Vários – “Bandes Originales du Journal ‘Spirou'”

PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 25 ABRIL 1990 >> Videodiscos >> Pop


VÁRIOS ARTISTAS
Bandes Originales du Journal “Spirou”
CD duplo Nato, distri. VGM


Jean Rochard, patrão da editora francesa Nato, é um fanático da banda desenhada, como o demonstram, aliás, a quase totalidade das capas dos discos editados neste selo. “Spirou” constitui o remate lógico desta paixão. Para o efeito Rochard reuniu o grosso dos “seus” artistas, convidando-os para compor música para diversos álbuns daquela revista. O resultado dos trabalhos é esplendoroso. De resto, não espanta que assim seja, se perspetivarmos corretamente a linha estética predominante na casa. Tony Hymas, Steve Beresford, Mike Cooper, Lol Coxhill ou Clive Bell não escondem a sua admiração pelo universo das imagens, sejam elas cinematográficas ou, como neste caso, da banda desenhada. Recordem-se aqui os estranhos objetos musicais da Chabada Records, subsidiária da Nato, dedicados a Brigitte Bardot ou aos irmãos Marx. Em “Spirou” foi-lhes dada rédea solta, e quem ganha é a música, aqui estruturada numa longa “fita” de múltiplos argumentos e inspirados narradores. Mais descritivas e menos abstratas do que certas obras mais radicais da editora, das “bandas sonoras” de “Spirou” entrecruzam feericamente os “clichés” mais evidentes (como os do “Film Noir” ou do “Western”) com incursões por um experimentalismo bem-humorado. Para além dos já citados, participam nesta aventura, entre outros, nomes como John Zorn e os seus amigos Blind Idiot God, Max Eastley, Tony Coe e David Weinstein, entretidos e divertidos com os seus heróis Spirou & Fantásio, Attila, Chaminou ou Natasha. As manobras da NATO voltam a dar que falar.

Tom Verlaine – “O Romântico Da Televisão” (discoteca | artigo de opinião)

PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 25 ABRIL 1990 >> Videodiscos >> Pop

A DISCOTECA

O ROMÂNTICO DA TELEVISÃO

Tom Verlaine, lendário guitarrista e compositor, estará em Portugal a 5 de maio, para a realização de um concerto no cinema Alvalade. Depois de, com os Television, ter provado que a New Wave podia ser inteligente, Verlaine regressa com novo álbum a solo, de genérico “The Wonder”.



O universo da música popular é fértil em personagens estranhas, a maioria só de fachada, algumas genuinamente alienígenas. O homem dos Television é sobretudo misterioso. Pouco dado a entrevistas, quase nada se sabe da sua visão do mundo, para além dos discursos poéticos gravados ao longo de um percurso discográfico simultaneamente brilhante e irregular. Tímido e introvertido em extremo, perde a vergonha nos discos e dispara palavras cínicas e geladas, apoiadas por uma guitarra não menos incisiva e cortante.

A Lua na Sarjeta

Os Television, banda seminal da New Wave americana, nasce em 1973, fruto da associação de Verlaine com o baixista/vocalista Richard Hell e o baterista Billy Ficca. Cedo dão nas vistas, congregando à sua volta um grupo de admiradores que rapidamente os elevam ao estatuto de “banda de culto”. Tom Verlaine, líder incontestado e carismático, convence os proprietários do clube CBGB a abrir as portas à nova vaga de grupos e artistas que, entretanto, emergiam no circuito “underground” da cidade, e dos quais se destaca Patti Smith, em cujo “single” de estreia, “Hey Joe/ Piss Factory”, Verlaine virá a colaborar.
Patti e Tom partilham o gosto pela poesia, desde os românticos (Tom escolheu como apelido o do simbolista francês Paul Verlaine), aos poetas da Beat Generation, como Kerouac ou Ginsberg. Em comum, também, a preocupação de que as palavras sejam algo mais do que simples letras de canções e o estilo declamatório de as cantar. Características estas bem vincadas no álbum-estreia dos Television, “Marquee Moon”, de 1977, autêntica pedrada no charco do primarismo “punk” que então vingava, sobretudo do lado de cá do Atlântico.

Poeta Ignorado

Para trás ficam a tentativa infrutífera de Brian Eno (que chega a produzir algumas “demo tapes” da banda), de levar Verlaine e os companheiros para o luxo da Island britânica, e a substituição de Richard Hell (que virá a formar com Johnny Thunders os Heartbreakers) por Fred “Sonic” Smith.
“Marquee Moon” suscita o entusiasmo da crítica e do público ingleses, deixando o lado “yankee” estranhamente indiferente. Richard Hell não tem melhor sorte com os Heartbreakers e abandona o ex-New York Dolls, para formar a sua própria banda, os “Voivods”, contando nas suas fileiras com um senhor guitarrista chamado Robert Quine, aceite mais tarde como membro de “elites” já de um outro mundo. Os dois polos opostos iniciais dos Television, Verlaine, o intelectual, e Hell, o “junkie” decadente, procuram por vias divergentes o sucesso em grande escala, que sempre lhes fugirá.
Depois de uma “tournée” como banda de suporte dos Blondie, os Television lançam, em 1978, o segundo álbum, “Adventure”, mais elaborado que o anterior e em que a parte musical (até então um tanto ofuscada em detrimento da poética) se equipara em requinte e subtileza às palavras, sempre corrosivas, do poeta. Os ingleses voltam a captar a mensagem, em termos de aceitação crítica e de vendas. A proverbial falta de gosto das massas americanas continua a ditar leis na pátria do segundo Verlaine.

