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Delfins – “Novo Capítulo Na História Dos Delfins” (teatro – banda sonora)

pop rock >> quarta-feira >> 04.05.1994


NOVO CAPÍTULO NA HISTÓRIA DOS DELFINS



“Breve Sumário da História de Deus” é uma peça teatral sobre textos de Gil Vicente com encenação de Carlos Avillez que foi levada à cena pelo Teatro Experimental de Cascais. Nesta peça, participa, como actor, Miguel Ângelo, vocalista dos Delfins, a quem foi entregue a tarefa de compor a banda sonora do “Sumário”. É a música desta banda sonora que os Delfins acabaram de gravar em estúdio, para um trabalho discográfico a editar “a partir do momento em que estejam as misturas terminadas, mais uma semana para pós-produção e o tempo, cerca de um mês, que leva a fabricar os CD” – conforme disse ao PÚBLICO o guitarrista do grupo, Fernando Cunha.
A música de “Breve Sumário” foi composta, ainda segundo Fernando Cunha, em “total liberdade”, em conjunto com a encenação de Carlos Avillez e em paralelo com os ensaios da peça: “Fomos-lhe mostrando, a pouco e pouco, o que tínhamos feito e ele gostou.” Inclusive “o Carlos Avillez mudou muitas coisas, como os próprios desempenhos dos actores, em termos de orientação e pontuação, para servir as canções, melhorando-lhes o aspecto cénico”. Embora frisando que este trabalho não será propriamente o novo disco dos Delfins – “basta ter os temas com as palavras de Gil Vicente para automaticamente nos transportar para outro universo” -, Fernando Cunha reconhece, no entanto, que há nele “muitos elementos” da banda. No fundo, trata-se de “uma certa viagem por alguns estilos diferentes que servem para musicar os poemas”, na qual “alguns temas têm uma vertente mais rock, mais pesada, enquanto outros são mais sensuais”.
Sendo a composição de bandas sonoras por grupos de rock nacionais um fenómeno pouco habitual na música portuguesa, esta gravação constitui uma excepção, que os Delfins sentiram e encararam como um “desafio”, na medida em que tiveram que “se adaptar a letras escritas num português um pouco arcaico, já com algumas centenas de anos”. Mas, devido ao facto “de as métricas estarem bastante bem feitas”, até nem foi tão difícil como os dois compositores, Fernando Cunha e Miguel Ângelo, pensavam.
Fernando Cunha dá um exemplo de como todo este trabalho, que marca a estreia no teatro dos Delfins, se processou: “Fizemos uma versão de uma canção nossa chamada ‘Soltem os prisioneiros’, que, na versão original, composta antes da revolução, estava conotada com a política e os presos políticos – uma canção bastante violenta. Depois, fizemos uma nova versão do mesmo tema, mais de acordo com esta época, mais alegre. O Carlos Avillez estava à espera de uma coisa com muita violência. Quando ouviu aquilo, ficou espantado e, ao mesmo tempo, achou que, de facto, a versão antiga já não fazia sentido nem teria hoje o mesmo efeito que teve há vinte e tal anos. Então, mudou, quase toda a encenação de modo a servir a nova versão.”
Fica em aberto a possibilidade de, no futuro, os Delfins repetirem uma experiência semelhante, uma vez que esta, nas palavras de Fernando Cunha, foi “óptima”.

