Arquivo da Categoria: Críticas 1990

Vários (Marta Sebestyen & Muzsikas – “Blues For Transylvania” + Mari Boine Persen – “Gula Gula” + Vários – “Banda Sonora Do Filme ‘The Mahabharata'” + Mouth Music – “Mouth Music” + Jon Hassell – “City: Works Of Fiction” + Ingram Marshall – “Three Penitential Visions / Hidden Voices” + Steve Shehan – “Arrows” + Ersatz – “Ersatz”) – “O Melhor de 1990″ (world e electro)”

Pop-Rock 02.01.1991


O Melhor de 1990

WORLD


1990 foi sobretudo o ano de todos os encontros, cabendo ao Oriente a parte de leão, desde a enésima versão das vozes búlgaras às divagações eléctricas centradas na Ásia. Em Portugal, o acontecimento do ano, nesta área musical, passou despercebido: numa perspectiva descentralizadora, realizaram-se no passado Verão, em Oeiras, Famalicão e Évora, os primeiros Encontros Musicais da Tradição Europeia, organizados por uma cooperativa nortenha. Foi possível escutar ao vivo a magia musical de regiões culturalmente tão ricas como a Escócia, a Cantábria, o Piemonte e a Ocitânia, trazidas respectivamente por Andrew Cronshaw, Manuel Luna, La Ciapa Rusa e Perlinpinpin Folc. Também no capítulo das edições discográficas, nomeadamente de música celta, os adeptos não se puderam queixar, graças a alguns importadores nacionais que tornaram disponíveis, entre nós, catálogos tão importantes como os da “topic”, da “Iona” ou da “Green Linnet”.

MARTA SEBESTYEN & MUZSIKAS
Blues For Transylvania
Hannibal, distri. Nébula

Foi na Transilvânia que Drácula e Ceaesescu, pela imaginação ou pela revolta verdadeira da população, se viram arrancados dos tronos do poder. Terra de violentos confrontos, telúricos e políticos, cantada pela voz forte e doce de Marta Sebestyen. Como em “The Prisoner’s Song” e “Muzsikas”, de novo se canta a história e o dorido queixume da alma romena, aqui expressos com tanta intensidade, como se do lamento de um “blues” se tratasse. No seio das “Muzsikas”, a tradição é assumida como acto. No ano passado, a banda tocava em homenagem às vítimas de Timisoara, conciliando o inconciliável – tradição e revolução.

MARI BOINE PERSEN
Gula Gula
Real World, distri. Edisom

Mari nasceu em Gamehisnjárga, promontório algures a norte da Escandinávia, atravessado pelo rio Anarjohka e habitado pela etnia Sámi. Os mapas não registam tal local. Nunca é tarde para se aprender geografia. Mari optou pela “civilização”, passando a sentir na carne o confronto entre diferentes culturas. Na escola ensinavam em norueguês. Resolveu mudar o estado das coisas, recuperando a língua e o espírito antigos. “Gula Gula” significa “Escuta a voz dos antepassados – assombrações e melodias estranhas, auroras boreais que esculpem, lentamente, novas maneiras de sentir.

Banda Sonora Do Filme “The Mahabharata”
Real World, distri. Edisom

O princípio do mundo, segundo a lenda hindu, recriado pela inspiração colectiva de um grupo de intérpretes de várias nacionalidades, baseada nos sons tradicionais, nomeadamente do Tibete e da Índia. Música de “fusão”, bem entendido, que combina diferentes sensibilidades e discursos musicais, unificados por uma comum aspiração à beleza absoluta. “Música do mundo” em todo o seu esplendor a que os poemas de Rabindranath Tagore e a voz de Sarmila Roy acrescentam a dimensão do sublime.

MOUTH MUSIC
Mouth Music
Triple Earth, import. Contraverso

Discos de música celta, saídos este ano, ainda cá não chegaram. Este “Mouth Music” (ou “Puirt a Beul”, em gaélico, designando um estilo vocal destinado à dança) acaba por ser um bom substituto, talvez não muito do agrado dos puristas, mas, de qualquer modo, uma entre outras interpretações possíveis da música tradicional escocesa. Os instrumentos de Martin Swan e a voz cristalina de Talitha MacKenzie fazem-nos acreditar que o mundo é uma história de encantar.


