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Sérgio Godinho – “Sérgio Godinho Inaugura Novo Espectáculo No Porto – O Gosto Das Palavras”

cultura >> segunda-feira, 22.11.1993


Sérgio Godinho Inaugura Novo Espectáculo No Porto
O Gosto Das Palavras



Um triunfo em toda a linha assinalou o regresso de Sérgio Godinho à cidade do Porto. No novo espectáculo, de genérico “A Face Visível”, o autor de “Tinta Permanente” saboreou e deu a saborear as palavras e novos arranjos de canções que nos falam como se fosse sempre o primeiro dia. A digestão da luz fez-nos bem. Lisboa terá oportunidade de ouvir Sérgio Godinho nos próximos dias 24, 25, 26 e 27, no Teatro de São Luiz.

Vinte e oito canções, casa cheia, enstusiasmo crescente da assistência à medida que o concerto decorria. Sérgio Godinho punha em prática uma estratégia de conquista planificada ao segundo. Eis as medidas exteriores do êxito desta “Face Visível” – “Segredo da luz levantando o som, segredo do som estilhaçando a luz”, como quis o escritor de canções a “Tinta Permanente”.
Pelo lado de dentro sobressaíram a força interpretativa e o empenho de todos os músicos. E as canções, recentes umas, revisitadas outras, vestidas na totalidade com novos arranjos capazes de iluminar de novos ângulos as palavras que muitos aprenderam a sentir e trautear.
Melhor que isto só “Melhor que o amor”, primeiro foco de luz a mergulhar nas entranhas das palavras, para lhes tirar o sumo e recriar o sentido. Desde logo tornou-se evidente a importância do coro feminino – Filipa Pais, Dora e Sandra Fidalgo – no novo figurino harmónico das canções. As três, não sendo tristes nem tigres, foram originais, divertidas e cem por cento eficazes. Entrelaçaram-se num “canon” intricado logo no primeiro tema, deram espectáculo em “Espectáculo”, fizeram-se velhas guinchantes e suspirantes no “Coro das Velhas”, foram cascata de reflexos e refracções. Tudo o que um coro deve ser. Diferente do mero artefacto decorativo com saia curta e decote cavado que costuma ser (o ideal é juntar o que deve ser ao que costuma ser). E já que falamos da criatividade dos arranjos, é necessário fazer incidir os holofotes sobre a figura que se sentou à esquerda do palco em frente a um piano: João Paulo Esteves da Silva, director musical e estratego-mor deste espectáculo. A ele se deve o baralhar e dar de novo das canções. E o traçar de caminhos no piano, com agilidade de mãos, fluência de raciocínio e afecto no coração.
Em termos de apreciação individual, saliente-se de igual modo o notável trabalho de José Salgueiro nas percussões, ora subtis e quase subliminares como o voo de um insecto, ora pujantes e afirmativas como um tambor de guerra. Retemos na memória o solo que assinou em “Caramba”. Jorge Reis, nos sopros, alternou bons momentos (um “Coro das Velhas”, “Pequenos Delírios Domésticos”) com outros de alguma hesitação. Igualmente bem esteve, sobretudo no contrabaixo, Mário Franco. Dialogou sempre a-propósito com o piano e a voz, solou em “Horas Extraordinárias”, chorou no túmulo, no arrastar do arco, nas notas finais sem esperança de “Pequenos Delírios Domésticos”. Cumpriram sem grandes deslumbramentos António Pinto, na guitarra eléctrica e Paleka, na bateria. Filipa Pais, mais solta do que há duas noites atrás no concerto de Vitorino, no CCB, em Lisboa, cantou em dueto com Sérgio Godinho “Balada da Rita” com a dose suficiente de emoção.

