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Léo Ferré – “Léo Ferré Morre Aos 77 Anos – Amor-Anarquia”

cultura >> domingo, 18.07.1993
OBITUÁRIO


Léo Ferré Morre Aos 77 Anos
Amor-Anarquia


“No meu enterro não quero ver mais ninguém senão mortos”, disse uma vez em desafio. Ontem, no dia do seu funeral, talvez a sua vontade não tenha sido respeitada. Polémico e indomável, Léo Ferré, aos 77 anos de idade, partiu por fim para o “mundo perdido” de amor-anarquia que sempre cantou.



Poeta, músico e anarquista, Léo Ferré incarnou a revolta do indivíduo contra os poderes instituídos. As suas armas foram o amor e a anarquia, rosas com espeinhos de dizer a liberdade. Sonho de um “porta-voz de umk mundo perdido”, como se autodefinia.
Léo Ferré nasceu em 1916, no Principado de Mónaco. Começou a sonhar desde muito cedo. Aos quatro anos dirigia orquestras imaginárias. A primeira das quais, o mar. Quando já se fingia de adulto, em 1954, dirigiu a Ópera de Monte Carlo, numa “Symphonie Interrompue” da sua autoria, e uma adaptação musical de Baudelaire. “Le Chanson du Mal Aimé”. Cerca de 20 anos mais tarde, em 1975, voltou a vestir o fraque de maestro na direcção do “Concerto pour la Main Gauche”, de Maurice Ravel, no Palácio dos Congressos de Paris.
Nos tempos de juventude, estudou Direito. Um paradoxo para quem, como Ferrés regras. Da, na e para a poesia. Depois fez as malas e partiu para Paris – a “Paris canaille” de uma das suas canções – para os cabarés de Saint German-des-Près, onde a vida então merecia ser vivida. Aos poucos, foi descobrindo que o amor, melhor dizendo, a paixão, é inseparável da morte. E que as palavras podem ser uma maneira de a vencer. “Não sou violento na vida, sou violento nas palavras”, disse, porque “a poesia não se faz com panfletos, faz-se com as goelas bem abertas e com os verbos habituais, de preferência activos”.

“Amor Louco”

Léo Ferré escolheu cantar as palavras que minavam o senso-comum, o sono, a mediocridade e a subserviência. Sonhou alto canções que abriram as portas e janelas da loucura e do “amor louco” – segundo a expressão de Breton – dos poetas surrealistas: Aragon, Apollinaire, Eluard e Valéry. E dos simbolistas Rimbaud, Verlaine e Baudelaire.
Jacques Prévert entusiasmou-se com as suas canções. André Breton não lhe perdoou a publicação de “Poètes, vos papiers”. Ferré, libertário do sonho, solitário e solidário, sem defesas contra a vida, tinha a visão pura de uma criança e a inquietude de um adolescente a morder-lhe o espírito. O presidente francês François Mitterrand, para quem a morte do cantor significou “a perda de um dos criadores que levaram a canção ao mais alto nível de exigência e qualidade” viu no poeta-cantor “alguém que incarnava uma tradição que, desde a Idade Média, procurou unir a poesia e a música, a ligação da arte com o amor pelo povo”. Jack Lang, ex-ministro francês da Cultura, declarou por seu lado que Léo Ferré simbolizou a “memória das revoltas”, foi o “poeta das esperanças” dos franceses e que jamais será “recuperado pelos poderosos deste mundo”.
Mas se após a sua morte os poderosos se apressaram a ver nele o filho dilecto da doce França republicana, foram igualmente os poderosos – neste caso a sua editora de discos – que nos anos 60 lhe censuraram a canção “Mon général”, porque há coisas onde não se toca… Era incómodo este homem que se vestia de negro, cantava as “Flores do Mal” de Baudelaire, reivindicava de igual modo a esperança e a solidão. E que, numa das suas canções mais conhecidas – “Ni Dieu, ni maître” – proclamava não ter “nem Deus [“O que eu digo é que temos de nos libertar da ideia de Deus, da falsa ideia de Deus, de que os outros se servem para oprimir o próximo! Não há polícia melhor do que as religiões”], nem mestre” [“a posição de Bakunine é uma posição fantástica: é a do assassino, do bandido. Nós somos bandidos e, se isto for considerado um sacrilégio, estou de acordo!”.

