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Vários – “Festival De Bourges – Da Terra Ao Céu, Com Bilhete De Ida E Volta” (festivais)

PÚBLICO TERÇA-FEIRA, 17 ABRIL 1990 >> Cultura


Festival de Bourges

Da Terra ao Céu, com bilhete de ida e volta


Domingo de Páscoa, dia de alegria para os fiéis, de Deus e da música. Até os fanáticos religiosos colecionadores de discos e BD foram contemplados com uma feira montada para a ocasião, na “Halle du Blé”. Para muitos foi o transe, para outros o desespero, perdidos no meio de tanta fartura. Em matéria de concertos, as vozes búlgaras e Patricia Kaas salvaram o dia.



Pouco passava da hora de almoço, já John Cale atuava no Grande Théâtre, completamente cheio, numa apresentação semelhante às recentemente realizadas em Lisboa. A mesma disposição cénica e idêntico alinhamento de canções. Sentado ao piano elétrico, por vezes auxiliado pelo sintetizador, ou abraçado à guitarra acústica, o esquema é sempre igual: o mito solitário expondo a sua genialidade perante o canibalismo das massas. Enquanto estas precisarem de mitos para se alimentarem, Cale tem garantida a sobrevivência.
Doçuras

No Palácio dos Congressos, os Cowboy Junkies, servidos por um som fabuloso, e aumentados de quatro músicos, limaram as arestas e asperezas dos discos (um disco tem arestas?), embrulhando os presentes em cetim. Os Cowboy conseguiram, através de uma música extremamente suave e da voz quente e aveludada da bonita Margo, criar momentos de contemplação, por vezes com tendência para estados místicos ainda mais profundos, como a sonolência, ou mesmo, no caso dos grandes iniciados, o sono cerrado. Mas foi, apesar de tudo, bonito de se ver e ouvir. A meio de uma versão anestésica de “Sweet Jane”, de Lou Reed, Margo despiu o blusão, provocando algum sobressalto na assistência. Falso alarme – por baixo trazia vestida uma T-shirt. Enfim…
Tanita Tikaram, também conhecida por Lolita Dolviram ou Mirita D’Artagnan, bateu na mesma tecla dos Cowboy – macieza, ternura, moleza. Voltámos todos a aconchegar-nos, fazendo beicinho e olhos de carneiro mal morto às doçuras cantadas pela voz açucarada de Tanita. A miúda é engraçada, dispõe bem. Pretender mais que isto é inventar. Mas, em relação a Tanita, cabe aos leitores, em última instância, decidir de que lado está a razão, se do meu ou se do da dita. Que querem? Tanita impele-me irremediavelmente para a rima.

Do céu caiu uma estrela

Religiosidade pura é a das vozes búlgaras do Ensemble Pirin, as tais que falam com Deus. Elevaram-se ao céu no interior da Catedral, levando consigo uma multidão fascinada por estas mulheres íntimas do paraíso. Multidão que só não chegou às nuvens porque entretanto bateu com a cabeça no teto. Que maravilha é levar de vencida a força da gravidade. Finalmente lá consegui descer à terra, a tempo de assistir ao aguardado concerto de Patricia Kaas, que acaba de ver editado em França o seu segundo álbum, “Scénes de Vie”.
Os franceses prestam atualmente culto à senhora Kaas. Mal subiu ao palco, disposto em forma de “parthénon” e sabiamente iluminado, o pavilhão explodiu numa monstruosa salva de aplausos, gritos e pontapés nas bancadas. Forma especial dos gauleses mostrarem que estão satisfeitos. Estes franceses são loucos. Patricia Kaas, de mini-saia negra, viajou entre a típica “chanson française” atualizada e ambientes mais carregados, devedores do “cabaret-blues” etilizado, de Tom Waits. Numa das canções chegou mesmo a mascarar-se de bêbeda, cambaleando de garrafa na mão, acentuando o óbvio numa desnecessária palhaçada. Seja como for, Patricia está no bom caminho para o estrelato, rubricando um espetáculo competente e poderoso, girando em volta de uma excelente presença e da sua voz grave, ansiando por mais altos voos.