Vários – O Fado Em Imagens No S. Luiz

cultura >> sábado, 18.12.1993


O Fado Em Imagens No S. Luiz

FADO TEATRO? Por que não? Uma encenação da história desta música que Amália e Marceneiro, entre outros, imortalizaram, dos princípios do século XIX até aos nossos dias, é o que se propõe mostrar o espectáculo Fado É Vida, em cena hoje a amanhã no Teatro S. Luiz, em Lisboa.
Mestres e discípulos, as anedotas e as lendas, o fado e a sua evolução vão desfilar pelo palco em coreografias que evocam a desgarrada, o fado fandangado, a figura de opereta, bem como nomes e lugares que ficaram, como o conde de Vimioso, a Severa, Marceneiro, Amália, Hermínia, Alfama, Mouraria, Bairro Alto…
Segundo Gonçalo da Câmara Pereira, principal promotor desta iniciativa, que já foi apresentada ao vivo em 1989, no teatro Tivoli, em Lisboa, num espectáculo de beneficência organizado pelo padre Vaz Pinto, Fado É Vida começará com a leitura de um poema do professor Mascarenhas Barreto, “a perguntar oo que é o fado”, a partir da qual se vai desenrolar “toda uma sequência de músicas de fados tradicionais já conhecidos do grande público, desde o fado corrido do Manuel de Almeida ou o ‘Fado Malhoa’ da Amália até aos fados tradicionais mais modernos, da ‘Mariquinhas’ ao ‘Dar de beber à dor’”.
Do elenco fazem parte, além de Gonçalo da Câmara Pereira, autor do guião e encenação, Mico da Câmara Pereira e José da Câmara, responsáveis pelos arranjos musicais, uma nova geração de fadistas composta por Manuela Teles da Gama, Eduardo Falcão, Matilde Pereira, Rui Neiva Correia e Miguel Alvarez, acompanhados à guitarra por Manuel Cardoso e Luís Ribeiro e, à viola, por Francisco do Carmo, além de 12 figurantes, “que farão o ‘décor’ do palco, para d ar um enquadramento ao espectáculo, apresentando, entre outras, as figuras das varinas e varinos ou as meninas do Chiado, com as tranças enfeitadas de violetas”.
Vai haver sequências de vários fados cantados num só, como por exemplo uma sobre cavalos, “interpretada só por homens”, além de uma parte dedicada ao fado balada, de António dos Santos, feita pelo José da Câmara, e um fado de Coimbra interpretado pelo Mico da Câmara Pereira, que aparecerá “vestido de estudante”.
Fado É Vida, depois da apresentação no S. Luiz, seguirá em digressão pelo “país inteiro”, já a pensar em Lisboa, Capital da Cultura e na Expo 98.

Egberto Gismonti – “Egberto Gismonti Compõe Para Novo Espectáculo De Ricardo Pais – ‘Onde Ninguém Ri Nem Chora Sozinho'” (entrevista)

cultura >> sexta-feira, 19.11.1993


Egberto Gismonti Compõe Para Novo Espectáculo De Ricardo Pais
“Onde Ninguém Ri Nem Chora Sozinho”



A sobrevivência da humanidade passa pela sobrevivência da Amazónia, diz o compositor brasileiro Egberto Gismonti, que Ricardo Pais convidou para musicar a leitura de Luísa Costa Gomes dos “Sermões” do Padre Vieira. Em “Clamor”, espectáculo a estrear até Março de 1994 incluído na programação de Lisboa 94.