Via Aberta

Os Television acabam e Tom parte para uma carreira a solo, iniciada com o álbum “Tom Verlaine”, de 1979, e continuada, dois anos mais tarde, com “Dreamtime”. “Words From The Front” (1982) e “Cover” (1984, já na multinacional Virgin) são outras tantas tentativas frustradas de traduzir em números uma reconhecida qualidade artística. Por fim, em 1987, a Fontana, especialmente reativada para a ocasião, edita “Flash Light”, um dos melhores discos de Verlaine, mas ainda e sempre com o mesmo destino dos restantes: a indiferença pública.
“The Wonder” pode alterar este estado de coisas. Permanecendo, no essencial, fiel às características que distinguem a sua música, Verlaine abre um pouco o som, como na ainda tímida tentativa de criar um “funky” intelectual, no tema “Shimmer”, também editado em maxi. Um outro maxi, “Kaleidescopin’”, denota a mesma preocupação e evidencia, até na pacificação das palavras, uma serenidade e uma maturidade capazes finalmente de convencer, mesmo o mais empedernido, de que o homem tem coisas importantes para dizer.

Vários – “Festival de Bourges – Crónica do fim” (festivais)

PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 18 ABRIL 1990 >> Cultura

Festival de Bourges

Crónica do fim

O Festival de Bourges chegou ao fim, com a fabulosa “performance” multimédia da companhia de Philippe Genty e o rock poderoso dos australianos Hunters and Collectors e Midnight Oil. Apagados os projetores, a paz e o silêncio desceram de novo sobre as ruas da cidade medieval. Durante uma semana, Bourges foi o centro do Universo.

No Grand Théâtre a beleza foi absoluta. Humanos contracenando com manequins e marionetas microscópicas, mas como distinguir os bonecos da gente de carne e osso? Ri, e depois chorei, diante de uma mulher viva, de plástico, esventrada e devorada por peixinhos vermelhos canibais e vi o sangue transformar-se em mar. Vi ondas rebentando sobre a praia, e o mar desapareceu por um buraco aberto no céu. Bolhas de luz de onde nasceram fadas, depois nuvens e cristais. Tive medo de polvos de sarjeta, de pernas humanas, e pasmei diante de cabeças sem corpo. Fui seduzido e enganado por jogos e escalas impossíveis – o longe estava perto, e cada coisa era sempre outra diferente. Um homenzinho milimétrico metamorfoseou-se em mosca. O mundo dissolveu-se em ilusão.

Milagre

O milagre deve-se ao espetáculo “Dérives”, da Companhia de Philippe Genty, numa inacreditável e inesquecível performance em que teatro, dança, mímica, marionetas, fantoches, música e construções de luz, se juntaram para criar um corpo poético, mágico e de proezas técnicas de envergonhar os artesãos da oficina “Lucas & Spielberg”. “Dérives” foi premiado, no final, com a maior ovação de todo o festival. Os atores foram chamados cinco vezes ao palco, para agradecerem os vivas e aplausos. Notícia surpreendente: o espetáculo de Philippe Genty estará em Portugal, no próximo mês de maio, no Porto (integrado no Festival de Teatro da cidade) e em Lisboa, em sala ainda por designar.
As festividades encerraram à tarde, no pavilhão grande, com os sons fortes vindos da Austrália. Os “Hunters and Collectors” deram um bom concerto, do estilo “rock de estádio”, para se ouvir a quilómetros de distância. Apresentaram boas canções, de ritmo variado, interpretadas por um vocalista dono de um vozeirão de meter respeito. Aqueceram o público, pronto para receber de braços abertos a banda principal.

Momento mágico

Quando os Midnight Oil subiram ao palco, montado de modo a imitar a capa do recente álbum “Blue Sky Mining”, ninguém se conteve, iniciando-se a já habitual manifestação de regozijo, conhecida como “patada na bancada”. Estava dado o mote para uma atuação que se revelou, a todos os níveis, notável. A banda australiana provou de uma vez por todas ser possível tocar sem que tal implique o sacrifício da clareza e subtileza de pormenores. Excecional prestação, sobre a qual o mínimo que se pode dizer é que foi eletrizante. O vocalista, lembrando o velhinho Roger Chapman, dos “Family”, na maneira de cantar, gesticulou como um danado e rebolou pelo chão, o que é sempre do agrado das multidões, ávidas de verem os seus ídolos rebaixarem-se e fazerem figura de parvos. O momento mágico ocorreu durante um tema lento, na cerimónia, sempre bonita e comovente, do acender coletivo de isqueiros. Depois foi o crescente entusiasmo até um final apoteótico que encerrou em beleza o festival.

Recapitulando os melhores momentos do festival:
Inesquecíveis – Dadadang, Brave Combo, Joseph Recaille & Daniel Laloux, Oyster Band, Philippe Genty.
Muito bons – Ray Lema, Ces Messieurs, The Colourblind James Experience, Vozes Búlgaras.
“Apenas” bons – Sttellla, Hector Zazou, Rary McLeod, John Cale, Cowboy Junkies (com reservas), Patricia Kaas e Hunters & Collectors.
Fora de Cena – Malabar e Delícias Dada.
Maior desilusão – Daniel Lanois.