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Kraftwerk – “O Admirável Mundo Novo” (artigo de fundo | dossier | blitz)

BLITZ 3 ABRIL 1990


KRAFTWERK

O ADMIRÁVEL MUNDO NOVO


«I Sing the Body Electric»
Ray Bradbury

Bip Bip Bip. Boing Boom Tschak. A beleza da música dos alemães Kraftwerk é a beleza da eletricidade em estado puro. A harmonia da informação circulando livremente através dos chips de circuitos integrados. O classicismo digitalizado. A herança elegante de uma Europa crepuscular rendida à imagem requintada da despersonalização e da indiferença. Ralf Hutter, Florian Schneider, Wolfgang Flur e Klaus Roeder são as quatro máscaras humanas para um rosto que deixou de o ser. Manequins de gesto suspenso sobre a imobilidade gelada do Tempo aprisionado. Save. Enter. Return.

É costume considerar os Kraftwerk como os precursores de quase todas as principais inovações relativas às técnicas de estúdio. O «Disco Sound» ou o «Rap» proclamam-se devedores das manipulações sonoras levadas a cabo pelos quatro homens de Dusseldorf. Estes não confirmam nem desmentem, limitando-se a gravar discos, sem fazer grandes ondas e alargando com cada um deles as fronteiras do que se convencionou na generalidade designar por «música eletrónica».