Intimismo, Festa, Humor

Claro que tudo isto seria nada sem as canções e a voz de Sérgio Godinho. As primeiras fazem já parte da História. A segunda é outra história que acredita que há sempre novas maneiras de a sai própria se contar. Sérgio Godinho, a cada vez mais, mostra o gosto pelas palavras. Canta-as como se as saboreasse. E ainda se espanta com elas o que significa que continua a saber ouvi-las. Descobre-as, antigas – “Arranja-me um Emprego”, “Quimera de Ouro”, “Senhor Marquês” – como sendo outras. E volta a cantá-las com a mesma urgência e porque não dizê-lo, o mesmo apetite.
Sérgio Godinho passeou entre o intimismo, a festa e o humor (nas apresentações das canções, em pequenos apartes, no diálogo mantido com a plateia e os outros músicos, que contribuíram para o clima de familiaridade que se instalou na sala. “Coro das Velhas” mostrou-se absolutamente efusivo. “O Carteiro” de António Mafra deu origem a desbunda em ritmo de “skiffle”. “A Democracia” não foi palavra vã num “rap calypso” que voltou a deixar recados. Noutro falso “rap” passou a ironia e a vida que o reumatismo vai minando, em o “Elixir da Eterna Juventude”. O silêncio desceu em “Enfim S. O. S.”, “Pequenos Delírios Domésticos”, nas fabulosas “Fotos de Fogo” (desde já um dos clássicos do autor) e em “Lisboa que Amanhece”.
“O Porto Aqui Tão Perto” e “O Fim de Tudo” fecharam a “Face Visível”, mas não deixaram saciada a assistência: Quatro “encores” – “Com um Brilhozinho nos Olhos”, “É Terça-Feira”, “O Namoro” e “O Primeiro Dia” – serviram acima de tudo para cada um cantar a própria memória. O pano desceu. O Rivoli vai fechar para obras. Até que novas faces se revelem. Nos próximos dias 24, 25, 26 e 27, no Teatro de São Luiz, Lisboa, vai assistir a um grande espectáculo por um grande artista.

Sérgio Godinho – “Exposição à Luz” (concertos | antevisão)

pop rock >> quarta-feira, 17.11.1993


EXPOSIÇÃO À LUZ



Sérgio Godinho vai mostrar 2ª Face Visível”, título inspirado na sua canção “A face visível da Lua”. No próximo sábado, no Porto, e na quarta-feira e no sábado da semana seguinte, em Lisboa, o autor do recente “Tinta Permanente” volta às actuações ao vivo, depois do sucesso alcançado com o anterior espectáculo 2Escritor de Canções”. O novo encontro ao vivo, de genérico “A Face Visível”, será, nas palavras de Sérgio Godinho, “bastante enérgico” embora integre momentos de maior intimismo (como será o caso de uma canção interpretada só com a guitarra acústica) e “mais exteriorizado” que “escritor de Canções”. Sérgio Godinho cantará os nove temas que compõem “Tinta Permanente”, num total de 28 canções que preencherão oo concerto. Temas antigos, outros menos, que Sérgio Godinho gosta de “tirar da prateleira”, mas que vão ter novos arranjos. “Vou sempre a uma lista básica de canções e depois olho para os meus discos e escolho. Por exemplo, vamos tocar o “Caramba”, do álbum “Canto da Boca”, que se presta muito às vozes e a um jogo interactivo entre os músicos. Não há canções que eu considere obrigatórias, embora haja algumas que possam ser consideradas como os “greatest hits” [risos]. O João Paulo está a fazer versões que, embora não as tornem irreconhecíveis, reflectem contudo, uma atitude um bocado diferente. Quando uma pessoa trabalha comigo gosto que dê os seus palpites.”
“A Face Visível” será ainda o reatar de velhas e o estabelecimento de novas relações entre o músico e o público. “Há muito tempo que não punha um concerto de pé”, diz, “e é evidente que quando fiz o ‘Tinta Permanente’ seria lógico que o fizesse. O disco saiu no fim de Abril, já um bocado em cima do Verão, havia outros compromissos e por isso só agora foi possível fazê-lo. Até porque agora me apeteceu tocar com uma formação mais alargada.”
Coincidência é o facto de o primeiro espectáculo se realizar no Porto, como coincidência é ainda fazer este mês uma ano desde que “Escritor de Canções” foi apresentado pela primeira vez ao vivo nesta cidade, precisamente no mesmo Rivoli.
“A Face Visível” será provavelmente o último espectáculo realizado no velhinho Rivoli, antes de sofrer obras de remodelação. “Não sei”, brinca o autor de “Sobreviventes”, “se assim for até podemos escaqueirar no fim aquilo tudo, desde os camarins até à sala [risos], de preferência com martelinhos.”
Que “face visível” será então dada a ver? “É o palco, o sítio onde estamos meis expostos. À luz.” Com Sérgio Godinho, vão estar em palco João Paulo Esteves da Silva, piano e direcção musical, Mário Franco, baixo e contrabaixo, António Pinto, guitarra, Paleka, bateria, José Salgueiro, percussões, Jorge Reis, saxofones, Filipa Pais, Sandra e Dora Fidalgo, coros.
Dia 20,
Teatro Rivoli,
Porto, 22h
Dias 24 e 27,
Teatro S. Luiz,
Lisboa, 22h