Indústrias pesadas

Na sala Glues Sandier, noite industrial com os franceses Norma Loy e Dazibao. Os Norma celebraram em palco uma imitação grotesca de missa negra, produzindo um ruído infernal, projetando slides de atrocidades e de símbolos mágicos suspeitos e recorrendo a duas bailarinas (?), praticamente nuas, que se contorciam em poses denotando grande sofrimento. O ruído também pode ser música. Infelizmente, no caso dos Norma Loy, o ruído é apenas ruído.
Os Dazibao não são tão pretenciosos mas são igualmente maus. Rock dito exótico, ficou-se afinal pelo anedótico. Saí da sala com os tímpanos a protestarem e fui espreitar ao Germinal, onde uma assistência de olhos em bico, sentada em mesas de café, se deliciava com a música insinuante e a dança do ventre da egípcia Ghandoura, a atirar para o roliço, mas movimentando-se de modo a suprir o ligeiro excesso de carnes. Contrastando com as pesadonas dos Norma Loy, até uma corista do Parque Meyer se parece com Margot Fonteyn.

Vários – “Festival de Bourges – Os Irlandeses Quase Deitavam A Casa Abaixo” (festivais)

PÚBLICO SEGUNDA-FEIRA, 16 ABRIL 1990 >> Cultura

Festival de Bourges

Os irlandeses quase deitavam a casa abaixo


A agitação prossegue em Bourges, que vive cada vez mais intensamente o “seu” Festival. Os heróis de sábado foram Dada, os surrealistas e o pacote final, apoteótico, “Da Cooking Vinyl”



Na zona circundante da catedral, os Délice Dada propõem aos incrédulos e surpreendidos visitantes três percursos turísticos alternativos pelas redondezas, através das informações absurdas de guias gentilmente sabotadores. Visitas guiadas ao “nonsense” e ao riso inesperado. Junto ao templo, um Dada vestido de marinheiro fornece informações preciosas sobre objetos como uma bicicleta submarina, utilizada na I Grande Guerra pela divisão de Cavalaria Subaquática francesa, ou um conjunto de bóias utilizadas por Luís XVI, único depositário atual contendo ar original do século XVII.
Ontem, a troupe Malabar, parente dos catalães La Fura Dels Baus, aterrorizou os transeuntes, com guerreiros de máscara, pintados de vermelho, lançando bombas e acendendo fogueiras ao som de música alucinante, ao mesmo tempo que gigantones longilíneos, de garras incendiadas, contribuíam para aumentar ainda mais o ambiente de caos e hecatombe entretanto gerado.
Mais calma, uma banda abandonava a catedral, tocando marchas do compositor americano Charles Ives, preparando-se para, mais tarde, na Halle du Blé, se juntar a mais 250 músicos, numa grandiosa e original homenagem e recriação da obra daquele músico.
Todas estas atividades, denominadas “Hors Jeu” (Fora de Jogo), são apoiadas pelos comerciantes desta zona da cidade. Quem diria? Parece cá…

Senhores, “rastas” e Lanois

No Grand Théâtre, o trio francês Ces Messieurs revelou-se exímio praticante do jazz de fusão, destacando-se as proezas virtuosísticas dos seus membros, nomeadamente do baterista, num espantoso solo de quase 10 minutos, e do teclista, desvairado e sempre inovador, às voltas com computadores, samplers e sintetizadores de toda a espécie. O saxofonista brilhou na interpretação de um tema de Ornette Coleman.
Um pouco mais tarde, no Palácio dos Congressos, a Reggae Philharmonic Orchestra apresentou um “soul-reggae” sofisticado, servido por uma secção de cordas e por “rastas” de colete e lacinho, empenhados em provar que a música da Jamaica também pode ser erudita e escutada enquanto se bebe uma chávena de chá.
Os Kashtin são índios dissidentes do Quebeque, armados de guitarras e preocupados em divulgarem a música das montanhas. Da maneira como o fizeram, as pessoas são capazes de ficar com uma ideia errada sobre as reais capacidades das gentes da região – os Kashtin foram uma desilusão.
Do Canadá veio também Daniel Lanois, nas bocas do mundo desde que produziu o álbum dos Neville Brothers. Mais barulhento que no álbum “Acadie”, tocou e cantou o que poderíamos designar de “Country Cajun Metálico”, em francês e acompanhando-se (mal) à guitarra. Trouxe consigo outros músicos mas daí não adveio grande benefício. O Canadá em dia não.

