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Vários – “Weird Nightmare”

pop rock >> quarta-feira, 17.02.1993
NOVOS LANÇAMENTOS POP / ROCK


MINGUS E OS BACANAIS

VÁRIOS
Weird Nightmare
CD Columbia, distri. Sony Music



Francis Thumm, discípulo do iconoclasta Harry Partch, define do seguinte modo os pontos em comum entre o seu mestre e Charlie Mingus: “Cada um deles era capaz de combinar a precisão de um trabalho de ‘ensemble’ com a entrega e o abandono de um bacanal.”
Hal Wilner organizou o encontro e o festim fantasmáticos (especula-se quanto à possibilidade de um encontro de facto, algures na Califórnia, no princípio do século) entre os estes dois génios. Depois de “Amarcord Nino Rotta” (compositor favorito de Fellini), “That’s the way I feel now – A Tribute to Thelonius Monk”, “Lost in the Stars – The Musico f Kurt Weill” e “Stay Awake – Various Interpretations of Music from Vintage Disney Films”, Winner presta agora homenagem ao mito que Joni Mitchell já havia celebrado no duplo “Mingus”, gravado no ano da morte do compositor. Hal Winner fá-lo da melhor forma e após maturação lenta de um projecto que germinou a partir de uma selecção de gravações antigas da editora Folkways (algumas das quais serviram de inspiração às célebres colagens musicais de Mingus): através da reinvenção de um universo temático riquíssimo e da apropriação possível de um estado de espírito.
Mingus, falecido em 1979, foi um explorador de sons e sentidos. Nas décadas de 50, 60 e 70, ajudou a dar nome e consistência às fusões “Third Stream” e ao “free”, integrando na sua música elementos “étnicos” do Mediterrâneo, da América Latina e do Médio Oriente. O bacanal que Thumm refere é, no seu caso, esta mistura orgânica de formas musicais e vivências que Mingus trabalhou e combinou até ao fim. Nele, a composição era indissociável dos outros interesses que cultivava na vida: mulheres, comida, pintura, literatura, percepção extra-sensorial, meditação, teologia, psicoterapia, política, relações inter-raciais…
Mas se Mingus é o arquitecto deste “estranho pesadelo”, Harry Partch é o seu artesão (um músico “seduzido pela carpintaria”, como ele próprio se definiu). Tão ou mais excêntrico que Mingus, Partch – falecido em 1974, cinco anos antes do autor de “Ah Um” – inventou para si uma notação musical própria (vale a pena escutar os resultados em obras como “Petals Fell on Petaluma”. “Delusions of the Fury”, “Barstowl Daphne of the Dunes” e “The Bewitched”, esta última com reedição recente em compacto) que o obrigou a idealizar e fabricar novos instrumentos: “Cloud chamber bowls”, “marimba eroica”, “Chromelodeon II”, “Harmonic canon”, “Surrogate kithara”, “cone gong”, “Crychord”…
Instrumentos que Hal Winner foi buscar ao museu e que em “Weird Nightmare”, foram utilizados pela primeira vez num disco sem a autoria do seu inventor.
Faltava escolher os intérpretes. À semelhança dos anteriores projectos de Winner, o grupo de “Weird Nightmares” é constituído por uma panóplia de músicos oriundos de esferas musicais distintas, unidos numa mesma sensibilidade e devoção ao homenageado. Há um núcleo a quem foi entregue a função de sustentáculo sonoro, formado por Art Baron, Bill Frisell, Greg Cohen, Don Alias e Michael Blair e uma constelação de convidados, com a função de narradores – vocalistas – instrumentistas ocasionais: Henry Threadgill, Marc Ribot, Robbie Robertson, Don Byron, Elvis Costello, Vernon Reid, Henry Rollins, Charlie Watts, Keith Richards, Bob Stewart, Tony Trischka, Chuck D, Bobby Previte, Diamanda Galas, Leonard Cohen, Robert Quine, Ray Davies e Dr. John, entre muitos outros.
A que é que soa semelhante festim de sons, referências e ideias? Próximo do cruzamento entre Stravinsky, John Zorn e os Biota (“Work song”, por exemplo, habita esse proto-oceano onde os ruídos se revolvem na procura da harmonia) e Charlie Mingus, é claro. O ambiente é quase sempre soturno, preso às complexidades e exigências da pauta, interrompido por emanações “bluegrass”, um swing a que falta o pé ou um mundo em colapso. Impressionista de um modo espectral, desprende-se de “Weird Nightmares” uma sensação de profundidade abissal, de águas turvas habitadas por seres inomináveis. O título está perfeito. (8)

