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Vários (Quarteto Cedrón e la Típica + El Vieju Almacén) – “Tangos E Milongas Argentinas Regressam A Portugal – Velho Armazém Cheio De Músicos E Poetas” (concertos | antevisão)

cultura >> domingo, 16.04.1995


Tangos E Milongas Argentinas Regressam A Portugal
Velho Armazém Cheio De Músicos E Poetas


O “melhor de Buenos Aires”, passe o exagero, são os tangos. A dança mais erótica que se conhece, pelo menos em público, vem a Portugal, trazida pelos grupos Quarteto Cedrón e la Típica e El Vieju Almacén. Uma semana inteira de seduções, em Lisboa e no Porto.



Lisboa e Porto poderão voltar a vibrar com a música e as coreografias de paixão, engate e rejeição do tango argentino, música de corpos que se amam e digladiam na busca da impossível unidade. Rodopio de sensualidade, por vezes tão explícita, que levou o Vaticano a considerar imoral esta forma de dança.
Assim, o Quarteto Cedrón e la Típica actuará no Teatro da Trindade, em Lisboa, no dia 18, terça-feira, às 21h45, enquanto o outro grupo, El Vieju Almacén, se apresentará no mesmo local e à mesma hora nos dias 19, 20, 21, 22 e 24, e a 23 e 25 às 16h. Numa iniciativa do INATEL, com produção Eutaxia e a colaboração da Cumbre Mundial del Tango, em Granada, Espanha. O Porto vai, por sua vez, receber o Quarteto Cedrón e a sua orquestra de tango La Típica, no próximo dia 20, quinta-feira, pelas 22h, numa produção do Mundo de Aventuras com o Institut Français de Porto. Um regresso que se festeja, após o triunfo em toda a linha alcançado por este agrupamento na sua visita à capital nortenha, no Rivoli, em Abril de 1993.
Desta vez o Quarteto (que também já actuou em Lisboa, no Institut Franco-Portugais, nos três primeiros dias de Abril de 1993, e em Braga, dois dias mais tarde) traz consigo um par de bailarinos – Jorge Rodriguez e Teresa Cunha – e uma orquestra de tango, La Típica, formada por sete elementos, entre os quais o prestigiado pianista Gustavo Beytelman, além dos dois Cédron, Juan, na voz e guitarra, e Roman, no contrabaixo. Completam a formação, dois intérpretes de “bandoneon”, como não podia deixar de ser, Daniel Cabrera e Eduardo Garcia, e dois violinistas, Antonio Magri e Miguel Praino. A orquestra, mais recente que o Quarteto, cujo nascimento remonta a 1964, foi formada em 1989, dedicando-se à execução de vários géneros musicais de Buenos Aires, dos anos 40 e 50, tangos e milongas incluídos, obviamente.
Eduardo Rovira, Astor Piazzola e Osvaldo Tarantino (dois bandeonistas míticos) e o “jazzman” Steve Lacy contam-de entre os músicos com os quais o Quarteto já colaborou. Presente na inauguração, em 1967, do café-concerto Gotan, de Buenos Aires, o Quarteto Cedrón musicou as palavras de Brecht, Dylan Thomas, António Machado, Julio Cortázar, Gonzales Tunon, Juan Gelman e Jorge Luís Borges. O mesmo Borges que um dia se referiu a “esse tango irremediavelmente urbano, que exalta a dor, as ilusões perdidas, os rostos de todos os exílios e que é o reflexo e a síntese da cidade”. O “Tango Primeur”. Também o título de um dos álbuns recentes deste grupo que, permanecendo arreigado à história, às gentes e aos sons arrepiantes da capital argentina não receou procurar mais longe outras fontes de inspiração, como fez num álbum dedicado às canções de amor da ancestral Occitânica, designação geral para todo o Sul de França pnde se falava a antiga língua de Oc.
O segundo agrupamento argentino que agora nos visita chama-se El Vieju Almacén, “o velho armazém, lugar onde iam os que tinham perdido a fé”. Lugar construído, como o próprio nome indica, num velho armazém, por Edmundo Rivera – depois do grande Gardel, um dos cantores emblemáticos da Argentina -, o maestro Carlos Garcia Alavarez Vieyrra, e que foi considerado por muitos anos o “templo do tango argentino”, com o seu ambiente onde se “sentia e cheirava o tango”, criado pelo cenógrafo do teatro Colòn, Fidei Scillon. O “velho armazém” fechou entretanto por questões fiscais, mas o espírito, esse não morreu, transportado agora na errância itinerante de um sexteto com o mesmo nome. Edmundo “Muny” Rivera, cantor, guitarrista e compositor, filho de Edmundo Rivera, conduz os destinos actuais do Vieju Almacén. Com uma cantora, Graciela Arselli, um bandeonista, Roberto Pansera, um saxofonista / flautista, Julian Vat, um pianista / violoncelista, Marcelo Macri, e um contrabaixista, Enrique Guerra. E, claro, dois pares de bailarinos – Natalia e Diego, mais Claudio e Pilar – para o eterno ritual do “tango pasión”.

