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Meredith Monk – “Atlas”

pop rock >> quarta-feira, 13.10.1993
NOVOS LANÇAMENTOS POPROCK


ALEXANDRA, A EXPLORADORA

ATLAS
MEREDITH MONK
Atlas
2xCD, ECM, distri. Dargil





Por paradoxal que possa parecer, são por norma os artistas possuidores de uma linguagem ou um estilo mais personalizado aqueles que com maior frequência tendem para a estagnação. Por uma questão de comodidade – não nos atrevemos a chamar-lhe comodismo -, que os impele a instalarem-se nos seus territórios pessoais, por vezes arduamente conquistados. No campo das chamadas músicas minimalistas ou a elas aparentadas o risco é ainda maior, sendo o caso de Philip Glass o exemplo extremo desta acomodação. Meredith Monk, não sendo filiada de modo directo no grupo dos minimalistas, socorre-se, contudo, de esquemas semelhantes. A originalidade e, mais do que isso, o ponto de partida e diferenciação da sua música passa pela utilização especilaíssima que faz da voz, que tem explorado de forma sistemática, com o recurso a variadas técnicas e contextos – o que resultou numa espécie de genealogia da voz humana, do grito à polifonia, em álbuns como “Dolen Music”, “Turtle Dreams”, “Do You Be” ou “Book of Days”.
Depois de “Facing North” – peça antiga cuja coreografia foi apresentada há alguns meses em Portugal, no auditório da Gulbenkian -, o novo trabalho, uma ópera, apontava para um “tour de force” da voz num contexto ainda mais lato. Neste particular, “Atlas” começa por provocar uma certa desilusão, na medida em que se torna perceptível a “prisão” da artista nos parâmetros imediatamente identificáveis, do seu estilo inconfundível. Assim, há em profusão os típicos “cacarejos” de galinha cósmica, os gritos que desembocam no sussurro e vice-versa, espantando como sempre o domínio avassalador do contraste e da dinâmica, materializado nos saltos vertiginosos do abissal para o agudo quebra-vidros. “Atlas”, nesta perspectiva, pode ser encarado como uma súmula completa dos vastos recursos vocais da cantora. Poderá acontecer que a alguns lhes apeteça ouvi-la mais uma vez a romper fronteiras. Não é, pois, por aí que seremos recompensados, já que a receita não difere muito da usada em “Dolmen Music” ou “Do You Be”, surgindo o velho companheiro de sempre, Robert Een na primeira fila do “ensemble” vocal, recortado contra uma retaguarda instrumental que, desta feita, se apresenta mais diversificada que o habitual: violino, violeta, violoncelo, clarinete, clarinete baixo, bombarda, “sheng”, flauta de bisel, percussões e harmónica de vidro.
Numa linha paralela à de outros autores operáticos próximos do minimalismo, nomeadamente um Robert Ashley, para quem a palavra coincide com o “lugar” e o agente exclusivo da acção, em “Atlas” os acontecimentos seguem na “horizontal”, de forma linear (melhor dizendo, circular, na forma musical e nas constantes recorrências temáticas), sobrepostos ao tempo e aos seus múltiplos andamentos. De um ponto de vista estrutural, torna-se interessante fzer algumas comparações com o passado e com a ópera segundo Wagner, cuja verticalidade a ergue para além da dimensão temporal, ao mundo dos arquétipos. Acção simbólica pura que, na ópera contemporânea, desce ao nível da linguagem conceptual, inimiga do mistério e do sincretismo das origens. Em “Atlas”, como diz o “libreto”, “a viagem funciona como uma metáfora para a demanda espiritual e o compromisso espiritual”, viagem expressa nos “ciclos de vida” (eis bem explícita a noção do tempo circular, inscrita no cerne da linguagem minimal repetitiva) de Alexandra Daniels, “uma exploradora”, como o eram as personagens polares de “Facing North”. Nessa demanda de Alexandra, acontecem “aventuras”, “encontros com espíritos de outras dimensões” e “conflitos com demónios pessoais e sociais”. Até aqui, e reportando-nos em exclusivo ao nível da acção, nada diferencia “Atlas” de uma ópera tradicional. O tema da “demanda espiritual” é até, de resto, fulcral na arquitectura de Wagner. É, porém, na tal “queda”, na transposição do mito para o “mundo moderno”, no acerto pelas agulhas do relógio, que “Atlas”, à imagem do herói grego, se verga ao peso do mundo. Porque é no mundo – e não na impossível fusão do indivíduo com a grande noite matricial que Wagner e a generalidade dos românticos pretendiam – e só no mundo que a síntese se produz e a viagem faz sentido. Já não em direcção do transcendente mas sim da autodescoberta. Num meio social e vivencial determinado, no seio do qual Alexandra “fecha o círculo”. Percurso iniciático entre “as suas primeiras memórias, do cheiro matinal do café” e “a sua aspiração em procurar o desconhecido”, ao longo do qual Alexandra Daniels “encontrou o que procurava nos actos simples da vida e na ternura do momento” e em que o que “parecia ter sido a descrição de uma expedição” se tornou “a viagem interior de uma alma”.



