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Slapp Happy – “Slapp Happy / Desperate Straights”

pop rock >> quarta-feira, 13.10.1993


SLAPP HAPPY
Slapp Happy / Desperate Straights
Virgin, import. Contraverso



Por vezes acontecem coisas como uma reedição histórica que aparece sem fazer ondas, discreta, a chamar baixinho por quem a conseguir distinguir entre a confusão. O objecto em questão é um compacto simples onde couberam dois discos que são outras tantas preciosidades. A primeira, “Slapp Happy”, é o segundo álbum, após “Sort of”, do trio cujos membros viriam mais tarde a dar cartas: Dagmar Krause (a cantora alemã amante, salvo seja, de Brecht e Weill, mais tarde recrutada para as fileiras dos Art Bears), Anthony Moore (nunca me cansdarei de repetir: “Flying doesn’t Help” é uma das obras-primas absolutas do rock com neurónios) e Peter Belgvad (excêntrico que ajudou a dar vida aos Faust e Golden Palominos, tendo gravado por sua vez um álbum de excepção: “The Naked Shakespeare”). Acrescente-se que os Slapp Happy são o grupo ao qual os Young Marble Giants e, posteriormente, os Devine & Statton tudo devem.
“Slapp Happy”, de que existe uma segunda versão, “Acnalbasac Noom” (“Casablanca Moon”, o tema de abertura, ao contrário), com acompanhamento exclusivo dos Faust, é pop em equilíbrio sobre o arame, a grande altitude e sem rede, colhendo lá do alto os frutos maduros das árvores musicais adjacentes. A Lua faz das suas: no “jazz” de cabaré enfeitado com uma “Slow moon’s rose” que se deixa embriagar por um cocktail mambo, em “Casablanca Moon”; a mini-opereta, “Me and Parvati”, invadida pelo psicadelismo de faz-de-conta de “Mr. Rainbow”, entre outros malabarismos. Cada pequena canção é uma curta-metragem surreal, um quadro com vida – por vezes bastante estranha – e cor próprias. E podem trocar-se as referências que continua tudo a bater certo.
Jean-Hervé Peron, dos Faust, Roger Wooton (ex-Comus), Andy Leggett (Whole World, de Kevin Ayers), Keshave Sathe (de uma das formações de John Renbourn) e Geoff Leigh (dos primeiros Henry Cow) associaram-se a este projecto sem paralelo onde de génios e loucos todos t~em um pouco.
Vai mais longe “Desperate Straights”, metade do par de álbuns resultantes da fusão dos Slapp Happy com os Henry Cow, assumindo os primeiros um papel de maior peso, enquanto em “In Prise of Learning” são, pelo contrário, os Henry Cow que tomam o comando das operações.
Incluo “Desperate Straights” na minha lista pessoal dos dez melhores álbuns de sempre. Ressalta da audição uma impressão imediata de um momento irrepetível onde tudo confluiu para a criação artística ao mais alto grau. Depois “Desperate Straights” tem visão, e de longo alcance, conseguindo além disso criar um ambiente de imagens e o espírito únicos de uma Europa crepuscular. Cada “canção” ergue-se como uma catedral gótica a acenar com tradições milenárias. Obra impregnada de um humor trágico, fruto envenenado de uma “Bad Alchemy”, só comparável ao dessa outra, também prima, que é “Rock Bottom”, de Robert Wyatt, “Desperate Straights” não tem explicação. É um arrepio pela espinha. Um conto de Lovecraft na era atómica. Instantâneos de cidades povoadas de torres e castelos em ruínas onde assomam os rostos monstruosos de gárgulas iluminadas por néons mortiços. Bartok, Stravinsky, Mahler e Satie encontram-se nas sombras destas urbes imaginárias, que Schuitten não desde nharia desenhar, ao som do “Messias” de Haendel. “Europa” a dançar a valsa dos danados. Antes que o colapso e a cacofonia, perturbentemente profética, do tema final, “Caucasian lullaby”, provoquem a derrocada final. A guitarra de Fred Frith voa a grande altura, Chris Cutler inventa as batidas de um contingente rítmico inteiro. Tim Hodgkinson (The Work) e John Greaves (National Health, por exemplo, outro dos génios ignorados a quem o tempo há-de fazer justiça) empenham-se por seu lado em deixar marca numa obra que perdurará para a posteridade. E, claro, os tr~es Slapp Happy, com a voz de Dagmar Krause em desempenho de alto nível, menosligeiros, a encabeçarem um cortejo de primeira classe – naquele comboio de cuja linha só muito poucos conhecem as estações… – onde seguem Pierre Moerlen (Gong), Mongezi Feza (já falecido, tocou trompete com Robert Wyatt, precisamente em “Rock Bottom” e “Ruth is Stranger than Richard”), Lindsay Cooper (Henry Cow, Art Bears, tudo o que de mais moderno se vem fazendo em Inglaterra), Mont Campbell (Egg, uma das bandas importantes e menos conhecidas da cena de Canterbury) e Nick Evans (da corrente “free” inglesa dos anos 70, participou em “Lizard” e “Red”, dos King Crimson). Um portento. (10)