Vários (Talking Heads, R.E.M., Nick Cave, Lou Reed, U2, Elvis Costello, Depeche Mode, …) – “Banda Sonora Antecipa Novo Filme De Wim Wenders – Enquanto O Fim Do Mundo Não Chega”

Secção Cultura Sexta-Feira, 13.12.1991


Banda Sonora Antecipa Novo Filme De Wim Wenders
Enquanto O Fim Do Mundo Não Chega


Em “Until the End of the World”, o realizador alemão rodeou-se de nomes sonantes da música actual, entre eles os Talking Heads, R.E.M., Nick Cave, Lou Reed, U2, Elvis Costello e Depeche Mode. Sob a aparência sombria, as canções – como o cinema de Wenders – perseguem a luz.



Conhece-se, viajando. Mas conhece-se apenas enquanto esse movimento de deslocação corresponder a uma dupla transformação: do sujeito que evolui e, como consequência, do território percorrido, já que a visão da realidade está condicionada pelo “lugar de onde se olha”. Uma questão de perspectiva. O cinema de Wenders dá a ver as várias fases de um percurso, o que está “antes da curva da estrada”. Viagem iniciática, de procura e descoberta em espiral.
Cineasta da viagem, Wim Wenders, analisa-a nos seus múltiplos registos. “Alice nas Cidades”, “Ao Correr do Tempo” (obra-prima sobre os infinitos da comunicação, da permuta de sentidos, do silêncio para-gramatical que nos habita e, no limiar do território, nos transcende), “Paris, Texas” (demanda do amor e da linguagem, de certa forma inversa à de “Ao Correr do Tempo”) “Luz sobre a Água” (viagem terminal até ao derradeiro limite – ritual de transformação / decomposição do corpo e do cinema, e da redenção pela voz dos personagens que à deriva sobre as águas, dissertam sobre o que é, ou foi, a vida e o cinema, tema recorrente em “O Estado das Coisas”) e o novo “Until the End of the World” perseguem a transfiguração, a luz (da luz e dos jogos de iluminação nos fala ainda Wenders em “As Asas do Desejo”), o real nas suas duas vertentes: a das imagens cinematográficas e aquela que julgamos mais consistente, do “mundo material”. Em qualquer dos casos, projecções.

A Lei Do Movimento

Para compreender o que o termo “road movie” significa na economia do autor, é preciso compreender primeiro o preceito Zen (caro ao cineasta), segundo o qual o sujeito que observa e a realidade “observável” constituem uma realidade única, decorrendo a pseudo separação da subjectividade da razão analítica.
Pode definir-se o cinema de Wim Wenders em termos de geografia: humana, planetária e metafísica. Mesmo quando o movimento, circular, anti-iniciático e luciferino (como entende Abellio), não leva a lado nenhum – “Movimento em Falso”, presente apenas no alinhamento temporal das palavras, da fala destituída de sentido (isto é de direcção) por forma a permitir a ilusão. O “realismo” confunde-se aqui com o não-movimento existencial de “Para Além do Paraíso”, de Jim Jarmusch). David Byrne define na perfeição esse lugar de morte: “O paraíso é um lugar onde nunca acontece nada.”
“Until the End of the World” almeja a totalidade, a visão global do planeta. Viagem culminante, de síntese apocalíptica que, a partir da Europa e seu lastro cultural, acaba por fixar-se e centrar-se nessa terra de ninguém que é o continente australiano, lugar paralelo, alternativo, de início, que se presume ser o único capaz de sobreviver à catástrofe nuclear.