Não poderia ser de outro modo. “Atlas”, no desenrolar constante de vozes em círculo, aproxima-se das concepções do espírito oriental – jamais “filosóficas”, no sentido ocidental, idealista do termo – para se situar nos antípodas da ópera europeia, como Wagner a entendeu. Num terreno similar aos de Glass, Reich ou Riley – todos eles orientalistas declarados, por muito que o primeiro pretenda fazer crer o contrário – Meredith Monk afasta-se deles enquanto insiste nessa busca de um além, em embarcar numa viagem que parta de um ponto para chegar a um nível outro de realidade. A tragédia está em que, tendo Meredith Monk a possibilidade de se libertar pela única saída possível – a voz, elemento instaurador de outras ordens e significados -, acaba por ser esta mesma voz que, permanecendo amarrada à estética minimal, da circularidade, se vê condenada a eternamente regressar ao ponto de partida, apesar de todas as declarações de intenções em contrário. Afinal o mesmo destino trágico – a repetição “ad aeternum”, que só a morte permitiria ultrapassar – que estava reservado aos românticos, todos eles perdidos na contemplação do Oriente. (7)


Bob Dylan + Laurie Anderson – “Bob Dylan Confunde Público Em Cascais – As Camuflagens Do Trovador”

cultura >> quinta-feira, 15.07.1993


Bob Dylan Confunde Público Em Cascais
As Camuflagens Do Trovador


Bob Dylan esteve bem disposto. No Dramático de Cascais cantou durante mais de duas horas, sem vacilar, e até sorriu para uma assistência que com ele manteve uma relação de amor e ódio. Laurie Anderson fez o que pôde para combater o som, péssimo, e a indiferença dos que vinham para ouvir o trovador.



Dylan está em forma. É o que se pode depreender da actuação que o cantor americano deu na noite de terça-feira no pavilhão do Dramático de Cascais que não chegou a encher. Em mais uma etapa da sua “digressão interminável” com a qual o cantor parece querer terminar os seus dias, houve alguns equívocos, muita energia e uma reacção da parte do público que se pode considerar, no mínimo, paradoxal.
Trinta anos de carreira é muita carreira. Dylan está farto das canções antigas. O problema está em que o seu público, não. Mas, como dizia alguém antes do concerto começar, “o problema é dele, que as há-de cantar”. E cantou, mas de maneira a trocar as voltas aos saudosistas, com arranjos onde a improvisação ganhou lugar de destaque, estendendo velhos temas de cinco minutos por longas “jam sessions” instrumentais.
A reacção do público foi então um misto de atracção e de recusa. Primeiro, era o reconhecimento do tema, acompanhado de forte algazarra e aplausos generalizados. Depois, e à medida que os arranjos iam tornando os temas praticamente irreconhecíveis, as reacções passavam, pela ordem indicada, pelo desassossego, a impaciência e a exasperação, com alguns insultos à mistura. No final, os aplausos regressavam. Sobre o palco, impávido e sereno, dando mesmo sinais de alguma simpatia pelos simples mortais que se agitavam na sua frente (uma sugestão de sorriso, uma palheta atirada, qual maná dos deusses, para os fiéis da frente) Dylan levou a sua avante e mostrou que soube evoluir, ao contrário de grande parte dos seus admiradores que deixaram de ter pedalada para o acompanhar a partir dos anos 60.
De “Hard times”, o tema que abriu o concerto (e não “A hard rain’s gonna fall”, como erradamente se escreveu na nota de reportagem de última página na edição de quarta-feira do PÚBLICO), até ao segundo e último “encore”, “It ain’t me baby”, Bob Dylan alternou o frenesim eléctrico com interpretações acústicas, num e noutro caso transformando velhas canções como “Just like a woman”, “Tangled up in blue” e “Mr. Tambourine man” em temas que pouco ou nada tinham a ver com os originais. As pessoas agarraram-se ao que puderam, na ânsia de obterem o Dylan a que julgavam ter direito: as inconfundíveis prestações na harmónica, as vocalizações mais nasaladas do que nunca, as letras das canções, quando o som o permitia.
Na primeira parte, e com Sérgio Godinho arredado da questão devido às habituais “dificuldades técnicas”, Laurie Anderson viu-se e desejou-se para fazer passar a sua mensagem de “performer” afastada dos gostos e das tendências de consumo mais normalizadas. Enquadrada numa formação “normal” de contrabaixo, bateria e percussões (o lendário acordeonista Guy Klucevsek nunca se chegou verdadeiramente a ouvir…) a artista adaptou-se como pôde às más condições sonoras e ao ambiente desfavorável, explorando uma via mais imediatista que aos poucos foi ganhando a adesão do público, na maioria desconhecedor da sua música. Mesmo se para tal teve de recorrer a truques como cantar o “parabéns a você” ou aos temas que estão mais próximos do que se poderá chamar uma sensibilidade pop, de veia latino-americana, que por mais de uma vez recordaram música recente de David Byrne. No “encore” da praxe, em “Ramon”, uma das canções mais acessíveis do álbum “Strange Angels”, Laurie Anderson acendeu o arco de néon do seu violino transformado, reproduzindo a foto da contracapa de “Big Science”. Uma imagem, entre mil outras imagens que formam o universo onírico da artista, que em Cascais ficou reduzida à sua dimensão espectacular.
Mas as pessoas tinham vindo para ouvir o mito e saíram satisfeitas. Pronto, Dylan já canta. Venha o próximo: Paul McCartney, Cliff Richard ou – porque não? – Elvis Presley, numa sessão de espiritismo em Alvalade.