Laurie Anderson + Sérgio Godinho + Bob Dylan – “Estados Unidos Da Ficção”

pop rock >> quarta-feira, 07.07.1993


ESTADOS UNIDOS DA FICÇÃO

“A linguagem é um vírus do espaço.” A frase, da autoris de William Burroughs, é repetida por Laurie Anderson no álbum “Home of the Brave”. Faz sentido. Dizer, dizer tudo. Em sons, imagens e ficções, nos antípodas da linguagem convencional. Disse um dia que “o português é uma língua linda”. Vem a Portugal cantar ao lado de Dylan, sua antítese dialéctica.



Comunicação/incomunicação. Entre humanos e humanos, entre humanos e máquinas, entre máquina e máquinas. “Big Science”. Alquimia do verbo aprisionado na Babel dos infinitos sentidos. A linguagem, no centro da acção. Operação cirúrgica tendo por objectivo a criação do novo homem, enorme de signos, de apêndices tecnológicos, de memória computorizada. O homem arranha-céus, multiforme, sintético, virtual. O “empire state human” que os Human League anunciavam no álbum “Reproduction”. “O superman”, primeiro single de Laurie Anderson, extraído de “Big Science”, oito minutos de hipnose sintética, subiu ao segundo lugar do top de singles no Reino Unido.
A tarefa que Laurie Anderson se propõe levar a cabo parece à partida desmesurada, demasiado grande para poder conter em si uma mensagem minimamente compreensível pelo receptor. Robin Denselov escreveu uma vez na “Observer” que na sua obra “há inúmeros temas mas nenhuns argumentos”. Percebe-se a confusão do articulista e igualmente que não compreendeu a instauração de uma nova ordem semântica que a artista americana empreendeu, nem o significado da frase que encabeça este texto: “A linguagem é um vírus.”
Recuemos ao passado, ao fotograma inicial do filme. Laurie Anderson começou por estudar violino, passando rapidamente para as experiências interdisciplinares que viriam a caracterizar o seu trabalho futuro. Há uma prévia intoxicação de cultura. Laurie escreveu sobre arte nas conceituadas “Art in America” e “Art Form”. Deu aulas no City College de “arquitectura egípcia” e “escultura assíria”. Conta ela que, enquanto passava os “slides” para os alunos, se esquecia dos ensinamentos teóricos, ficando presa no fascínio das imagens e inventando explicações fictícias. A linguagem já então era um vírus. Foi despedida, claro.
Antes ocorrera outro tipo de intoxicação – pelas imagens-paisagens do “mid-west” americano onde viveu e cresceu, entre seus espaços amplos que permitiam o livre voo da imaginação. Laurie imaginava situações e possibilidades de novos ajustamentos da realidade. O sonho. Numa instalação montada em Queens, Nova Iorque, Laurie Anderson ilustrava a tese de que o lugar onde se dorme determina o conteúdo dos sonhos com uma série de cartazes onde era retratada a dormir em diversos locais (um museu, uma praia,,,), juntamente com a descrição do sonho respectivo.
As acções que empreendeu ao longo dos anos 60 e 70 no campo “multimédia” (como uma mesa que tocava música ao toque de um cotovelo, uma das suas primeiras instalações) permitiram-lhe o contacto e a experimentação com diversos materiais de composição: “slides”, escultura, vídeo, cinema, computador, dança, arte gestual, etc. “The Life and Times of Joseph Stalin” representou, em 1978, o resultado global desta abordagem “totalitária” da arte, através de uma experiência audiovisual com 12 horas de duração apresentada na Academia de Música de Brooklyn.