Hutter e Schneider, os fundadores da banda, encontraram-se em 1970 no Conservatório de Música de Dusseldorf, uma das cidades mais industrializadas da Alemanha, e formaram os Organisation. Sob esta designação foi editado o álbum «Tone Float», gravado e produzido por Conny Plank numa refinaria de petróleo da cidade. No mesmo ano nascem os Kraftwerk que gravam no ano seguinte o álbum estreia «High Rail», com o selo Philips. No ano seguinte a Vertigo reúne estes dois discos num duplo intitulado simplesmente «Kraftwerk», infelizmente há já alguns anos fora do mercado. Na sua fase inicial a música do grupo conciliava as explosões de metal, o minimalismo e a música concreta com um lirismo exacerbado tão caro ao Romantismo alemão. Grupos como os Einstuerzende Neubauten, Test Dept, ou os primeiros SPK decerto que ouviram e aprenderam muito com este disco seminal.
O álbum seguinte, «Ralf and Florian», de 83, prossegue a mesma via, com temas fabulosos como «Eletrisches Roulette», à beira da esquizofrenia, a dança metálica de «Tanzmusik» e os catorze minutos planantes, cristalinos e tropicais de «Ananas Symphonie».
Em 74 os Kraftwerk passam a quarteto, com a inclusão de Klaus Roeder e Wolfgang Flur, respetivamente no violino e guitarra e nas percussões eletrónicas. É com esta formação que gravam, no mesmo ano, a obra-prima «Autobahn», um dos melhores discos de sempre de música eletrónica. O primeiro lado é ocupado na totalidade pela faixa do mesmo nome, uma «trip» psicadélica-automobilística, só ao alcance das auto-estradas e das cabeças teutónicas. Sem despistes e com as mudanças engatadas sempre na altura exata. Nunca os sintetizadores, «Vocoders» e «sequencers» tinham andado a tanta velocidade. O Futuro tinha começado. Do outro lado do disco o fogo-de-artifício sonoro em duas deslumbrantes versões de «Kometenmelodie». Surpreendentemente as rádios americanas e inglesa tocam uma versão mais curta de «Autobahn». O single e o álbum alcançam todos os Tops abrindo caminho para a vaga do «Eurodisco», com Giorgio Moroder à frente. «I Feel Love» é a voz de Donna Summer sobre um plágio grotestco dos ritmos robóticos dos alemães. Curiosamente este tema tem sido «samplado» pelas novas bandas até à exaustão. O Tempo é cada vez mais uma ilusão.
Em outubro de 75 Karl Bartos (percussão eletrónica) substitui Roeder, ficando assim constituída a formação que até à data se mantém inalterável. No mesmo mês, os Kraftwerk abandonam a Philips/Vertigo e formam a sua própria editora a Kling Klang, distribuída pela EMI. Ainda em 75 é publicado o LP «Radio Aktivitaet», versão original alemã de «Radio Activity» que sai em Inglaterra no ano seguinte. «Radio Activity» é o álbum mais fraco da banda, versão turístico-infantil da estética futurista. A simplicidade de meios, propositada ou não, e letras pueris à beira do imbecil tornam a audição do disco apenas divertida. Destaque mesmo assim para o título-tema «Radio Activity» e «Airwaves», dançáveis e irremediavelmente coláveis aos ouvidos.
1977 é o ano de «Trans Europe Express», dos manequins-réplicas em palco e do retorno à boa forma. «Trans Europe Express», «Metal on Metal» ou «Franz Schubert», metálicos, gelados e repetitivos são paradigmáticos e proféticos da «Cold Wave» que se avizinhava. Mais uma vez os Kraftwerk ditavam as leis, escrupulosamente seguidas pelas gerações futuras.
«The Man Machine» aparece no ano seguinte levando às últimas consequências todas as anteriores premissas estéticas e ideológicas do grupo. O fator humano cede definitivamente ao fator máquina. O álbum abre com «The Robots» e fecha com «The Man Machine». «Spacelab», «Metropolis», e «Neon Lights» são imagens de um filme fantasmático sobre cidades percorridas por sonâmbulos, ecos de «slogans» cibernéticos e neons deslumbrantes. O filme para. A realidade é elétrica. A luz torna-se branca. E fria.
«Computer World», de 81, é mais humano ou talvez não consoante a perspetiva. Em «Pocket Calculator» os Kraftwerk utilizam o som de uma calculadora eletrónica de bolso. «Numbers» é a Torre de Babel do Novo Mundo reduzido a ações de compra e venda, números e mais números soletrados em diversas línguas sobre um ritmo implacável de máquinas em sintonia. A realidade é matemática, rigorosa, previsível e programável. «Computer Love», bits em forma de coração, «I-L-O-V-E-Y-O-U» repete a voz sintetizada enquanto a mensagem vai piscando no monitor. «Home Computer», «It’s More Fun to Compute» e as máquinas continuam a dançar.
«Tour de France», como o nome indica, é dedicado à célebre prova velocipédica e aparece no filme «Breakdance» (!).
Finalmente, em 86, a EMI edita «Electric Cafe». Os Kraftwerk atingem com este disco o ponto de plenitude em que a superficialidade e o desprendimento se confundem com o sublime. O humor surge radioso no fim e do alto da tragédia há sempre um sorriso irónico e distante. «Techno Pop» é o estado atual da música Pop massificada, reduzida a sons empacotados e prontos a vender em supermercados. «The Telephone Call», a conversa telefónica unilateral com uma gravação que insiste em dizer que aquele número foi definitivamente desligado. «Sex Object», de novo os bonecos-fétiche de carne e osso. Palavras vazias, repetidas, destroçadas. Séc. XX ou XXI, já nada faz sentido ou tudo faz simultaneamente todos os sentidos. Todas as coisas, todos os sons, Eletricidade, «Electric Cafe», sintético, sonoro, nuclear, infinito, finito, circular, sintético, sonoro, «Musique Non Stop» – «Techno Pop».

Vários (KGA, Plastic People, Istvan Martha, Der Expander Des Fortschritts, Boris Kovak) – “A Leste Tudo De Novo”

BLITZ 6 MARÇO 1990 >> Valores Selados


A LESTE TUDO DE NOVO

Não há dúvida que novos ventos sopram do Leste. De feição, no caso da música. Novos sons vão invadindo o Ocidente, suscetíveis de injetar sangue novo no panorama das músicas alternativas independentes europeias. Os apaixonados pelos sons originais das «Outras esferas» já não tinham mãos e ouvidos a medir, perdidos no meio das dezenas e dezenas de bons discos produzidos um pouco por todo o lado à margem das estratégias comerciais. Se o ritmo já era difícil de acompanhar, agora é preciso contar também com a brigada (ex)vermellha.