King Crimson – “Sleepless – The Concise King Crimson”

pop rock >> quarta-feira, 06.10.1993
REEDIÇÕES


King Crimson
Sleepless – The Concise King Crimson
Virgin, distri. EMI VC



Nova colectânea do rei carmesim, numa linha de intermináveis registos com que Robert Fripp se propõe eternizar a memória dos King Crimson, uma das bandas seminais dos anos 70, que teve segunda vida, revista e adaptada, nos anos 80. “Sleepless”, como diz o subtítulo, serve de catálogo para a obra monumental que está guardada na caixa quádrupla “The Essential King Crimson”, editada há dois anos em Portugal (há outra edição quádrupla, “The Great Deceiver”, reunindo registos ao vivo), e inclui temas recolhidos de todos os álbuns da banda, à excepção de “Lizard”, que, pessoalmente, consideramos ser o seu melhor, mas que Fripp parece menosprezar, talvez com verginha da sua faceta mais sinfónica ou da presença, neste disco, de um convidado que se move em planos opostos aos seus, Jon Anderson.
Seja como for, aqui aparecem, em “re-masters” que Fripp considera como sendo as “edições definitivas”, temas como “21st century schizoid man”, “Epitaph”, “In the court of the crimson king”, “Cat food”, um excerto de “Starless”, “Red”, “Fallen angel” e os mais recentes “Elephant talk”, “Frame by frame”, “Three of a perfect pair” e “Sleepless”, entre outros. Uma boa amostra da estética de uma banda que avançou contra as correntes dominantes da música progressiva. (8)

Heiner Goebbels – “Shadow / Landscape With Argonauts2

pop rock >> quarta-feira >> 19.05.1993


Heiner Goebbels
Shadow / Landscape With Argonauts
CD ECM, distri. Dargil



Heiner Goebbels gravou há alguns anos, na editora ECM, as estranhas aventuras de “Um homem no elevador”, sobre “libreto” do seu habitual colaborador Heiner Müller (que recentemente trabalhou com um dos elementos dos Einsturzende Neubauten, na ópera “Hamplet Maschinen”).
Neste seu novo trabalho, o antigo companheiro do saxofonista Alfred Harth mantém-se fiel ao estilo de “Der Mann im Fahrstuhl”, alternando numa única sequência, separada por indezes, textos declamados (de Heiner Müller e do escritor inglês Edgar Allan Poe), sobre uma base musical acusmática, com temas instrumentais / vocalizados, bastante mais acessíveis que os do elevador.
O assunto gira de novo em torno de um pesadelo, dos muitos que Poe idealizou e que os apontamentos de Müller reenviam, de um contexto simbolista, para uma cacofonia de referências disparadas ao caos da sociedade actual. Curioso, o núcleo de músicos convidados: René Lussier (Conventum, guitarrista-mor canadiano da Recommended e das Ambiances Magnétiques, parceiro habitual de Fred Frith), Charles Hayward (percussionista e conceptualista, This Heat, The Camberwell Now), Christos Govetas, nos sopros, e a cantora árabe Sussan Deihim (das “Desert Equations”, na Made to Measure), cujas inflexões vocais conduzem a música pela trela. Algures entre os mistérios proibidos de “Deadly Weapons” (Beresford, Zorn, etc.) e as gramáticas mais dançáveis de “Sahara Blue” (Hector Zazou) e dos Minimal Compact, estes argonautas da sombra poderiam mesmo assim ter navegado mais longe. (7)