Canções De Luz E Desespero

A banda sonora chegou até nós primeiro do que as imagens. É-nos concedido algum tempo de prazer antes do “juízo final”. Muito do sortilégio que anima o cinema de Wim Wenders vive do contraponto sonoro. “Until the end of the world” não foge à regra. O realizador escolheu a dedo os músicos e estes corresponderam de forma exemplar, dando às respectivas composições a toada sombria, derradeira, que o ambiente das imagens sugere. Não por acaso, o papel de “pivot” do projecto foi entregue a Graeme Revell, compositor e teórico australiano, fundador dos SPK, dado a obscuras manipulações sonoras, entre o classicismo gótico, a música industrial e as experimentações electrónicas com computadores.
“Opening Titles”, “Claire’s Theme”, “Love Theme” e “Finale” são peças instrumentais de recorte clássico, parasitadas por sons samplados e acrescidas do violoncelo solo de David Darling, escolhidas para enquadrar as canções propriamente ditas, à excepção da dos U2, compostas de propósito para a banda sonora. O CD não integra os temas de Peter Gabriel e Robbie Robertson que constam do duplo álbum.
“Sax and Violins”, dos Talking Heads, introduz o registo “down” que prevalece ao longo do disco, dando a ouvir um David Byrne menos frenético mas mais desolado do que é costume. Julee Cruise traz consigo resíduos das trevas fluorescentes de David Lynch e Angelo Badalamenti, no pesadelo cor-de-rosa “Summer Kisses, Winter Tears”, de Elvis Presley. De base rítmica hipnótica, os temas dos Can (que já haviam colaborado em “Alice nas Cidades”) e, em versão “dub”, de Neneh Cherry, adensam o mistério. Não soam menos fantasmagóricos o minimalismo poético de Patti e Fred Smith, a “country” etérea de Jane Siberry com K. D. Laing e de Daniel Lanois, e os “blues” espectrais de T-Bone Burnett. Os Crime & The City Solution e Nick Cave, amigos de Berlim, transitam das “Asas do Desejo” com a mesma força e negritude. Cave cada vez mais empenhado em tornar-se uma espécie de Leonard Cohen cavernoso. Lou Reed sinuoso como sempre sobre uma guitarra saturada de electricidade, Elvis Costello com uma versão de “Days”, dos Kinks, os Depeche Mode e os R.E.M. apresentam canções tristes de acordo com o tom de desespero do enredo.
É preciso esperar até ao título-tema dos U2, extraído de “Achtung Baby” e editado em versão especial para a banda sonora, para que o fogo se reacenda. Enquanto o fim não chega.

Elektra – “Elektra Na Maioridade” (editora | artigo de opinião | história)

PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 24 OUTUBRO 1990 >> Pop Rock


ELEKTRA NA MAIORIDADE

A editora americana Elektra faz 40 anos. Os seus responsáveis tiveram uma ideia brilhante: reatualizar temas antigos, gravados por artistas da casa, através de interpretações dos atuais signatários. Revolvidos os arquivos da história, encontrou-se a palavra ideal para simbolizar o projeto – “Rubáiyat”



O termo designa uma estrofe poética, formada por dois versos facilmente memorizáveis, inventada pelo poeta persa Omar Khayyam no século XII e que o povo cantarolava, como se de refrões de música pop se tratasse. Posteriormente, em 1859, o modo “Rubáiyat” foi reatualizado por Edmund Fitzgerald, que escreveu vários “rubay” com que entretinha os seus compatriotas vitorianos. Durante cerca de 30 anos, dedicou-se a interpretar e a reinterpretar os seus próprios versos, atualizando-os constantemente. São dele os imortais versos “But still the vine her ancient ruby yelds / And still a garden by the water blows”. O “staff” da Elektra asseguram que têm tudo a ver com o aniversário da editora. Quem somos nós para duvidar? “Manhã” – escreveu o astrónomo e matemático Omar –, “deixa-nos entornar o vinho vermelho.” Então não tem tudo a ver? É o ato de emborcar, de celebrar, enfim, de arranjar à força um pretexto.