No princípio eram os novos totalitaristas como os Laibach ou os Last Few Days, operários, radicais, provocadores, subversivos e estimulantemente violentos. Os primeiros, depois de alguns desvios que deram mau resultado, regressaram às trombetas e fanfarras militaristas iniciais, agora rotulados com o selo de qualidade de «Novos clássicos». Em todo o caso, o mais recente «MacBeth» não envergonha os seus autores quando comparado com o ponto máximo que foi o estreante «Nova Akropola».
Quanto aos Last Few Days substituíram as sirenes, megafones e «slogans» anarquistas pelos ritmos, pelo menos mais rentáveis, da dança. Mudam-se os tempos, mudam-se as subversões…
Dos Holy Toy, polacos mas liderados por um norueguês (Lars Pedersen), nada mais se soube, após uma série de bons álbuns e a obra-prima «diferente de tudo» assinada por Lars, «Death in the Blue Lake». E já que falamos de obras-primas convirá não esquecer essa outra que é «Insect Culture» dos soviéticos Popular Mechanics, de Sergei Kuriokhin.
Saliência ainda, na área do jazz, para a obra dos Ganelin Trio e para os projetos, conotados com a música concreta e eletroacústica, do grupo de percussão húngaro Amadinda, do checoslovaco Jaroslav Krcek («Raab») e deste músico juntamente com Georg Katzer (Alemanha Democrática) e Zygmunt Krause (Polónia) num mesmo álbum gravado para a Recommended («Aide Mémoire/Folk Music/Sonaty Slavickove»).
Recommended Records que se mantém, como habitualmente, atenta a todos os novos sons do Mundo e, neste caso particular, aos do leste europeu. Paralelamente à distribuição de uma revista de divulgação e apoio aos novos projetos e ideias oriundos daquelas regiões, associou-se à editora Points East, distribuindo para o Ocidente todos os seus discos. Os mais recentes valem todos a pena e estarão brevemente disponíveis na discoteca Contraverso que, por sinal, acabou de receber nova remessa de maravilhas com a chancela de qualidade «Recommended». Aqui vão entretanto algumas indicações sobre novos discos dos nossos amigos do Leste:

BORIS KOVAK: Ritual Nova 2
Segunda parte do dito ritual. Música tradicional jugoslava, eletrónica, sopros, sons ambientais, cântico gregoriano e sérvio, leituras do Corão (em fita ou sampladas). Ritual dividido em duas partes: «Dream of the Origine» e «Origine of the Dream», com várias secções de títulos místicos como «All under the Celestial Cap», «Sacred Millstone» ou «Mandala». Crescendos rítmicos e corais desembocando em episódios mais contemplativos, próximos dos de John Surman ou Stephan Micus. Delicioso.
Instrumentação: Sampler, Sax soprano, clarinete baixo, taragato (instr. Trad.), cítara (não confundir com a sitar indiana), percussão, violoncelo, fitas, vozes.
Referências: ECM (Micus, Surman), música étnica, Musci/Venosta, música religiosa medieval, Terry Riley, Laraaji.

DER EXPANDER DES FORTSCHRITTS (Alemanha Democrática): Álbum estreia com o mesmo nome
Oriundos de Berlim e destinados a espantar muita gente. Músicos fabulosos combinam todos os seus talentos na construção de labirintos sonoros com múltiplas entradas/saídas. Síntese de esquisitas manipulações eletrónicas com a decadência do cabaré berlinense, o free-jazz, vozes parasitárias e canções à beira da demência. A heterogeneidade completamente assumida e assimilada resultando numa música excitante e verdadeiramente original. A letra de um dos temas é retirada de um texto do filósofo Friedrich Nietzsche.
Instrumentação: Vozes, fitas, percussão, piano, saxofones, flauta, teclas/eletrónica, baixo e guitarra.
Referências: Cassiber, Goebbels & Harth, Fred Frith, Cabaré, Dada.

ISTVAN MARTHA (Hungria): Támad Aszél
Obra de grande fôlego denominada «Diário de som eletrónico» pelo próprio compositor. Longa suite subdividida em várias partes, contando com a participação de Marta Sebestyén e dos «Amadinda», entre dezenas de outros músicos importantes da cena underground magiar. À semelhança de Boris Kovak, o ponto de partida é a música tradicional (neste caso a húngara), reinterpretada e inserida num contexto atual. Polifonias vocais complexas e grandiosas e um aproveitamento de todos os sons planetários disponíveis, contribuem para a construção de um monumental edifício sonoro onde, mais uma vez, imperam as sínteses de estilos e épocas diversificados.
Instrumentação: Saxofones, flauta, trompa, shawn (instr. medieval de sopro), vocoder, bateria, guitarra, sintetizadores, trombone, órgão, violoncelo, sanfona, gaita-de-foles e harpa, mais o quarteto de cordas «Mandel» e o grupo de percussão «Amadinda».
Referências: Toda a música, desde a Idade Média até à Idade Digital.

