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Vários – “Bandes Originales du Journal ‘Spirou'”

PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 25 ABRIL 1990 >> Videodiscos >> Pop


VÁRIOS ARTISTAS
Bandes Originales du Journal “Spirou”
CD duplo Nato, distri. VGM


Jean Rochard, patrão da editora francesa Nato, é um fanático da banda desenhada, como o demonstram, aliás, a quase totalidade das capas dos discos editados neste selo. “Spirou” constitui o remate lógico desta paixão. Para o efeito Rochard reuniu o grosso dos “seus” artistas, convidando-os para compor música para diversos álbuns daquela revista. O resultado dos trabalhos é esplendoroso. De resto, não espanta que assim seja, se perspetivarmos corretamente a linha estética predominante na casa. Tony Hymas, Steve Beresford, Mike Cooper, Lol Coxhill ou Clive Bell não escondem a sua admiração pelo universo das imagens, sejam elas cinematográficas ou, como neste caso, da banda desenhada. Recordem-se aqui os estranhos objetos musicais da Chabada Records, subsidiária da Nato, dedicados a Brigitte Bardot ou aos irmãos Marx. Em “Spirou” foi-lhes dada rédea solta, e quem ganha é a música, aqui estruturada numa longa “fita” de múltiplos argumentos e inspirados narradores. Mais descritivas e menos abstratas do que certas obras mais radicais da editora, das “bandas sonoras” de “Spirou” entrecruzam feericamente os “clichés” mais evidentes (como os do “Film Noir” ou do “Western”) com incursões por um experimentalismo bem-humorado. Para além dos já citados, participam nesta aventura, entre outros, nomes como John Zorn e os seus amigos Blind Idiot God, Max Eastley, Tony Coe e David Weinstein, entretidos e divertidos com os seus heróis Spirou & Fantásio, Attila, Chaminou ou Natasha. As manobras da NATO voltam a dar que falar.

Dave Holland Quintet – “Extended Play” + Miroslav Vitous – “Universal Syncopations” + Art Ensemble Of Chicago – “Tribute To Lester” + The George Burt / Raymond MacDonald Quartet c/ Lol Coxhill – “Coxhill Street” + Frances-Marie Uitti & Jonathan Harvey – “Imaginings”

(público >> mil-folhas >> jazz >> crítica de discos)
sábado, 25 Outubro 2003

Holland e Vitous. Contrabaixistas a ditar as regras do jogo do jazz. O inglês dispõe dos melhores trunfos.


Contra baixos não há argumentos

DAVE HOLLAND QUINTET
Extended Play
ECM, distri. Dargil
9 | 10

MIROSLAV VITOUS
Universal Syncopations
ECM, distri. Dargil
7 | 10

ART ENSEMBLE OF CHICAGO
Tribute to Lester
ECM, distri. Dargil
8 | 10

THE GEORGE BURT/RAYMOND MacDONALD QUARTET c/LOL COXHILL
Coxhill Street
FMR, distri. Sonoridades
7 | 10

FRANCES-MARIE UITTI & JONATHAN HARVEY
Imaginings
Sargasso, distri. Sonoridades
7 | 10