O Anarquista De Mercedes

Léo Ferré que actuou na Federação Anarquista e cujas canções – “La Grève”, “Amour anarchie”, “L’été 68” – os estudantes revoltosos agitaram como bandeira no Maio de 68 e que mais tarde, lhe exigiram “música gratuita”, acusando-o de “anarquista de Rolls Royce”. A ele, que sempre preferiu o Mercedes. Yves Montand telefonou-lhe, certa vez, para lhe chamar “fascista vermelho”.
O mesmo Léo Ferré, polémico, incatalogável e indomável, que exigia um preço baixo para os bilhetes dos seus concertos, mas que declarava em tom de provocação: “Tenho dinheiro, é verdade. E depois? Vou ter de descer à rua para o distribuir? Porque sou um anarquista? Uma coisa não tem nada a ver com a outra e qualquer dia tudo isso há-de ser explicado.”
Uma das suas canções tinha por título “o anarquista de luxo”.
Vivendo em contramão Léo Ferré adoptou nos anos 70 a linguagem do rock progressivo, numa colaboração com o grupo Zoo, e elogiou publicamente um “clip” de Mick Jagger, partindo depois para o seu retiro em Itália, em Castellina, onde viveu durante os últimos 25 anos, na companhia da mulher, italiana, e dos seus três filhos. E onde morreu no passado dia 14, vítima de doença prolongada.
Na década de 80 actuou no Teatro Libertário de Paris e gravou os álbuns “Loubards”, “On n’est pas Sérieux quando on a Dix-Sept Ans” e “Les Vieux Copains”, este último já de 1990. Ferré actuou por diversas vezes em Portugal, depois do 25 de Abril, cantando em “A mon Enterrement” que no seu enterro não queria “ver mais ninguém senão mortos”. Preparava o espectáculo de consagração que nunca teve, no Grand Rex, quando a morte o levou.
Numa ocasião, em palco, Léo Ferré contou que recebeu uma chamada telefónica e uma voz lhe disse: “Alô, sou a morte, gosto bastante do que você faz.” Resposta do cantor: “Eu também!”

CAIXA

15 Quilos De Poesia

Quando a magia do verbo se une à poesia do traço e das cores, a arte torna-se uma emoção fora do comum. É o que sucede com a excepcional colecção que um pequeno editor decidiu consagrar à poesia de Léo Ferré.
Dirigida por André Philippe, a Grésivaudan publicou a poesia do cantor em cinco volumes, cada um deles ilustrado por dez litografias em página dupla e desenhos originais do pintor Jacques Pecnard, pesando o conjunto 15 quilos.
Esta obra poéticfa engendrou uma obra-prima da bibliofilia. Léo Ferré aplicara-se no trabalho de impressão, colaborando na paginação, escolhendo, inclusive, o tipo de letra, o Baskerville. Antes, porém, o editor terá precisado de seis anos para convencer Feré a publicar os seus poemas.
Depois, forma mais três anos de trabalho. Mas André Philippe estava longe de ser um novato, tendo já editado André Gide, Jean Giono, Guy de Maupassant, Jules Renard, Edmond Rostand, Paul Valéry, Georges Brassens e Jacques Brel. Fundou a Grésivaudan em 1968, após ter descoberto o universo dos livros, que começou por vender porta a porta.
Quanto ao pintor Jacques Pecnard, trabalhou para as maiores editoras (Flammarion, Larousse) e durante vinte anos colaborou no “France Soir”. Galardoado, em 1971, com o Grande Prémio dos Ilustradores de imprensa, tem exposto não só em Paris, como nos Estados Unidos e Japão.
Em Março de 1984, a Ulmeiro editou em Portugal a obra “Léo Ferré”, com uma primeira tiragem de 5200 exemplares. A selecção e tradução de poemas e canções foram de Luiza Neto Jorge, enquanto a coordenação e a tradução de outros textos pertenceram a Manuel João Gomes.