Se “Big Science”, lançado em 1982, é a primeira obra a obter o reconhecimento internacional, em parte devido ao êxito alcançado pelo single “O superman”, revelando uma artista madura (Laurie Anderson contava já nessa altura 32 anos), é na obra descomunal “United States” que se entrecruzam e entrechocam as referências mais importantes do seu trabalho. De excesso em excesso, em cinco álbuns (mais tarde reeditados em quatro compactos), divididos em 76 secções e subordinados aos tópicos “transportes”, “política”, “dinheiro” e “amor”, “United States” é o retrato pluridimensional, “sociológico”, nas palavras da autora, complementar ao posterior “Empty Spaces”, este “psicológico”, onde efectivamente nos podemos perder, defendendo-nos com o tal argumento dos “inúmeros temas e nenhuns argumentos”. Procure-se aqui a ordem nova atrás citada, as pistas, simultaneamente verdadeiras e falsas para uma nova compreensão e realinhamento do mundo (vide os Estados Unidos da América). Proeza só ao alcance do super-homem – orednar e sintetizar num discurso coerente tamanha multiplicidade de estímulos e sinais. Informação. Disponível para mil (re)criações do real.
Deus (encarado como mero conceito, logo, a uma palavra) é reduzido a uma imagem entre outras imagens. O verbo divino, dentro desta nova racionalidade, ao mesmo tempo e paradoxalmente aleatória e ordenada (“o computador [o super-homem é o homem-máquina] permite esta enorme rapidez, possibilitando a criação de um ‘patchwork’ visual dos mais variados. Tudo com rapidez e precisão”, disse a artista em entrevista concedida a Katia Canton publicada há três anos no jornal “Expresso”), constitui obviamente apenas uma outra forma de vírus linguístico. O “Fiat lux” criativo transfere-se em exclusivo para o domínio do humano. Deus será afinal o super-homem, como dizia Nietzsche. Único capaz de abarcar e percepcionar a globalidade do sistema. Sem asas, mas da altura do “empire state human”, com a perspectiva aérea, aquela que permite visionar e controlar os movimentos inferiores. Neste aspecto, Laurie Anderson descreve o mesmo quadro que David Byrne (o mapa dos “States” fotografado por satélite na capa de “More Songs about Buildings and Food”) percorre em velocidade e com mais humor.
Implantado o figurino, Laurie Anderson passou a habitar cada novo disco como um jogo de realidade virtual – manipulando imagens, sons, palavras, conceitos, o próprio corpo (a voz, através do “Vocoder”, a amplificação da percussão nas pernas e nos braços ou dos batimentos cardíacos) a seu belo prazer. Em “Mr. Heartbreak”, “Home of the Brave” (com produção de Nile Rogers e a voz de William Burroughs) e “Strange Angels”, este o álbum de inflexão pop onde Laurie canta onde antes apenas declamava. Imagem-paradigma deste novo universo simulado por um “deus ex-maschina”, em que a “realidade” e a “ilusão” se confundem, é aquela dada a “ver” num dos seus espectáculos, na canção “White lillies”, de “Home of the Brave”: o computador cria no espaço um lírio branco, electrónico, que fica suspenso no ar. Laurie Anderson debruça-se e apanha-o com a mão.
LAURIE ANDERSON
(COM BOB DYLAN E SÉRGIO GODINHO)
DIA 13, ESTÁDIO DO RESTELO