O fantasma de Hortênsia

Encantatória e comovente são os adjetivos que melhor se ajustam à “performance” de Joseph Racaille e Daniel Laloux, no teatro Jacques Couer. Racaille – voz, piano, ukelele –, e Laloux – voz e tambores militares, por vezes tocados com arco – criaram sobre o palco uma ópera de “music-hall” surrealista, difícil de descrever por palavras. Leo Ferré e Erik Satie, de mãos dadas, procurando nos confins do mundo o fantasma da omnipresente “Hortense”, desde sórdidas águas-furtadas até a ilhas do Pacífico ou ao deserto de Gobi. Dissertações sobre sapatos e revoluções cósmicas. Diálogos mirabolantes, cintilações de piano e pulsações amorosas nos tambores. “A existência, querida Hortênsia, apenas requer um pouco de paciência”. Joseph Racaille e Daniel Laloux transportaram-nos, sem que déssemos conta, para um universo irreal em que o humor se cruza com a paixão, e o ridículo com o sublime.

Baile da meia-noite

Meia-noite, sala Gille Sandier, foram a hora e o local escolhidos para a apresentação do trio de artistas da editora Cooking Vinyl. Os Colorblind James Experience foram os primeiros, arrancando em grande velocidade com um “cool bluegrass-a-billy” a meio caminho de Memphis, Tennessee. Um vocalista/vibrafonista com pinta de Dino Meira contando histórias da América, numa veia semelhante à de Stan Rigdway, impulsionado por uma turbina rítmica alimentada por metais (sax e trombone) delirantes e eufóricos de swing.
O irlandês Rory McLeod atuou de seguida, sozinho, para uma sessão de “folk blues”, canções de viagem e ritmos sul-americanos, em tom intervencionista. Solou num par de colheres e num órgão de boca tailandês. A voz, guitarra, harmónica, sinceridade e boas canções fizeram o resto.
A noite acabou com mais folclore, novamente vindo da Irlanda, trazido pelos Oyster Band, versão dura e a 78 rotações dos Fairport Convention. Deitaram a política para trás das costas, mas sempre foram dizendo detestarem gordos ricos. Como não havia gordos ricos na sala, não houve problema. A partir daí, com um ritmo e um violinista endiabrados, não deram hipóteses a ninguém. Nos dois “encores” finais, Rory McLeod juntou-se à festa, acabando toda a gente, incluindo os músicos, a dançar e a cantar. Como se diria em bom francês, os irlandeses “wente daonne a storrme”, ou seja, iam deitando a casa abaixo. Um comentário final intelectual: IUPII!!!

Vários – “Festival de Bourges – Até O Canário Canta A ‘Marselhesa'” (festivais)

PÚBLICO DOMINGO, 15 ABRIL 1990 >> Cultura


Festival de Bourges

Até o canário canta a “Marselhesa”


ÁFRICA ELÉTRICA, ciganos jugoslavos, trompas de caça, percussionistas embuçados, rock texano, espanhol e português, formaram um conjunto de concorrentes pouco habitual neste tipo de concursos. Sexta-feira Santa, dia 13, Ray Lema, Dadadang e os Brave Combo foram os três primeiros no pódio de Printemps.
A chuva chegou a Bourges, mas a cidade aquece de entusiasmo. A música instalou-se definitivamente no seu quotidiano. Nas discotecas (poucas) praticamente só se vendem discos dos artistas do festival. Não há loja que não ostente na montra qualquer referência ao acontecimento. É tal a loucura pela música que até no “bistrot” onde almocei havia um pássaro que cantava a “Marselhesa”.

Lema de sucesso

Da programação de sexta-feira constava uma espécie de mini-gala de músicas do mundo. Ray Lema, chamado à última hora para substituir Kid Creole and the Coconuts, fez questão de presentear o numeroso público presente com um super concerto. Sete músicos e duas bailarinas funcionaram sobre o palco com a precisão e intensidade de uma máquina perfeitamente afinada, fazendo uma demonstração exemplar de como as sonoridades africanas se podem casar harmonicamente com as técnicas ocidentais. Foi uma hora de emoção e virtuosismo suportados por um espetacular jogo de luzes. O baterista e o percussionista ofereceram um bónus suplementar, alinhando uma sequência de solos de cortar a respiração.
Ainda as luzes não se tinham acendido e já a assistência era surpreendida pela orquestra cigana jugoslava “Besir”, liderada por Jova Stojiljkovic, tocando e desfilando por vários pontos da sala até se ficar finalmente no meio da plateia. Um tambor, três trompetes e cinco trompas embrenharam-se por sons algures entre a Arábia e a típica música eslava cigana.