A Magia do Rubi

“Rubaiyat” é também rubi, vermelho, da cor do sangue – pedra preciosa que celebra aniversários assinalados pelo número 40. Vermelho, tal qual o logotipo da editora. As conotações são evidentes. Mas as significações do termo mergulham mais fundo, penetrando nos arcanos do universo e da magia. Rubi é pedra de telepatia, talismã que afasta os pesadelos quando guardado debaixo da almofada. Estranho: se for tocado nos quatro cantos de uma casa, protege os seus habitantes da trovoada. Além disso, irradia energia, segundo uma refração dupla que vibra na nota musical “mi” (em inglês “E”). Elektra começa por “E”. Elektra, uma das sete plêiades, filha de Oceanus, mãe das harpias, musa inspiradora da arte musical. Ena! Isto dos discos tem muito que se lhe diga. Não tem nada a ver com comércio nem negociatas. Nada disso. É tudo gente altruísta, preocupada com os mais altos desígnios humanos, envolta numa aura de santidade e mistério, lidando com forças transcendentes que mal compreendemos. Se não, como explicar que participem neste projeto nomes desde sempre ligados ao esoterismo e às difíceis artes do ocultismo, como Gipsy Kings, Howard Jones ou os Metallica?
Convidaram-se estes e outros artistas para interpretar temas antigos à sua escolha. Critério único dessa escolha – a ligação afetiva às canções do passado. A mistura de nomes e canções impressiona pela heterogeneidade. Não confundir com confusão. São contemplados todos os géneros e estilos musicais, desde os já citados Gipsy Kings e Happy Mondays a John Zorn e Kronos Quartet, passando por luminárias como Jevetta Steele, The Havalinas, Lynch Mob e o magistral Danny Gatton. “Rubáiyat” será lançado no mercado em três formatos: CD e LP duplos com discos em vermelho, mais cassete dupla, tudo acompanhado de livrete contendo informação detalhada relativa ao projeto.
Nada foi deixado ao acaso. Desde a apresentação até às táticas promocionais, a Elektra fez questão de ser original e diferente. Assim, o desenho das capas e o restante trabalho gráfico foram entregues aos gémeos Doug e Mike Starn, celebrizados na cena artística nova-iorquina pelas suas fotos-colagens. “Rubáiyat” constitui o primeiro dos seus trabalhos que autorizaram a ser usado para fins comerciais. No capítulo da promoção, foram escolhidos 6 CD-“singles”, cada qual com um tema destinado a uma área de divulgação radiofónica específica: Teddy Pendergrass, para o género “contemporâneo, adulto e urbano” (?), os Metallica para as listas de “heavy metal”, Faster Pussycat para o AOR (“adult orientated rock”), Gipsy Kings para o mundo latino e Michael Feinstein para a rádio em geral. Vinte e cinco por cento dos lucros obtidos revertem a favor das organizações “Greenpeace”, “United Negro College Fund” e “Save the Children”. Afinal ainda há almas caridosas neste mundo tantas vezes cão. É a força do rubi a exercer as suas influências cósmicas e benéficas.

A Editora



É bastante antiga. Começou por ser um passatempo e um caso de amor. Foi a 10 de outubro de 1950 que o seu primeiro diretor, Jac Holzman, então um estudante apaixonado pelas técnicas de engenharia aplicada à música, deu início às atividades. O primeiro disco, um doze polegadas, era uma “Lied” assinada pelo compositor John Gruen e a cantora Georgiana Bannister. Teve o número 101 e direito a quase o mesmo número de cópias. Dinheiro era coisa que não havia. Tanto assim que a letra “E” do logotipo, em caracteres mais ou menos gregos, de acordo com a ideia pretendida, teve de ser feita utilizando um “M” deitado… A seguir vieram baladas montanhesas “Appalache”, cantadas por Jean Ritchie – Jac Holzman era apaixonado pela música “folk”, se bem que às vezes o termo lhe causasse alguma confusão.
A Elektra, sediada a princípio nas traseiras de uma loja de discos em Greenwich Village, passou rapidamente para a rua Bleecker, número 361, local onde Jac foi aos poucos aprendendo os truques do ofício, que é como quem diz, de como fazer dinheiro à custa da música. Mas nessa altura era mais uma questão de sobrevivência e não havia lugar para luxos. A distribuição era feita em mão, e os discos transportados numa Vespa.
Ainda a designação “world music” não tinha sido inventada, já a Elektra gravava recolhas folclóricas, oriundas de Itália, Rússia, Turquia, Espanha, França, Escócia, Inglaterra, Israel, México e outras regiões que constassem no mapa. Jac Holzman afirma que a sua paixão pela “folk” se deve ao interesse que sempre nutrira pelos instrumentos antigos e que o cravo era o culpado de tudo. “Os cravos – afirma – deram origem aos alaúdes, estes às guitarras, as guitarras à “folk”, e a “folk” à Elektra. Quer ele dizer que, não fora aquele instrumento de teclas, a editora nunca teria existido. Alguém de lembra de Cynthia Gooding, Ed McCurdy ou Shep Ginandes? Ninguém? Nem do Ginandes? Pois eram os “folk singers” da altura e parece que até não se vendiam mal – só à conta de Ed McCurdy e das suas séries de baladas isabelinas de genérico “When Dalliance as in Flower (and Maidens Lost their Heads)” a editora faturou na ordem dos 900.000 dólares.