PLASTIC PEOPLE (Checoslováquia): Midnight Mouse
Também conhecidos pelo nome completo Plastic People of the Universe. Já existem e gravam discos há uns bons aninhos. Politicamente empenhados e praticantes de um «jazz» híbrido construído à base dos sopros e de um velhinho sintetizador analógico «Korg». Superam todas as limitações técnicas com a originalidade dos arranjos, algures entre Carla Bley e os Henry Cow.
Instrumentação: bateria, trombone, baixo, vozes, sintetizador «Korg», violino e viola-de-arco eletrificados, guitarra, clarinete, clarinete baixo, flauta.
Referências: Fanfarras, música de feira, Carla Bley, Henry Cow.

KGA (URSS): ZGA
O vocábulo «ZGA» só existe na língua russa na forma negativa. Num sentido mais lato pode significar «ver». Os ZGA são niilistas até dizer chega, impenetráveis e incómodos. O álbum foi gravado ao vivo num apartamento na cidade de Riga e consta basicamente de ruído mais ou menos controlado com incursões na música dita industrial. Improvisações corrosivas e tortuosas levam a experimentação eletroacústica aos limites do intolerável.
Instrumentação: Clarinete, Ring Modulator, teclas, objetos de metal, percussão, baixo, bateria, vozes.
Influências assumidas: Biota/Mnemonists, Cassiber, John Zorn, Nurse With Wound, Henry Kaiser, John Cage, Ned Rothenberg, Luciano Berio.
Glasnost, Perestroika, Gorbachev, Vodka, até para a semana com os Kraftwerk.

Vários – “É Preciso Violentar O Sistema” (artigo de opinião | blitz | valores selados)

BLITZ 20 FEVEREIRO 1990 >> Valores Selados

O universo do Rock tem as suas mitologias bem demarcadas. Ao longo de quase 40 anos a indústria soube sempre absorver as inovações e a rebeldia pretensamente típicas do género, retendo apenas a sua imagem superficial, integrando-a e faturando à sua conta. Em Portugal somos mais aconchegados. Poucos arriscam sair dos círculos de amigalhaços. Rocker português sofre? Felizmente ainda há quem vá fazendo por isso…


«É PRECISO VIOLENTAR O SISTEMA»