ELECTRO

Tornado obsoleto o termo “new age” – por demasiado redutor quando aplicado, na generalidade, a músicas formal e esteticamente assentes no primado da electrónica -, nem por isso estas têm deixado de enveredar por caminhos e “idades” (passadas e futuras) que constantemente procuram actualizar o conceito de “novo”, “Ambiental”, “industrial”, “planante”, “meditativa”, “ritual”, “techno”, são outras categorias abrigando o espírito exploratório dos “malucos” dos computadores, sequenciadores, sintetizadores e máquinas afins, unidos na epopeia de “dar novos mundos” ao mundo da música.
1990 foi o ano da pluralidade e da síntese dos folclores planetários (reais ou imaginários) com a alquimia digital. Nunca como agora soaram tão bem juntos o vento, a água, o canto das vozes e dos instrumentos tradicionais, a electricidade e a imaginação humana. Insustentável beleza do Apocalipse…

JON HASSELL
City: Works Of Fiction

Land, import. Contraverso
O trompete galáctico e tribal, guia condutor das viagens pelos sonhos e lugares luxuriantes do mundo que há de vir, Jon Hassell demanda a totalidade e nunca, como nestas “ficções”, esteve tão próximo de a alcançar. Depois das experiências, em “Flesh Of The Spirit”, com o agrupamento do Burkina Faso, Farafina, e do tropicalismo brasileiro de “Earthquake Island”, o trompetista americano lançado por Brian Eno consegue criar uma espécie de “funky” estratosférico (o temas “Voiceprint” teve mesmo direito a nova mistura, em versão maxi, ainda mais dançável) que actualiza a ideia de “aldeia global)” enunciada por McLuhan.

INGRAM MARSHALL
Three Penitential Visions / Hidden Voices

Elektra Nonesuch, import. VGM e Contraverso
Para Ingram Marshall, todos os sons são matéria susceptível de transmutação. Um computador soletra as sílabas mágicas da natureza, sirenes de nevoeiro vibram como sinfonias. “Abrandamento da percepção temporal” e “evocações encantatórias”, segundo o compositor. Em “Three Penitential Visions” utiliza como matriz sonora o ranger do gigantesco portão em aço da cadeia de Alcatraz. “Hiden Voices” junta “samples” de cânticos fúnebres russos, a uma soprano feminina entoando um hino religioso. Reinvenção do sagrado.

STEVE SHEHAN
Arrows

Made To Measure, distri. Contraverso
Steve Shehan toca neste disco cerca de cinquenta instrumentos diferentes, desde os artefactos étnicos primitivos aos “samplers” mais sofisticados. Na confluência das sínteses festivas da dupla Musci / Venosta com o ascetismo e contenção de Stephan Micus, a música de Steve Shehan cria paisagens de extraordinária serenidade e complexidade, recriando as forças de um mundo ancestral em que “a música existia somente por causa do poder da vibração e do seu efeito, místico e sensível, sobre a condição humana”.

ERSATZ
Ersatz

Pinpoint, import. Contraverso
Dieter Moebius (antigo companheiro de Joachim Roedelius, nos Cluster), e um tal Renziehausen, inventaram a fábrica do futuro. Ambientais, industriais, frios, robóticos, hipnóticos, os Ersatz são tudo o que se lhes quiser chamar. Se Roedelius representava a faceta romântica dos Cluster, Moebius deitou para trás a melodia e carrega com força na tecla do ritmo e dos automatismos electrónicos. Abstracta, terrivelmente sedutora, a música destes alemães prolonga a racionalidade milimétrica dos Kraftwerk até ao limite demoníaco da pura matemática.