Ecletismo

Com a entrada nos anos 60, o recém-chegado Paul Rothchild operou a primeira mudança de agulhas. Era a vez dos baladeiros de intervenção entrarem em cena, ao mesmo tempo que o movimento das flores dava os últimos retoques nas pétalas. A Phil Ochs, Tom Rush, Tom Paxton e Judy Collins foi dada oportunidade de recitarem os seus manifestos. Paralelamente, na sucursal Bounty Records, entretanto fundada, despontavam os Beefeaters, nada mais nada menos do que os futuros Byrds. Buffalo Springfield, Lovin’ Spoonful e os Love, de Arthur Lee, eram os mais ilustres representantes do batalhão pop. Mas a força imparável deste último não obstava a que músicos como o guitarrista de flamenco Juan Serrano ou o “jazzman” Art Blakey tivessem um cantinho da casa reservado para si. Do mesmo modo que a música folclórica búlgara, décadas antes de as suas vozes se tornarem misteriosas ou de falarem com Deus.
Alargava-se o leque de formas musicais – em 1964, a Nonesuch passava a albergar os representantes da “clássica”. Estrearam-na uma seleção de temas para trompete barroco, de Albinoni, e uma antologia de autores franceses da corte de Luís XIV. Hoje, a Nonesuch constitui a ala mais interessante da Elektra, integrando alguns dos expoentes da música contemporânea como John Adams, John Zorn, Kronos Quartet ou Wayne Horvitz. Por seu lado, as séries Explorer dedicavam-se a editar coleções de discos que continham efeitos sonoros ou instruções em código morse.
No selo mãe, o pacifismo reinante no seio da “beat generation” era minado pela violência niilista dos MC5 e dos Stooges de Iggy Pop. O niilismo romântico de Nico era outra história, ainda hoje por contar. Místicos e de tendências pró-celta, os Incredible String Band, personificavam, de forma inteligente e original, o estilo “hippy”, através dos poemas étnico-psicadélicos dos multi-instrumentistas Robin Williamson e Mike Heron.
Terminados os anos da paz, e Elektra é vendida por Jac Holzman à Kinney National Services Corporation, por dez milhões de dólares, retendo embora a autonomia artística. Três anos mais tarde, é a fusão com as poderosas Warner Bros. e Atlantic. Harry Chapin, Bread e Carly Simon ajudam a compreender que o tempo e o espírito eram outros. Jac já não conhecia todos os cantos da casa, que entretanto crescera desmesuradamente desde os tempos nas traseiras da rua Dez. Sentia que se estava a repetir a si próprio. A repetição mata o amor. Jac retira-se para o Havai, para regressar na condição de perito da Warner na área de investigação tecnológica aplicada aos audio-visuais.

Negócio e Moral

David Geffen pega nas rédeas do poder e a Elektra é de imediato submetida a nova operação cirúrgica. O membro implantado é desta vez a Asylum. Novos recrutas: Jackson Browne, Eagles, Linda Ronstadt, Joni Mitchell, Tom Waits. “Hotel California”, dos Eagles, faz engordar muita gente. Os anéis começavam a não entrar nos dedos. A imagem da editora, já nas mãos do novo “boss” Joe Smith, era a de uma instituição tradicionalista que apostava em valores seguros e consagrados. Na passagem para a década de 80 vingava o gigantismo dos megaconcertos. Os Cars e Motley Crue chegavam para as encomendas. Também a “new wave” não ficara esquecida, com a assinatura dos Television e Dictators. Mais o “country & western” (Hank Williams Jr., Stella Parton) e os “rhythm & blues” (Donald Byrd, Grover Washington Jr.).
O testemunho é finalmente passado a Bob Krasnow, que pretende dar um estatuto “ético” à editora. Bob é um moralista. Por volta de 1983, enuncia a célebre máxima: “Todo o artista desta editora tem como única missão fazer música. (…) Quem vem apenas pelo dinheiro não pertence ao negócio da música, pertence ao negócio do dinheiro.” Donde se conclui que dinheiro e negócio não andam necessariamente juntos. Mas é na difícil arte da dialética que Bob se revela mestre, pois, logo de seguida, acrescenta ao ramalhete filosófico: “Também é verdade que ninguém se refere a uma ‘show art’, mas sim ao ‘show business’.” Completa o raciocínio com tirada mais profunda e por isso mesmo mais obscura: “Uma editora de discos tem de ter sucesso se quiser atrair artistas e público e, visto que o custo de construção de uma experiência estética tecnologicamente complexa se torna uma equação auto-suficiente, não é de espantar que os caminhos de atuação se tenham tornado circuitos fechados, oferecendo passagem fácil apenas à oferta mais diluída.” Ora, nem mais. Moral da história: a companhia mudou-se com armas e bagagens para Nova Iorque, cidade que como se sabe é das mais castas em termos de insensibilidade ao vil metal. Perto da catedral de St. Patrick e do centro Rockefeller, como que simbolizando a eterna luta entre o espírito desapegado e o mundo diabólico das finanças. E se, às vezes, o pobre capitalista sucumbe à tentação é porque, nisto das músicas, “à medida que alguém vai crescendo, torna-se vítima do seu próprio sucesso”. Pois é, coitados, são umas vítimas. Mas, no fundo, que importância tem tudo isso? Tudo se revela claro e inocente. E tem razão quem afirma que “é só música, uma canção que se canta e se vende”.