A galeria de mitos fabricada pelo business, desde Presley até Ian Curtis dos Joy Division, passando por Hendrix, Jim Morrison ou Janis Joplin, tem como características comuns a morte e o excesso. O herói rocker é inseparável da sua condição de mártir. A fama, o dinheiro e o sucesso tornam-se demasiado pesados para serem suportados. O ego das estrelas é sempre extremamente frágil e complexo. No fundo são pessoas como nós só que mais sensíveis e vulneráveis.
Vão-se abaixo facilmente, afundados em terríveis dilemas existenciais. O seu estatuto de stars torna-se penoso. O sucesso é insuportável, a sua ausência também. O medo do palco transforma-se, com a experiência dos anos, em pânico. O talento passa a funcionar unicamente ao toque do álcool e das drogas.
A imagem pública sobrepõe-se à verdadeira personalidade. Tudo é agonia e sofrimento.
A indústria sofre em silêncio com a dor dos seus meninos de ouro e também em comovido silêncio vai fornecendo a farmacologia necessária e esfregando as mãos de contentamento. É um ciclo vicioso que desemboca na morte ou no abandono.
No nosso país de pequeninos são poucos os músicos que alcançaram o estatuto de mitos/mártires incompreendidos. O guitarrista Filipe Mendes, o Jimi Hendrix português, e mais recentemente António Variações são os dois únicos exemplos conhecidos. O primeiro nunca alcançou a merecida glória, o segundo passou de quase desprezado em vida para referência obrigatória para a nova geração de rockers, depois de morto. É triste, mas a coisa funciona mesmo assim.
Os nossos músicos não se arriscam muito. Morrer sim, talvez, mas muito devagarinho e de preferência só depois dos 90. Em vez de se afogarem em quantidades inimagináveis de substâncias proibidas caminhando rapidamente para a autodestruição, preferem ser empregados de escritório, bancários ou técnicos e computadores.
A máxima punk de que se é velho aos vinte anos não lhes diz nada. Em vez de se divertirem à grande em orgias com groupies apetitosas, casam e constituem família. Em vez de provocarem distúrbios na rua ou nos hotéis, serem presos por posse de droga ou destruírem em palco material do mais caro, preferem trabalhar e ser úteis à sociedade. Então essa rebeldia e espírito de transgressão? Que é feito da insolência e da provocação gratuita? Ou será que os nossos rockers são todos quarentões de barriguinha e bem instalados na vida?
Aos fins-de-semana, os nossos músicos rock tiram a máscara de cidadãos normais e cumpridores e trocam-na pela de estrelas do rock and roll. Mas porquê só aos fins-de-semana? Todos sabemos que o País fervilha de salas e de gente ávidas do bom velho compasso de 4/4. Não precisavam de se esconder por detrás de balcões de banco ou de escritório. Ou será que os nossos jovens rebeldes encontraram novas e mais subtis formas de subversão e contestação social? À fúria das guitarras elétricas, das calças justas e das letras intervencionistas, estilo «é preciso violentar o sistema», terão achado mais eficaz o desvio voluntário de um processo lançado nos labirintos de um arquivo ou a introdução de um vírus no computador? Não há dúvida que os tempos são outros?
Não se conhecem muitos casos apaixonantes ocorridos com músicos portugueses. Há o Jorge Palma que tocava no Metro, o António Manuel Ribeiro que levou com a casca de noz no olho e se casou, ou uma ou outra queda do palco. É pouco. A maior parte da vida do músico é passada a protestar: contra a falta de condições e de organização dos espetáculos ao vivo, o preço dos instrumentos musicais, a falta de um lugar para ensaiar sem incomodar os ouvidos dos vizinhos, a ausência de salas e de interesse das editoras. Uma vida de cão.
Os nossos músicos de rock dividem-se em três grupos distintos: o primeiro é o dos consagrados que subiram a pulso a escada do sucesso. É o caso dos UHF, GNR, Heróis do Mar ou dos Xutos e Pontapés. Ao fim de 10 anos de esforços e cedências conseguiram obter discos de prata e ouro, com vendas astronómicas na casa dos dois e três mil exemplares. Vão à televisão e enchem os arraiais de província. Ao fim de mais 10 anos arriscam o Coliseu. E ao fim de outros 10 começam a considerar a hipótese de abandonar os empregos seguros. Passam a vida à procura de projeção no estrangeiro e a afirmarem que «desta vez é que é», «o empresário interessa-se mesmo pela nossa música» e «estão reunidas as condições necessárias». O melhor que conseguem é ir tocar a Espanha, vá lá, com sorte, a França, perante emigrantes. No regresso contam que a Europa os adorou.
O segundo grupo é o dos desgraçados tesos, sem dinheiro sequer para comprarem os instrumentos. Procuram furar a todo o custo mas raramente o conseguem. Afirmam-se todos independentes e marginais mas à primeira oportunidade assinam por uma multinacional. A maioria não chega a gravar qualquer disco e mesmo esse vende-se pouco. Incluem-se neste grupo os incontáveis concorrentes aos concursos do Rock Rendez-Vous ou a massa amorfa das bandas de bailarico. Não cito nomes para não desmoralizar. Além de que a vida não é só música.
Por fim há os queridos da crítica, uns realmente bons outros nem tanto, que ou por terem verdadeiro talento ou boas amizades nos meios certos adquirem uma aura de prestígio e qualidade. Têm mais fama que proveito. É o caso dos realmente talentosos Mler Ife Dada, Sétima Legião, Madredeus, ou Nuno Canavarro, entre outros apenas preocupados com a qualidade da música que praticam. Tocam poucas vezes ao vivo mas não se ralam muito. Gravam bons discos mas as massas persistem em ignorá-los. São teimosos e ingénuos e pensam que a qualidade, a sinceridade e a honestidade de processos bastam para a obtenção de sucesso. Não bastam. Mas ainda bem que persistem na sua ingenuidade e teimosia.
O melhor do «rock português» não é rock. Às vezes é português…