Skolvan + Fairport Convention – “Bretões Skolvan Escrevem Página Dourada No Segundo Dia Do Intercéltico – O Sangue E O Circo”

cultura >> segunda-feira, 10.04.1995


Bretões Skolvan Escrevem Página Dourada No Segundo Dia Do Intercéltico
O Sangue E O Circo



AO CONTRÁRIO do que aconteceu na noite de estreia, o cinema do Terço, no Porto, esgotou no sábado, segundo dia do Intercéltico, para ouvir os Skolvan e os Fairport Convention, duas bandas com nome feito embora por razões diferentes. Os primeiros são “só” o melhor grupo tradicional da Bretanha da actualidade, e o seu último álbum, “Swings & Teras”, um dos melhores do ano, para a maioria das publicações europeias da especialidade. Os segundos já foram importantes, há cerca de um quarto de século atrás, quando o folk rock ensaiava à sua custa os primeiros passos na Grã-Bretanha. O público, cá como lá fora, claro, é que não liga peva a essas coisas e aclamou a banda de velhotes como heróis.
Sem sombra de espectáculo, preocupados exclusivamente em tirar o máximo partido das danças típicas da Bretanha, os Skolvan empolgaram pela positiva. Foram certeiros na abordagem e tratamento das “gavottes”, “laridés”, “ridées”, “na dros”, “dans plinn” e “dans fisel” que ainda hoje animam as noites de dança na Bretanha. Não se limitando a uma atitude de veneração basbaque, exploraram ao máximo as fundações da tradição para com elas erguer um edifício ao futuro. Youenn Le Bihan foi operário e artista de um quarteto que fez sangue, rasgando cada tema até lhe espremer o sumo. Na bombarda, instrumento que exige do executante uma “endurance” especial, e no “piston” (afinal não o instrumento popular com este nome, muito utilizado no século passado, que havíamos referido num texto anterior, mas uma invenção do próprio Le Bihan, espécie de oboé rústico, de timbre mais doce que o da bombarda) o som agreste mas insinuante das palhetas duplas teve no músico um intérprete de excepção. E se o Terço não se transformou numa “festoù-noz” foi porque não havia espaço e a música dos Skolvan, quando a ocasião o exige, faz também mover o espírito. Yann-Fanch Perroches funcionou como uma máquina, na concertina. Grande parte dos contrapontos melódicos passaram pelas suas “drones” nos foles. Com idêntica função esteve o guitarrista Gilles le Bigot, que num dos raros temas lentos da noite, “Les pêcheurs”, do álbum “Swing & Tears”, solou com o balanço moldado a profundidade e espuma das ondas do mar. Fanch Landreau, além do ocasional “biniou” (gaita-de-foles) – nos diálogos com a bombarda, característicos dos “sonneurs” – violinizou com ligeireza, mostrando de quando em vez uma certa queda para as cadências irlandesas. Em conjunto, os Skolvan são caçadores. Há um sentido certo na sua música, um caminho plenamente delineado, um alvo a atingir. O sangue, as rochas, o mar, as lendas, a magia da Bretanha, têm no grupo uma voz nova. Serviram de exemplo. O mesmo não se pode dizer dos Fairport Convention. As dificuldades técnicas surgidas no início do espectáculo não podem servir de desculpa para uma actuação que viveu das recordações e se propôs entreter com um número de circo. Temas antigos como “Matty groves”, “Sir Patrick Stevens” ou o “medley” “Dirty Linen” já não são o que eram mas nem sequer foi isso o mais grave. O que se lamenta é a atitude de recusa em assumir responsabilidades – é preciso não esquecer que Simon Nicol, Dave Pegg e Dave Mattacks estão no grupo praticamente desde o início – criadas por um passado escrito em letras douradas por músicos como Richard Thompson, Dave Swarbrick e Sandy Denny. E por falar nesta última, lamenta-se que o grupo se tenha esquecido de referir o seu nome na apresentação de “Crazy Man Michael”, uma das interpretações antológicas desta cantora no álbum “Liege & Lief”. Em vez disso dedicaram a canção a uma tal Sheena, presente na sala.
Os Fairport Convention querem dar ares de banda eternamente rejuvenescida, cujos músicos jamais envelhecem, eternos brincalhões que se podem dar ao luxo de fazer o que bem entendem. Ninguém lhes nega esse direito e até lhes ficaria bem se a música não estivesse, como está, ultrapassada. Nico e Pegg são os folgazões de serviço. Martin Allcock esteve para ali, a mostrar a sua guitarra de dois braços. Ric Sanders toca rápido, é um facto, mas com um dispêndio de gestos e de energia desnecessários. Com um terço da canseira e uma elegância que Sanders nunca será capaz de possuir, Dave Swarbrick, além da sensibilidade, conseguia tocar ainda mais rápido. Dave Mattacks, o baterista, mostrou ser o único à altura do nome que tem. Pertence a outro universo musical. Pôs a funcionar uma fábrica de ritmos e silêncios. À noite, na gruta do castelo de Santa Catarina parecia uma criança, agarrado a um tambor, a acompanhar as gaitas e pandeiretas dos galegos Luar na Lubre. Festa até às tantas, como de costume.