O Disco

É uma salganhada. Ainda por cima, tivemos direito apenas a uma cassete amostra que inclui um resumo aleatório, mal amanhado e ainda mais mal gravado, da totalidade da obra, deixando de fora nomes e ideias importantes e incluindo outros perfeitamente medíocres e de todo despropositados.
Dos que foram incluídos à laia de engodo, destaque para os Pixies e a versão paranoica e saturada de eletricidade, produzida por Steve Albini, de “Born in Chicago”, um original de 1965 dos Butterfield Blues Band; os Ambitious Lovers e o “funky” esquelético com que traduziram “A Little Bit of Rain” de Fred Neil; Wayne Horvitz e um Bill Frisell alucinado, a suportar Robin Holcomb, menina de voz tremida e poderosa como a da índia Buffy Saint Marie, de “Soldier Blue”, cantando “Going Going Gone”, do Bob Dylan de 1974; e os They Might Be Giants numa interpretação weilliana do original de Phil Ochs “One More Parade”. John Zorn e os seus companheiros Robert Quine e Bill Frisell foram cortados a meio mal tinham aquecido na histérica e coerente leitura que faziam de “T.V. Eye” dos Stooges. A fita não chegava…
O resto é Billy Bragg, mais frenético do que nas habituais tiradas políticas, em “Steven & Steven is” dos Love, os “rhythm & blues” dos Black Velvet Band para um original de Warren Zevon, o açúcar “pop Sugarcubes” sugado aos Sailcat, o “reggae” de Shinehead para um tema de Josh White, uma paródia à Pogues, em “Bottle of Wine”, de Tom Paxton, com acordeão e bandolim avacalhados, por parte dos Havalinas, os Happy Mondays armados em Stones no “Tokoloshe Man” de John Kongos, 10.000 Maniacs divertidíssimos e todos “seventies” a cantar “These Days” de Jackson Browne, como se fosse ontem, e, finalmente, os Beautiful South e mais uma voz feminina e inofensiva tentando imitar Kate Bush, com solos de sax pelo meio, em “Love Wars” da dupla Womack & Womack. Ah, sim, o anúncio abre com os Cure a assassinar “Hello I Love you” dos Doors. Os mesmos Cure que, parecendo ser os atuais meninos bonitos da editora, abrem e fecham o rubi, com a sua versão e direito a ver um tema seu, “In Between Days”, interpretado por John Eddie. Bem feito. Cá se fazem, cá se pagam.



Tudo ao Molho

De fora ficaram, por exemplo, a rendição de “Marquee Moon” dos Television, pelo Kronos Quartet, os Metallica de que seria divertido ouvir a maneira como trataram “Stone Cold Crazy” dos Queen ou Tracy Chapman e Linda Ronstadt interpretando respetivamente os tradicionais “Rising Sun” e “The Blacksmith”.
Jevetta Steele, Gipsy Kings, Faster Pussycat, Phoebe Snow, Ernie Isley, Howard Jones, The Big F, Georgia Satellites, Sara Hickman, Teddy Pendergrass, Jackson Browne, Shaking Family, Howard Hewett, Shirley Murdock, Leadres of the New School, Michael Feinstein, Lynch Mob, Anita Baker e Danny Gatton completam a lista dos “atuais” ignorados. Pensando melhor, depois de a ler, talvez haja razão para agradecer o facto de termos sido poupados à audição da totalidade de “Rubáiyat”. Da lista dos antigos constam, entre outros, os New Seekers, Eagles, Carly Simon, Delaney & Bonnie, Cars, MC5, John Fogerty, Bread, Incredible String Band e Judy Collins.
“Rubaiyat”, a julgar pela amostra, parte de uma ideia interessante para se perder numa megalomania pouco significativa em termos exclusivamente musicais. É caso para se dizer “muita parra pouca uva” ou que “a montanha pariu um rato”. Ou que “nem tudo o que luz é ouro”. Neste caso, rubi.