Nos últimos tempos o homem não tem feito outra coisa a não ser reciclar a sua própria música e a do quarteto que o tem acompanhado desde 1997. Mas dado que o seu nome é Dave Holland, perdoa-se, aceita-se e até se agradece. “Extended Play” é uma obra monumental em dois CDs, gravado há dois anos no mítico Birdland de Nova Iorque. As peças, na maioria extraídas de “Prime Directive” e “Point of View”, têm uma duração tal que só a simples menção dos tempos gastaria a totalidade do espaço disponível nesta página. Mas mais do que tempo, a música esbanja qualidade.
A máquina cardíaca do líder deu a cada músico espaço para respirar e dizer longamente. Diz Holland que para explorer em larga escala novas formulas para temas antigos, fazendo delas “veículo para a intuição e a imaginação”.
Potter mostra-se imparável em “The Balance” e “High wire”, solando “free”. Nelson prova ser um dos grandes vibrafonistas actuais, sem nunca abusar do pedal de reverberação, preferindo a clareza e a fluência do ritmo aos registos mais ambientais. O solo de marimba em “Jugglers parade” é funky, progressivo, misterioso, hipnótico. Fãs dos Can, há um mundo de jazz, mesmo ao lado, à vossa espera! Quando Holland faz a sua entrada e o trombone de Eubanks se alarga num manifesto feito de subtileza mas também de súbitas guinadas para a faixa de rodagem da experimentação, o swing rola numa montanha-russa.
“Claressence”, de “Dream of the Elders”, abre o segundo CD numa nota mais “cool”, com Nelson a chegar-se aos timbres de cristal de Milt Jackson, nos Modern Jazz Quartet. Potter volta a mostrar até que ponto compareceu a esta sessão em estado de graça. O seu diálogo com o trombone de Eubanks é de fazer dançar um moribundo. Holland, o mestre, deixa a sua assinatura lavrada a fogo em “Metamorphos”, imprimindo-lhe um balanço e equilíbrio sobrenaturais. Abusando ou não da reciclagem, Holland acertou uma vez mais na “mouche”. “Extended Play” ostenta a novidade e a incandescência do princípio do mundo. E, porque não, do princípio do jazz. Contra tais factos, contra o seu baixo, não há argumentos.
Outro contrabaixista, porventura menos conhecido, mas de não menores méritos, é Miroslav Vitous, checoslovaco de nascimento, antigo “sideman” de
Miles Davis, membro fundador dos Weather Report e autor de um magnífico “Journey’s End”, ao lado de John Surman e John Taylor. Em “Universal Syncopations” rodeou-se de um quartet de “figurões”: Jan Garbarek, Chick Corea, John McLaughlin e Jack DeJohnette. A capa mostra uma coreografi a de nuvens e quando os discos da ECM utilizam fotos de coreografias de nuvens já se sabe que som se há-de esperar. Mais ainda se Jan Garbarek estiver presente na sessão, pois também se sabe que cores esperar deste saxofonista que progressivamente foi atafulhando o timbre do seu saxophone com flores e mel (quando toca a adocicar, Manfred Eicher não perdoa – é a perdição dos diabéticos do jazz).
Pois bem, o Garbarek destas “síncopes universais” arrepiou caminho até às antigas e mais espinhosas encruzilhadas de “Dis”. Voltou a curvar nas esquinas. Corea domina o “som ECM” como se tomasse uma chávena de chá e Vitous aproveita para se mostrar como o contrabaixista ginasticado e, se a ocasião o justifica, nevrótico que é. Entre todos os participantes, é o menos conformista, num programa que junta uma “floresta de bambu, uma “flor do sol”, “Miro bop” (o quintet acorda! Vitous e DeJohnette sacodem Corea e Garbarek bopa), “Beethoven” e “ondas brasileiras”. Tudo bonito, tudo certo, tudo extraordinariamente bem tocado. Sem riscos. A secção rítmica solta, no entanto, as amarras…
“Tribute to Lester” é uma homenagem ao trompetista Lester Bowie, falecido em 1999, pelos seus antigos companheiros no Art Ensemble of Chicago. Bowie era o tipo dos óculos e da bata que punha ordem na selva e orientava os rituais pela bússola do jazz, dos gritos “free” ao “mardi gras” de Nova Orleães. A justa homenagem que Roscoe Mitchell, Malachi Favors e Don Moye lhe prestam funcionou como o despertar de uma longa letargia. O habitual clamor de gongos e sonoridades exóticas ficou mais focado, embora seja lícito questionar se o solo de flauta barroca, de Roscoe Mitchell, em “Suite for Lester”, é ou não apenas mais uma das múltiplas “boutades” extrajazz que os AEC por norma incluem nas suas “performances”. De resto, há a usual componente sul-africana, “free” do melhor (“As clear as the sun”, com Mitchell a uivar de dor nos agudos) e uma nova versão de “Tutankhamun”, onde o solo de saxofone baixo de Mitchell poderia servir de sarcófago para a música do homenageado. Mas é na improvisação coletiva final, “He speaks to me often in dreams”, celebrada nos píncaros de uma montanha no Tibete, que os espíritos e os silêncios falam aos homens.
Espírito é o que não falta a Lol Coxhill, saxofonista e lunático. Com Coxill é sempre Natal. Os jazzados da cabeça que escarafuncham noutras paragens escancaram um sorriso tão largo como o do gato das histórias de Alice só de imaginarem o desempenho delirante deste saxofonista na obra-prima do rock progressivo excêntrico dos anos 70, “Shooting at the Moon”, de Kevin Ayers. Lol Coxhill poderia ser o chapeleiro maluco. “Ear of the Beholder” (com uma impensável formação composta por Burton Greene, Jasper Van’t Hoff, Pierre Courbois e David Bedford) é outro álbum do saxofonista careca que os puristas do jazz menosprezam e os loucos do Progressivo veneram.
Coxhill aparece em “Coxill Street” a convite do guitarrista George Burt e do saxofonista alto e soprano, Raymond MacDonald. Música improvisada, bruta, enformada pelas angulosidades da guitarra, que Coxill aproveita para levar o saxophone soprano à histeria e recorrer às técnicas de multifonia que tão bem domina. Toca-se com a convicção dos iluminados, encarcerados num mundo fechado sobre si mesmo, porém fascinante para quem ousar abrir a porta e dar de caras com a loucura. O chapeleiro louco está nas suas sete quintas, claro.
Ainda no campo da improvisação limítrofe, “Imaginings”, de Frances-Marie Uitti, no violoncelo, e Jonathan Harvey, nos sintetizadores, desenvolve-se no sentido do impressionismo . “Exploração de timbres” e emprego de técnicas extensivas fazem parte do léxico destes dois executantes com larga experiência na música eletroacústica (Harvey trabalhou no IRCAM, a convite de Boulez), indicativos dos parâmetros que subjazem à criação de “Imaginings” – painel de sons fantasmagóricos, electrónica residual, drones e ocasionais ruturas num “continuum” elaborado a partir de diversas linhas de tensão/clivagem sustentadas pelos dois músicos. O que é que o jazz tem que ver com tudo isto? Nada! Mas em que outro espaço poderíamos escrever sobre este disco?…