Georges Moustaki – “Concerto De Moustaki Segunda-Feira À Noite Em Lisboa – O Amor Ainda Louco” (concerto | crítica)

Secção Cultura Quinta-Feira, 28.11.1991


Concerto De Moustaki Segunda-Feira À Noite Em Lisboa
O Amor Ainda Louco


Georges Moustaki canta o amor. De forma diferente, em “Nous Sommes Deux” ou “La Pornographie”. Com a mesma convicção de quando seduzia adolescentes, com “La métèque”. Para muitos, foi o reencontro com o passado. E a descoberta da voz fabulosa de Marta Contreras.



Surgiu no palco do Tivoli, em Lisboa, vestido de branco. Dos sapatos à ponta dos cabelos e à barba de profeta. Georges Moustaki cantou velhas e novas canções. Tocou guitarra, acordeão, piano e bouzouki. Conversou com uma audiência ávida de recordar a cor dos sonhos de uma época. Sobretudo demonstrou ser um profissional que sabe jogar com as emoções próprias e alheias sem perder a autenticidade.
“Il est trop tard”, “Il y avait un jardn”, “Ma liberté”, “Porquoi mon Dieu”, “Voyage”, “Nous voulions”, foram temas que fizeram brilhar os olhos de muita gente. “La pornographie”, uma “homenagem à música francesa…” de fazer corar, deu lugar a uma sequência de música brasileira – “Sanfonero”, “Asa Branca”, de Luiz Gonzaga, e “Baía de Todos os Santos”, dedicada a Jorge Amado – que serviu para revelar uma grande cantora, a chilena Marta Contrearas, cuja voz, de múltiplos registos e intensidades, se soube impor a uma plateia extasiada. De forma subtil, encantatória, teatral ou sussurrada, consoante cada canção o exigia. Espantoso o dueto vocal que manteve com José Santana, técnico de luz, na ocasião cantor, em “Baía”.
Ao longo de duas horas de concerto, sempre as palavras de amor e de luta, a dança com o tempo e com as recordações: “Nous voulions changer le rume de l’Histoire”. “L’imagination ao pouvoir”. “Vive la liberte: tout est possible, tout est permi”. “Canções que dizem muito a algumas pessoas” – murmura em português, antes de ficar a sós no palco, consigo próprio, a guitarra e a memória dos outros. Cada refrão acompanhado em surdina pela assistência, em tom de veneração. “J ene suis jamais seul avec ma solitude”. Snif.
“La femme qui était dans mon lit n’a pas 20 ans depuis longtemps. (…) Gardez vos larmes et vos sarcasmes”. Magia amarga que terá tocado mais do que um coração feminino, abrigado na escuridão da sala.
De novo acompanhado pela banda de suporte – José Rossi, acordeão, Marc Berteaux, baixo, Luís Cavani, bateria, e a divina Contreras, voz e percussão – Georges Moustaki senta-se ao piano para vestir a pele de “pêcheur d’amour”, com o tom sofrido e solitário que faz vibrar a corda certa. Tensão aliviada por uma canção nova, “Nini”, que Contreras sobrepõe a “Lili Marlène”. “Nini Marlène”?. “Portugal”, de Chico Buarque e Ruy Guerra, faz levantar a assistência levada de seguida ao rubro, mal soam os primeiros acordes de “La métèque”, o tema mais desejado da noite.
“Venez dancer, les jeunes filles” – o desafio é lançado às “senhoras e raparigas” presentes na sala. Moustaki pega no braço de Contreras e abandonam o palco a dançar. Ao som de uma valsa que evoca a dos “mille temps”, de Jacques Brel. Momentos antes a cantora chilena cantara a solo uma canção, dando de novo a revelar o seu enorme talento. O espectáculo termina com um pequeno discurso aproveitado pelo cantor para saudar os seus “amigos portugueses” José Afonso e Luís Cília. “Ce fut”, em suma, “un bon” concerto. Mas é preciso acabar com esta mania de dizer bem de tudo o que é francês. “Mais oui.”