Trompas e batuque

Depois dos Besir, trompas de caça soaram do alto de um andaime junto ao teto, sopradas por dez músicos trajados a preceito. Frank Na dirigia as operações ao mesmo tempo que também soprava.
E de repente, o espanto com a entrada triunfal na sala das percussões apocalípticas dos italianos Dadadang. Vestidos de branco, envergando máscaras antinucleares, encheram o Palácio dos Congressos com um rufar dos tambores assustador. Os Dadadang são o equivalente dos Urban Sax, com percussões em vez de saxofones. Os quinze músicos que integram o coletivo evoluíram igualmente ao longo de vários pontos do recinto, marchando em passo maquinal para um público completamente fascinado. O batuque urbano dos Dadadang ora ameaçava fazer desabar as estruturas do edifício, ora se desdobrava em subtis polirritmias. Inesquecível e emocionante a presença destas personagens, a um tempo hiper-reais e fantasmáticas, tocaram uma peça banhados por luz negra, empunhando baquetas fluorescentes e movimentando-se ao ritmo das perturbadoras coreografias.
Depois de terem, na véspera, inquietado os pacatos habitantes da cidade, estes humanoides da era nuclear bateram, desta feita ainda com mais força, na cabeça do pessoal festivaleiro.

Salada de gringos

Depois dos tambores, uma curta intervenção a solo de Pierre Bastien. De novo a trompa, agora acompanhada de percussões sintéticas pré-gravadas, num registo entre John Surman e Jon Hassell, fazendo a passagem para os texanos Brave Combo.
Os americanos entraram a matar para mais um excecional concerto. O conceito de Tex-Mex com que se auto-definem é insuficiente para abarcar a diversidade de estilos de que se valem. Os Brave Combo tocam um rock híbrido, onde cabem sem esforço música árabe, polcas, tangos, o “Danúbio Azul”, Jim Morrison, Frank Sinatra, Mike Oldfield ou o genérico musical da “Missão Impossível”.
Utilizando uma instrumentação variada com saxofone, clarinete, flauta, teclas, acordeão e tuba, para além das guitarras e bateria, este gringos bem-humorados deram uma lição na arte de ser eclético sem perder a identidade própria. Bravo para os Brave Combo.

Lança em França

Na sala do pavilhão, uns metros mais acima, estava tudo preparado para uma noite de rock latino. Abriram os espanhóis La Busqueda. Rock com pouco “salero” e um trompetista procurando abrilhantar canções apenas competentes. Além disso, por melhor que seja a música, mal aparece uma voz a cantar em espanhol, fica logo o caldo entornado. Será preconceito? Talvez seja, mas após mais de cinco horas consecutivas de música, há a natural tendência para se ficar um tudo nada mais suscetível.
A banda seguinte chamava-se Xutos e Pontapés e, segundo o programa, era portuguesa. Arrancaram cheios de garra, levando até ao fim um rock duríssimo, altíssimo e, por vezes, à beira do “feed-back”. O grupo apostou, mais do que nunca, na linha dura. A aposta, pelo menos aqui em Bourges, foi ganha. O público saltou e vibrou com os Xutos e, no final, pediu mais. Os franceses “Noir Désir” cumpriram o seu papel fechando o espetáculo com um rock vulgar.
Os Xutos e Pontapés deram, de tarde, no Palácio dos Congressos, uma conferência de imprensa, em conjunto com os espanhóis “La Busqueda” e os franceses “Noir Désir”. O porta-voz foi Tim, respondendo às perguntas e ao interesse pela banda manifestado pelos jornalistas presentes, na maioria espanhóis e franceses.
Entretanto, a Polygram Internacional parece empenhada em promover os Xutos no estrangeiro, começando pela França onde foi já editado na segunda-feira passada, com o selo Phonogram, o álbum “88”, reintitulado “90” para o efeito.
Depois do Printemps de Bourges, a banda regressa a Portugal para apresentar, a 5 de maio, em Barcelos, o novo álbum “Gritos Mudos”. A 9 do mesmo mês está confirmada uma atuação na 1ª Bienal Europeia de Rock, que terá lugar na cidade de Toulouse. Na revista “Actuel” deste mês já saiu a notícia. A França é, decididamente, a segunda pátria dos Xutos e Pontapés.
A partir da meia noite começou a segunda jornada, dedicada ao cinema publicitário, prevendo-se a exibição de cerca de 500 filmes, numa maratona que durou até de manhã, com pequeno-almoço incluído.