cultura >> quinta-feira >> 23.06.1994
Ciclo De Música Improvisada Em Lisboa
Silêncio, Folia E Um Elefante
Muito boa música aconteceu no Ciclo “Improvisação na Música do séc. XX”. Mas a maior, aquela que está para além das notas, teve lugar com o trio formado por Denis Colin, Didier Petit e Pablo Cueco. Solistas de outra galáxia.

Guardamos até à data na memória, como paradigma do acto de improvisação e entrega plena à música, uma memorável actuação do grupo de Michel Portal, há muitos anos, num pequeno cine-teatro em Sintra. O trio de franceses liderado pelo clarinetista baixo Denis Colin andou lá perto. Recapitulemos porém os actos prévios destas “improvisações” que decorreram segunda e terça-feira no Teatro de S. Luiz em Lisboa, uma organização das Miso Produções de Miguel Azguime integrada no programa de Lisboa-94.
Na segunda-feira, com cerca de uma centena de pessoas na sala, Miguel Azguime apresentou a peça “Ícones”, para percussão solo. Percutiu uma escada, uma vasilha (inclusive por dentro), fez cantar um vibrafone, extraiu sílabas da luz e das palavras. Intuitivo, “performer”, atento como sempre à vibração e cor dos materiais, Azguime brilhou sobretudo no já habitual desempenho em três caixas de madeira com diversas afinações/ressonâncias, dele se podendo dizer que cada vez mais se assemelha, na estética e na postura, a Stephan Micus.
Irene Schweizer é uma notável contadora de histórias. Nas citações constantes a estilos e épocas que lhe fez passear pelo teclado (e, num dos trechos, em exploração cavernosa nas entranhas do instrumento), a pianista suiça mostrou uma técnica que enfatiza a articulação e o detalhe em detrimento da energia.
Caótica foi, em certos momentos, a prestação do trio Zíngaro / Montéra / Lovens. Mais contido do que noutras ocasiões, o violinista português acabou por ser o mais atento dos três e o único que procurou pôr alguma ordem na casa. Lovens, jogando com a aleatoriedade dos gestos e dos sons, e Montéra, tecelão de mil ruídos na guitarra (deitada sobre uma mesa, submetida a mil torturas, à maneira de Fred Frith em dia de desbunda), mataram à nascença qualquer ideia ou discurso articulado que surgisse, numa espécie de “coitus interruptus” musical onde Zíngaro procurou construir pontes e acrescentar poesia.
Música Animal
No dia seguinte, a assistência era ainda menos numerosa do que na véspera. Mas as pouco mais de 70 pessoas presentes assistiram ao milagre. Partindo de peças compostas, Denis Colin, Didier Petit e Pablo Cueco deram uma lição, a vários níveis. Tocando embora para um público diminuto, entregaram-se totalmente à música, numa procura incessante de além, na ultrapassagem constante de si próprios. Fizeram teatro, no sentido mais nobre do termo, como o entendia Artaud.: não como uma imitação da vida mas sim a própria vida enquanto teatralização, encenação nua, sem filtros nem barreiras.
Didier Petit é um monge. O modo como cria no violoncelo faz dele um asceta. Orquestrador de sentimentos e dos diferentes planos do real, cantou literalmente e subiu, subiu até regiões insuspeitadas da música. Inesquecível a maneira como se “introduziu” num solo de Cueca no “zarb” (tambor de toque algures entre a “darbouka” e as tablas), fazendo-o apenas com movimentos (no sentido mais lato, música é movimento, os sons nascem depois) do instrumento e do arco, em arquitectura gestual que provou de uma vez por todas que o silêncio (fonte e término da música) pode ser moldado e audível.
Denis Colin é um prodígio. De técnica (percorre com a agilidade de um “flaneur” todas as alturas, da estridência ao telurismo abissal) e de “feeling”. O(s) seu(s) discurso(s) é percorrido pelo fogo. O corpo agita-se-lhe em folia criativa. Lirismo, humor, força, recolhimento, segundo os ditames do momento. Metamorfose. Ao ponto de numa fase em que a música inflectiu em pulsação tribal, primitiva, quase de batuque, se transformar num elefante em fúria, soltando bramidos pavorosos, abanando o clarinete baixo como uma tromba. Naquele momento, Denis Colin era um elefante, da mesma forma que um xamã confunde a sua alma humana com a dos animais.
Cueco é um percussionista ao estilo homem-aranha de Glen Velez, criando imperceptivelmente teias de soluços, síncopes, explosões, filamentos de ar, dúvidas tornadas certezas, pedras, batimentos cardíacos. Os três juntos, só visto. Ainda por cima tinham “swing”!. Saíram do palco como entraram, discretamente, por uma porta aberta no enorme painel em metal que na ocasião substituiu o pano de cena, encimado pela frase “evitai o pânico”.
Perdoem-me então finalmente Giancarlo Schiaffini e as suas impressionantes manipulações tímbricas e harmónicas realizadas no trombone com a ajuda de “live electronics”. Algures nas imediações de Stuart Dempster (na criação de tempos de reverberação artificiais), J. A. Deane (no massacre sonoro) e Terry Riley (em certas circularidades evocativas do tema “Poppy nogood and the Phantom band” de “A Rainbow in Curved Air”). Fecharam os portugueses Idéfix Generator numa onda de jazz rock bem tocado mas sem rasgos, com o saxofonista Paulo Curado em muito bom nível, por vezes em curiosa interiorização do universo de John Lurie. Lisboa 94 nem deve ter reparado, mas alguma da melhor música ao vivo deste ano esteve nestas “improvisações”.