Realejo + Boys of the Lough – “Festival Intercéltico Do Porto – Retratos Da Saudade” (concertos | festivais)

cultura >> domingo, 09.04.1995


Festival Intercéltico Do Porto
Retratos Da Saudade


O dia de abertura da sexta edição do Festival Intercéltico do Porto pautou-se pela tranquilidade. Os Realejo trouxeram de Coimbra uma “Sanfonia” para ser ouvida longe do bulício das multidões. Os Boys of the Lough passaram bem, obrigado, que a idade já não lhes permite grandes brincadeiras. O sublime aconteceu mais tarde, já a cidade dormia.



Estivemos lá. Era um salão de uma casa antiga, forrada com gravuras e retratos antigos de senhoras de seios fartos, crianças louras e militares de bigodes farfalhudos. Fica ao fundo de um jardim, escondido entre memórias. Sentámo-nos na roda de amigos. Ao centro uma sanfona contava histórias de tempos que já lá vão, fazendo ranger os gonzos de uma porta de carvalho por onde se passa para o Início. Foi assim, num filme projectado pela imaginação no Teatro do Terço, sexta-feira, no concerto de abertura da sexta edição do Festival Intercéltico do Porto, com os portugueses Realejo. “Sanfonias” – para utilizar o termo escolhido para título do álbum de estreia do grupo – de música tradicional portuguesa que soube encontrar um lugar de recolhimento e contenção, distante dos arraiais regidos por Dionisos.
A música dos Realejo toca devagar e baixinho, escorrendo como mel. Sem sobressaltos. Ao ritmo das voltas da manivela da sanfona de Fernando Meireles, da gaita-de-foles e da concertina de Amadeu Magalhães, do violino de Manuel Rocha, da guitarra de Rui Seabra e do violoncelo de Ofélia Ribeiro. Música tradicional de câmara, como já uma vez nos referimos ao som deste quinteto de Coimbra. “Canção do gaiteiro”, “Oliveirinha do monte”, “Rosinha” – numa versão instrumental com desenho melódico pela flauta de bisel de Amadeu Magalhães, a contrastar com um arranjo vocalizado do mesmo tema pelos Vai de Roda, no “Terreiro das Bruxas” – “Sanfonia” (um original de Amadeu Magalhães), o clássico “cego andante” e “Dança galega” constituíram momentos altos numa prestação que valeu sobretudo pelo colectivo. Interiorização, disciplina, atenção ao detalhe, ausência de espalhafato, eis algumas das linhas de força determinantes na música dos Realejo, desde já posicionados na dianteira das novas bandas portuguesas de música de raiz tradicional, neste caso com a música antiga no horizonte. Uma faceta que muito provavelmente será concretizada num novo projecto de alguns dos músicos do grupo…
