exclusivo para o domínio do humano. Deus será afinal o super-homem, como dizia Nietzsche. Único capaz de abarcar e percepcionar a globalidade do sistema. Sem asas, mas da altura do “empire state human”, com a perspectiva aérea, aquela que permite visionar e controlar os movimentos inferiores. Neste aspecto, Laurie Anderson descreve o mesmo quadro que David Byrne (o mapa dos “States” fotografado por satélite na capa de “More Songs about Buildings and Food”) percorre em velocidade e com mais humor.
Implantado o figurino, Laurie Anderson passou a habitar cada novo disco como um jogo de realidade virtual – manipulando imagens, sons, palavras, conceitos, o próprio corpo (a voz, através do “Vocoder”, a amplificação da percussão nas pernas e nos braços ou dos batimentos cardíacos) a seu belo prazer. Em “Mr. Heartbreak”, “Home of the Brave” (com produção de Nile Rogers e a voz de William Burroughs) e “Strange Angels”, este o álbum de inflexão pop onde Laurie canta onde antes apenas declamava. Imagem-paradigma deste novo universo simulado por um “deus ex-maschina”, em que a “realidade” e a “ilusão” se confundem, é aquela dada a “ver” num dos seus espectáculos, na canção “White lillies”, de “Home of the Brave”: o computador cria no espaço um lírio branco, electrónico, que fica suspenso no ar. Laurie Anderson debruça-se e apanha-o com a mão.
LAURIE ANDERSON
(COM BOB DYLAN E SÉRGIO GODINHO)
DIA 13, ESTÁDIO DO RESTELO

Jean-Michel Jarre – “Chronologie”

pop rock >> quarta-feira, 16.06.1993


Jean-Michel Jarre
Chronologie
CD Dreyfuss, distri. Polygram



Entre dois megaconcertos para plateias de milhões, Jean-Michel Jarre lá vai gravando, para gigantones electrónicos, as suas peças com tanto de desmesuradas como de inconsequentes. Há excepções e essas mostram que o francês, quando quer, até consegue fazer valer a sua música com o recurso a outro tipo de argumentos. É o caso de “Zoolook”, com a participação de Laurie Anderson e Adrian Belew, ou do recente “Waiting for Cousteau”, que inclui uma faixa ambiental de cinquenta e tal minutos capaz de fazer Brian Eno corar de vergonha. “Chronologie”, peça única, ambiciosa do alto das suas oito subdivisões, não pertence infelizmente a esta categoria sendo, antes, mais um daqueles pastéis em que os sintetizadores lutam uns com os outros para ver qual grita mais alto e as melodias se revolvem até à náusea na fórmula, raramente ultrapassada, de “Oxygène”. “Chronologie 4”, uma das partes dançáveis, foi repescada por uma série de grupos “rave”, entre os quais os Sunscreen, através das habituais “mixes” e “remixes” em que a única função é fazer dar ao pé com o piloto automático ligado. Deve ser difícil ser-se casado com Charlotte Rampling e ainda ter tempo para fazer música interessante. (4)