Laurie Anderson + Sérgio Godinho + Bob Dylan – “Estados Unidos Da Ficção”

pop rock >> quarta-feira, 07.07.1993


ESTADOS UNIDOS DA FICÇÃO

“A linguagem é um vírus do espaço.” A frase, da autoris de William Burroughs, é repetida por Laurie Anderson no álbum “Home of the Brave”. Faz sentido. Dizer, dizer tudo. Em sons, imagens e ficções, nos antípodas da linguagem convencional. Disse um dia que “o português é uma língua linda”. Vem a Portugal cantar ao lado de Dylan, sua antítese dialéctica.



Comunicação/incomunicação. Entre humanos e humanos, entre humanos e máquinas, entre máquina e máquinas. “Big Science”. Alquimia do verbo aprisionado na Babel dos infinitos sentidos. A linguagem, no centro da acção. Operação cirúrgica tendo por objectivo a criação do novo homem, enorme de signos, de apêndices tecnológicos, de memória computorizada. O homem arranha-céus, multiforme, sintético, virtual. O “empire state human” que os Human League anunciavam no álbum “Reproduction”. “O superman”, primeiro single de Laurie Anderson, extraído de “Big Science”, oito minutos de hipnose sintética, subiu ao segundo lugar do top de singles no Reino Unido.
A tarefa que Laurie Anderson se propõe levar a cabo parece à partida desmesurada, demasiado grande para poder conter em si uma mensagem minimamente compreensível pelo receptor. Robin Denselov escreveu uma vez na “Observer” que na sua obra “há inúmeros temas mas nenhuns argumentos”. Percebe-se a confusão do articulista e igualmente que não compreendeu a instauração de uma nova ordem semântica que a artista americana empreendeu, nem o significado da frase que encabeça este texto: “A linguagem é um vírus.”
Recuemos ao passado, ao fotograma inicial do filme. Laurie Anderson começou por estudar violino, passando rapidamente para as experiências interdisciplinares que viriam a caracterizar o seu trabalho futuro. Há uma prévia intoxicação de cultura. Laurie escreveu sobre arte nas conceituadas “Art in America” e “Art Form”. Deu aulas no City College de “arquitectura egípcia” e “escultura assíria”. Conta ela que, enquanto passava os “slides” para os alunos, se esquecia dos ensinamentos teóricos, ficando presa no fascínio das imagens e inventando explicações fictícias. A linguagem já então era um vírus. Foi despedida, claro.
Antes ocorrera outro tipo de intoxicação – pelas imagens-paisagens do “mid-west” americano onde viveu e cresceu, entre seus espaços amplos que permitiam o livre voo da imaginação. Laurie imaginava situações e possibilidades de novos ajustamentos da realidade. O sonho. Numa instalação montada em Queens, Nova Iorque, Laurie Anderson ilustrava a tese de que o lugar onde se dorme determina o conteúdo dos sonhos com uma série de cartazes onde era retratada a dormir em diversos locais (um museu, uma praia,,,), juntamente com a descrição do sonho respectivo.
As acções que empreendeu ao longo dos anos 60 e 70 no campo “multimédia” (como uma mesa que tocava música ao toque de um cotovelo, uma das suas primeiras instalações) permitiram-lhe o contacto e a experimentação com diversos materiais de composição: “slides”, escultura, vídeo, cinema, computador, dança, arte gestual, etc. “The Life and Times of Joseph Stalin” representou, em 1978, o resultado global desta abordagem “totalitária” da arte, através de uma experiência audiovisual com 12 horas de duração apresentada na Academia de Música de Brooklyn.