Esperava-se a dança e a euforia do grupo seguinte, os Boys of the Lough, banda escocesa / irlandesa de veteranos que por cá já tinham passado numa daquelas tardes sem glória da Festa do Avante!, onde a curtição só por acaso passa pela música. Afinal os Boys, por esta altura, deveriam ter mudado de nome para Old Meno f the Lough. Pareceram cansados, tocando pouco e falando muito, com o lendário violinista das Ilhas Shetland, Aly Bain, a desempenhar as funções de “compère”, com piadas, na sua maioria boas, afagos na careca do flautista Cathal McConnell e os habituais apelos ao público para dançar. Como ninguém – à excepção de um grupo de jovens mais entusiastas – se dignou levantar o traseiro do assento, Aly optou então por se referir à audiência como um “público inteligente”. Infelizmente para o seu “fiddle”, a dose de combustível alcoólico já excedera a capacidade do depósito. Cathal McConnell, por seu lado, reputado como um dos maiores flautistas irlandeses, esteve longe de fazer esquecer o seu “rival” Matt Molloy, mostrando-se demasiado retraído. Quanto a Christy O’Leary, deu uma lição teórica sobre as “uillean pipes” embora na prática não tivesse deslumbrado. Querer outra coisa, de mais excitante, talvez fosse exigir demais de uma banda que ao longo de toda a sua já longa carreira nunca primou pela ousadia, sendo antes um valor seguro do circuito, com uma postura de fidelidade aos “cânones”.
Poderia deste modo a noite ter acabado de pantufas se o festival Intercéltico fosse apenas um programa de concertos. Não é. Qual caixa de Pandora, as surpresas acontecem quando menos se espera. E o imprevisto aconteceu mesmo, já madrugada dentro, na gruta do castelo de Santa Catarina, por entre as latas de cerveja, copos de whisky e conversas de circunstância. Fanch Landreau decretou uma aliança violinística Bretanha / Irlanda, com Tim O’ Leary, apadrinhada pelas “uillean pipes” de Christy O’ Leary, juntando-se-lhes pouco depois Cathal McConnell, na flauta, um violinista galego anónimo e – já mais diluídos os efeitos da bebedeira – mestre Aly Bain.
Esta reunião bastaria por si só para nos reconciliar com os Boys. Mas houve algo mais, de muito precioso, um daqueles instantes que por vezes passam despercebidos na euforia do momento. Sem ninguém saber muito bem como nem porquê, a meio da corrida dos violinos e da gaita, Cathal McDonnell pousou a flauta, baixou a cabeça e cantou. Uma balada, apenas. Em voz trémula, subitamente agarrada pela distância, pela emoção, pelo silêncio que se fez. Então, aí assim, as brumas afastaram-se e foi possível escutar a voz e as lágrimas da Irlanda profunda. Deve haver com certeza um termo irlandês para “Saudade”.