Mão Morta – “Corações Felpudos”

PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 26 SETEMBRO 1990 >> Pop Rock

O APELO DO SANGUE

MÃO MORTA
Corações Felpudos
LP, Fungui


Sangue, muito sangue! – clamam, sedentos, os Mão Morta. A banda de Adolfo Luxúria Canibal não faz a coisa por menos: faixa sim, faixa não, escorre hemoglobina a rodos, tornando o coração mais felpudo numa massa ensopada de vermelho. A ideia que têm das atividades geralmente designadas de “amorosas” consiste basicamente em espetar facas na barriga do parceiro(a). Tudo é escuridão e terror. “Corações Felpudos” (título sugerindo coisas como Gremlins sequinhos ou bichos de peluche) esconde horrores inomináveis, abomináveis, perversões. “Gritos e lâminas afiadas / tingem de sangue os lençóis”, crimes, reais ou sublimando uma sexualidade cruel, em que o prazer se alcança inevitavelmente pela dor. “Este punhal uma ilusão / que seguro firme contra o corpo / metal frio de carne sedento”. Enquanto os Xutos se divertem e enriquecem à custa da Pepsi e os UHF militam no combate a velhos fantasmas – os Mão Morta encarnam a violência e o vazio urbanos do final do século.
Adolfo Luxúria Canibal não canta – berra, vocifera, blasfema, esbofeteia os preconceitos auditivos, destila ódio, como no tema do mesmo nome, um dos melhores do disco, fazendo de cada palavra uma faca, cada entoação uma punhalada dirigida ao âmago das pequenas e grandes coisas que fazem da vida um inferno. No limite do ódio, a paranoia absoluta – “As trevas estão por aí escondidas / à espera que eu apague a luz / para se lançarem sobre mim” ou a violência ritual exemplificada no tribalismo onomatopaico de “É Uma Selvajaria” (outro dos grandes temas do disco). “Facas em Sangue” sumariza na perfeição as cores prevalecentes: negro e vermelho, o sangue e a noite, onde se gritam blasfémias e se ama até ao aniquilamento. “Das trevas nasce a luz / mas a luz sempre às trevas regressa” – eterna e cíclica viagem sem redenção possível, que só a morte liberta.
Musicalmente, “Corações Felpudos” investe no furor das guitarras, no ruído controlado, na repetição angustiada, na brutalidade dos arranjos. Em alguns temas notam-se algumas influências ou meras semelhanças, nada de grave, se considerarmos a excelência das mesmas: Pere Ubu (o desfalecimento das guitarras nos instrumentais “Olho da Máscara” e “Santana Menho”), Einsturzende Neubauten (nalgumas vocalizações de A.L. Canibal e na organização do ruído, como em “Ventos Animais”) ou, curiosamente, Snakefinger (em “Freamunde, Acapulco” e no instrumental final “Arlequim”).
Com “Corações Felpudos” os Mão Morta situam-se definitivamente do lado mais negro e marginal do rock português. Onde outros procuram a claridade dos tops, alcançada quase sempre à custa de cedências, Adolfo Luxúria Canibal, Joaquim Pinto, Zé dos Eclipses, Carlos Fortes e Miguel Pedro escolhem deliberadamente mergulhar no abismo. Acompanhá-los no mergulho pode ser penoso. Como apertar a mão a um cadáver e senti-la latejar.

Fleetwood Mac – “Behind The Mask”

PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 25 ABRIL 1990 >> Videodiscos >> Pop


FLEETWOOD MAC
Behind the Mask
LP e CD Warner Bros., import. WEA



Mick Fleetwood e Christine McVie, sobreviventes da formação inicial, têm, entre vários defeitos, uma grande virtude: a persistência. 23 anos consecutivos nesta vida não são brinquedo. De 67 até hoje, muita coisa mudou. Dos rhythm’n’blues dos primórdios nada resta. A partir do álbum “Fleetwood Mac”, de 75, primeiro de uma longa série de discos de platina, a banda encontrou a fórmula definitiva do sucesso. Vendas maciças e estatuto de meninos queridos das FM americanas são os sinais inconfundíveis do êxito da estratégia então aplicada, sendo a adopção da loirinha Stevie Nicks apenas mais uma operação de cosmética destinada à venda do produto. “Behind The Mask” não adianta nem atrasa em relação a discos anteriores. Canções bonitinhas condimentadas por produções sempre em cima da jogada e as vozes da dupla feminina Mc Vie/Nicks chegam de momento para manter a máquina a funcionar. Canções que se ouvem e se esquecem de seguida como açúcar dissolvido em café quente. Do esquecimento geral escapam a original introdução, em tintas eletrónicas, de “In the Back of My Mind” e a interpretação de Christine McVie no tema que dá título ao álbum. As gerações passam, mas os Fleetwood Mac não arredam pé. Para incómodo de muitos e deleite, se calhar, de muitos mais.