Se “Big Science”, lançado em 1982, é a primeira obra a obter o reconhecimento internacional, em parte devido ao êxito alcançado pelo single “O superman”, revelando uma artista madura (Laurie Anderson contava já nessa altura 32 anos), é na obra descomunal “United States” que se entrecruzam e entrechocam as referências mais importantes do seu trabalho. De excesso em excesso, em cinco álbuns (mais tarde reeditados em quatro compactos), divididos em 76 secções e subordinados aos tópicos “transportes”, “política”, “dinheiro” e “amor”, “United States” é o retrato pluridimensional, “sociológico”, nas palavras da autora, complementar ao posterior “Empty Spaces”, este “psicológico”, onde efectivamente nos podemos perder, defendendo-nos com o tal argumento dos “inúmeros temas e nenhuns argumentos”. Procure-se aqui a ordem nova atrás citada, as pistas, simultaneamente verdadeiras e falsas para uma nova compreensão e realinhamento do mundo (vide os Estados Unidos da América). Proeza só ao alcance do super-homem – orednar e sintetizar num discurso coerente tamanha multiplicidade de estímulos e sinais. Informação. Disponível para mil (re)criações do real.
Deus (encarado como mero conceito, logo, a uma palavra) é reduzido a uma imagem entre outras imagens. O verbo divino, dentro desta nova racionalidade, ao mesmo tempo e paradoxalmente aleatória e ordenada (“o computador [o super-homem é o homem-máquina] permite esta enorme rapidez, possibilitando a criação de um ‘patchwork’ visual dos mais variados. Tudo com rapidez e precisão”, disse a artista em entrevista concedida a Katia Canton publicada há três anos no jornal “Expresso”), constitui obviamente apenas uma outra forma de vírus linguístico. O “Fiat lux” criativo transfere-se em exclusivo para o domínio do humano. Deus será afinal o super-homem, como dizia Nietzsche. Único capaz de abarcar e percepcionar a globalidade do sistema. Sem asas, mas da altura do “empire state human”, com a perspectiva aérea, aquela que permite visionar e controlar os movimentos inferiores. Neste aspecto, Laurie Anderson descreve o mesmo quadro que David Byrne (o mapa dos “States” fotografado por satélite na capa de “More Songs about Buildings and Food”) percorre em velocidade e com mais humor.
Implantado o figurino, Laurie Anderson passou a habitar cada novo disco como um jogo de realidade virtual – manipulando imagens, sons, palavras, conceitos, o próprio corpo (a voz, através do “Vocoder”, a amplificação da percussão nas pernas e nos braços ou dos batimentos cardíacos) a seu belo prazer. Em “Mr. Heartbreak”, “Home of the Brave” (com produção de Nile Rogers e a voz de William Burroughs) e “Strange Angels”, este o álbum de inflexão pop onde Laurie canta onde antes apenas declamava. Imagem-paradigma deste novo universo simulado por um “deus ex-maschina”, em que a “realidade” e a “ilusão” se confundem, é aquela dada a “ver” num dos seus espectáculos, na canção “White lillies”, de “Home of the Brave”: o computador cria no espaço um lírio branco, electrónico, que fica suspenso no ar. Laurie Anderson debruça-se e apanha-o com a mão.
LAURIE ANDERSON
(COM BOB DYLAN E SÉRGIO GODINHO)
DIA 13, ESTÁDIO DO RESTELO