Georges Moustaki – “Georges Moustaki Actua Hoje À Noite Em Lisboa – ‘Não Sou Um Militante'”

Secção Cultura Terça-Feira, 26.11.1991


Georges Moustaki Actua Hoje À Noite Em Lisboa
“Não Sou Um Militante”


Passados mais de vinte anos sobre “Le Métèque”, o cantor afastou-se da política, ouve Ravel e afirma não compreender os ventos que sacoem o Leste. Canções antigas, nunca mais. A revolução agora é outra, confessou na conferência de imprensa que deu ontem em Lisboa, antes do espectáculo de hoje, às 21h30, no Teatro Tivoli.



Vagabundo das canções, Georges Moustaki – aliás Joseph Mustacchi -, grego de nascimento mas francês de coração, personifica os ideais de toda uma geração “engagée” que se viu retratada na boémia e libertinagem poética da “chanson française”. Ao lado de grandes vultos como Piaf, Gréco, Montand (“soube da sua morte pela televisão. Senti uma tristeza incontrolável”), Barbara, Brassens, Forestier ou Reggiani, fez frente ao conservadorismo, pugnando pela afirmação de uma música genuinamente francesa.
“La Marche de Sacco et Vanzetti” ou “Il est Trop Tard” são canções que agitaram consciências, provocaram, abalaram convicções. Hoje será talvez “trop tard” para alterar o estado de coisas: “Em França, o Estado preocupa-se mais com a máquina da indústria musical do que com os verdadeiros criadores.” Antes sobrava espaço para os músicos como ele, capazes de lutar contra o “rock ‘n’ rol”, essa “reciclagem da música negra, inventada para provocar a histeria das ‘petites filles’”.

“Ir Ao Encontro De Uma Ideia”

Georges Moustaki fez da vida uma viagem permanente, de encontro com os outros, com novas ideias, com a utopia. O seu novo disco, com edição prevista para o final da próxima Primavera, tem por título “Chansons de Recontre et de Voyage” e conta com a colaboração do compositor Angelo Branduardi.
Para trás ficaram velhos êxitos como “Milord”, “Sarah” e “Ma Liberté” e a vontade de as cantar – uma “fuga em frente para escapar ao peso da idade, da rotina, da carreira…”, embora não saiba “quando começa ou acaba a juventude”.
Entre as recordações de viagem e o apelo do futuro, nesse precário equilíbrio entre a memória e a vontade de avançar, Georges Moustaki recolhe ao porto de abrigo e ao apartamento da Île-St. Louis, em Paris, onde habita há mais de vinte anos, para reflectir sobre tantas peregrinações pelo mundo e pelo interior de si próprio. Lugar onde cabe o desejo de “escutar certos sons, de comer certos frutos, de amar certas mulheres” e de fruir a música de Debussy, Fauré e sobretudo Ravel, cujo Segundo Concerto considera a obra “mais perfeita deste século”, para ouvir “a comer, a dormir ou a fazer amor”.
Amigo de Georges Brassens, Boris Vian, Jorge Amado e Otelo Saraiva de Carvalho, cantou a revolução dos cravos e das mentalidades. Revolução, ontem, como hoje, na ordem do dia. Algo mudou entretanto.
Da política, que antes lhe proporcionava “emoções fortes”, procura afastar-se cada vez mais: “Não sou um militante, nem um especialista da política, apenas gosto de escrever canções de crítica”. Hoje, ser revolucionário é “ir ao encontro de uma ideia” e lutar contra a “rotina, a burocracia e a esclerose” que minaram esse conceito de revolução.
Os recentes acontecimentos do Leste europeu suscitam-lhe uma enorme perplexidade: “não consigo perceber o que aconteceu num país onde sempre prevaleceram os valores da dignidade humana, se súbito abalado por uma onda de selvajaria”. Viagens cumpridas. Viagens por cumprir.