Com a mesma convicção com que defende o actual Governo brasileiro e ataca a inconsciência e os interesses estrangeiros na Amazónia, Egberto Gismonti faz da sua música um manifesto poético em defesa de uma causa que é universal. A música que fará para os “Sermões” voltará a falar de uma questão que é de princípio e de sobrevivência.
PÚBLICO – De que modo se processou a sua leitura, do ponto de vista do compositor, dos textos do Padre António Vieira?
EGBERTO GISMONTI – Li-os e reli-os no Brasil. Seria impossível não gostar dos “Sermões” de Vieira. Aliás nós conhecemos Vieira no Brasil ao ponto de adoptá-lo como brasileiro. Da mesma maneira que gostamos tanto de Fernando Pessoa que já o citamos no nosso quotidiano, também como se ele fosse brasileiro.
P. – Sobre que bases vai escrever a partitura para a peça?
R. – Cerca de noventa por cento da música já está marcada. Isto quer dizer que nos pontos A, B, C, etc temos já um ponto de referência que nos diz que aqui deve haver a música X, do tipo tal. Não foi difícil para um director que conhece e gosta do que eu faço, como é o caso do Ricardo Pais, usar todos esses conhecimentos como sugestão. Acontece que depois de ler o texto no Brasil seleccionei do material que tenho gravado nos últimos dois anos com orquestras sinfónicas cerca de uma hora de música que dei a ouvir ao Ricardo e que ele aceitou imediatamente.
P. – Parece evidente que a temática do missionarismo e das civilizações índias presente nos textos de Vieira foi determinante para a sua chamada, uma vez que este tema tem sido uma constante do seu trabalho, nomeadamente nos recentes álbuns “Kuarup”, “Amazónia” e, de forma mais subtil, no novo “Música de Sobrevivência”. É uma questão vital para si?
R. – Produzi a respeito deste assunto muito menos do que gostaria. Gostaria de ter produzido cem discos!… E que todos eles, independentemente dos direitos de autor, tivessem chegado a 500 milhões de pessoas, porque todos eles tratam do que mais me estimula e sensibiliza nessa cultura: o respeito, a dignidade, o afecto… Felizmente tive a sorte de ver de perto uma sociedade digna, equilibrada onde ninguém sorri nem chora sozinho. É o que me sustenta há 15 anos, desde o meu primeiro contacto com os índios da Amazónia, em 1978.
P. – O texto poético que acompanha 2Kuarup” deu lugar, em “Amazónia”, a outro, bastante mais politizado, no qual o chefe índio Ailton Kernak diz: “Precisamos nos lembrar sempre que as 180 tribos existentes no Brasil hoje são apenas as sobreviventes das 900 nações indígenas existentes quando o branco chegou aqui”. Houve alguma reacção da parte do governo brasileiro?
R. – O Governo está agindo da melhor forma possível, de um ano e meio, dois anos para cá, que é expulsando os estrangeiros da Amazónia. O Governo brasileiro não precisa de explorar a Amazónia…
P. – Mas autoriza que os estrangeiros o façam…
R. – Autorizou. Através dos seus Governos militares e corruptos do passado. Mas à medida que os brasileiros começaram a tomar consciência do problema da Amazónia chegaram à conclusão de que 89 por cento deles eram os estrangeiros. E que os outros 11 por cento, a consequência de brasileiros que procuram a própria sobrevivência. Aí sim, já se trata de um problema social e governamental brasileiro. Mas mesmo esses foram estimulados a ir para regiões da Amazónia para trabalhar pelas grandes indústrias estrangeiras.
P. – No mesmo texto pode ler-se a seguir: “O que nós exigimos é que cada tribo possa ter, dentro do seu território, na sua região, uma proposta de autonomia, de autogestão do seu território e dos seus recursos naturais, estabelecer programas e metas próprias”…
R. – O Governo brasileiro está a ser bombardeado por partidos reaccionários por demarcar as áreas dos índios com a imensidão necessária. Não existe uma questão de merecimento. É uma coisa irrevogável. Na medida em que vocês chegaram ao Brasil, acabou o princípio dos índios. E tudo começou com a invasão – não foi descobrimento, não – que trouxe a reboque os grandes ladrões, ingleses e espanhóis que assalataram o país desde o início. Vocês até assaltaram pouco…
P. – Qual é afinal o problema principal da Amazónia?
R. – Os problemas reais da Amazónia ficaram demonstrados na ECO 92, a propósito da biodiversidade. O alimento de que este mundo necessita, no século XX, não é de comida mas de medicamentos. Medicamento surgiu sempre da biodiversidade. Não nasce na Floresta Negra na Alemanha, muito bonitinha e boa para tirar fotografia mas que não presta para o ser humano. O problema não está em o brasileiro tomar conta da Amazónia, mas nesses países que a destroem sem nenhum questionamento a ponto de, nessa época, o próprio Presidente norte-americano, George Bush, não ter assinado o acordo sobre a biodiversidade, assim como os ingleses. A sobrevivência do ser humano está determinada pela sobrevivência da floresta. Não se pode sequer falar da expulsão dos índios da floresta, mas dos índios com a floresta. Eles são a mesma coisa.
P. – O seu novo álbum, “Música de Sobrevivência” aborda o mesmo assunto de uma forma bastante mais subtil, em particular na longa litania “Natura, festa do interior”, que surge precedido pelo conselho de leitura, cinco minutos antes da audição, de um belíssimo texto de Manuel de Barros incluído no folheto, “Vesperal de Chuva”…
R. – A música pretende exactamente o mesmo que o texto. O Manuel de Barros fala das coisas que ninguém vê. Meu Deus, ele escreve prosa da melhor qualidade apenas para dizer: “Vai chover!”. Esses cinco minutos são uma sugestão de reflexão. Para dizer que a Vida não é uma linha recta entre dois pontos. Essa é a dos negócios. Para a vida não presta. “Música de Sobrevivência” é o título mais sintético que consegui achar para exprimir as sensações antagónicas que são o desespero, a tristeza, o aborrecimento, a decepção da humanidade e, por outro lado, a força de determinados sectores dessa humanidade para manter animadas e estimuladas a vida e a procura da vida. Sobrevivência é isso.