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Vários – “Festival de Bourges – Até O Canário Canta A ‘Marselhesa'” (festivais)

PÚBLICO DOMINGO, 15 ABRIL 1990 >> Cultura


Festival de Bourges

Até o canário canta a “Marselhesa”


ÁFRICA ELÉTRICA, ciganos jugoslavos, trompas de caça, percussionistas embuçados, rock texano, espanhol e português, formaram um conjunto de concorrentes pouco habitual neste tipo de concursos. Sexta-feira Santa, dia 13, Ray Lema, Dadadang e os Brave Combo foram os três primeiros no pódio de Printemps.
A chuva chegou a Bourges, mas a cidade aquece de entusiasmo. A música instalou-se definitivamente no seu quotidiano. Nas discotecas (poucas) praticamente só se vendem discos dos artistas do festival. Não há loja que não ostente na montra qualquer referência ao acontecimento. É tal a loucura pela música que até no “bistrot” onde almocei havia um pássaro que cantava a “Marselhesa”.

Lema de sucesso

Da programação de sexta-feira constava uma espécie de mini-gala de músicas do mundo. Ray Lema, chamado à última hora para substituir Kid Creole and the Coconuts, fez questão de presentear o numeroso público presente com um super concerto. Sete músicos e duas bailarinas funcionaram sobre o palco com a precisão e intensidade de uma máquina perfeitamente afinada, fazendo uma demonstração exemplar de como as sonoridades africanas se podem casar harmonicamente com as técnicas ocidentais. Foi uma hora de emoção e virtuosismo suportados por um espetacular jogo de luzes. O baterista e o percussionista ofereceram um bónus suplementar, alinhando uma sequência de solos de cortar a respiração.
Ainda as luzes não se tinham acendido e já a assistência era surpreendida pela orquestra cigana jugoslava “Besir”, liderada por Jova Stojiljkovic, tocando e desfilando por vários pontos da sala até se ficar finalmente no meio da plateia. Um tambor, três trompetes e cinco trompas embrenharam-se por sons algures entre a Arábia e a típica música eslava cigana.

Trompas e batuque

Depois dos Besir, trompas de caça soaram do alto de um andaime junto ao teto, sopradas por dez músicos trajados a preceito. Frank Na dirigia as operações ao mesmo tempo que também soprava.
E de repente, o espanto com a entrada triunfal na sala das percussões apocalípticas dos italianos Dadadang. Vestidos de branco, envergando máscaras antinucleares, encheram o Palácio dos Congressos com um rufar dos tambores assustador. Os Dadadang são o equivalente dos Urban Sax, com percussões em vez de saxofones. Os quinze músicos que integram o coletivo evoluíram igualmente ao longo de vários pontos do recinto, marchando em passo maquinal para um público completamente fascinado. O batuque urbano dos Dadadang ora ameaçava fazer desabar as estruturas do edifício, ora se desdobrava em subtis polirritmias. Inesquecível e emocionante a presença destas personagens, a um tempo hiper-reais e fantasmáticas, tocaram uma peça banhados por luz negra, empunhando baquetas fluorescentes e movimentando-se ao ritmo das perturbadoras coreografias.
Depois de terem, na véspera, inquietado os pacatos habitantes da cidade, estes humanoides da era nuclear bateram, desta feita ainda com mais força, na cabeça do pessoal festivaleiro.

Salada de gringos

Depois dos tambores, uma curta intervenção a solo de Pierre Bastien. De novo a trompa, agora acompanhada de percussões sintéticas pré-gravadas, num registo entre John Surman e Jon Hassell, fazendo a passagem para os texanos Brave Combo.
Os americanos entraram a matar para mais um excecional concerto. O conceito de Tex-Mex com que se auto-definem é insuficiente para abarcar a diversidade de estilos de que se valem. Os Brave Combo tocam um rock híbrido, onde cabem sem esforço música árabe, polcas, tangos, o “Danúbio Azul”, Jim Morrison, Frank Sinatra, Mike Oldfield ou o genérico musical da “Missão Impossível”.
Utilizando uma instrumentação variada com saxofone, clarinete, flauta, teclas, acordeão e tuba, para além das guitarras e bateria, este gringos bem-humorados deram uma lição na arte de ser eclético sem perder a identidade própria. Bravo para os Brave Combo.

Lança em França

Na sala do pavilhão, uns metros mais acima, estava tudo preparado para uma noite de rock latino. Abriram os espanhóis La Busqueda. Rock com pouco “salero” e um trompetista procurando abrilhantar canções apenas competentes. Além disso, por melhor que seja a música, mal aparece uma voz a cantar em espanhol, fica logo o caldo entornado. Será preconceito? Talvez seja, mas após mais de cinco horas consecutivas de música, há a natural tendência para se ficar um tudo nada mais suscetível.
A banda seguinte chamava-se Xutos e Pontapés e, segundo o programa, era portuguesa. Arrancaram cheios de garra, levando até ao fim um rock duríssimo, altíssimo e, por vezes, à beira do “feed-back”. O grupo apostou, mais do que nunca, na linha dura. A aposta, pelo menos aqui em Bourges, foi ganha. O público saltou e vibrou com os Xutos e, no final, pediu mais. Os franceses “Noir Désir” cumpriram o seu papel fechando o espetáculo com um rock vulgar.
Os Xutos e Pontapés deram, de tarde, no Palácio dos Congressos, uma conferência de imprensa, em conjunto com os espanhóis “La Busqueda” e os franceses “Noir Désir”. O porta-voz foi Tim, respondendo às perguntas e ao interesse pela banda manifestado pelos jornalistas presentes, na maioria espanhóis e franceses.
Entretanto, a Polygram Internacional parece empenhada em promover os Xutos no estrangeiro, começando pela França onde foi já editado na segunda-feira passada, com o selo Phonogram, o álbum “88”, reintitulado “90” para o efeito.
Depois do Printemps de Bourges, a banda regressa a Portugal para apresentar, a 5 de maio, em Barcelos, o novo álbum “Gritos Mudos”. A 9 do mesmo mês está confirmada uma atuação na 1ª Bienal Europeia de Rock, que terá lugar na cidade de Toulouse. Na revista “Actuel” deste mês já saiu a notícia. A França é, decididamente, a segunda pátria dos Xutos e Pontapés.
A partir da meia noite começou a segunda jornada, dedicada ao cinema publicitário, prevendo-se a exibição de cerca de 500 filmes, numa maratona que durou até de manhã, com pequeno-almoço incluído.

Ray Lema – “Green Light”

Pop Rock

29 de Maio de 1996
world

Ray Lema
Green Light
BUDA, DISTRI. DARGIL


Ray Lema – “Green Light”

Há um certo preconceito que pretende que toda a música composta por africanos deve soar “africana”, isto é, obedecer a esquemas imediatamente identificáveis como africanos e com produções que, embora condescendendo na sofisticação do estúdio, devem mergulhar fundo na tradição, leia-se, folclore, africano. É a mesma lógica que obriga a que um músico nascido no Minho esteja condenado a compor chulas ou que um parisiense tenha de usar boina e bigode e tocar uma valsa “musette” junto às margens do Sena. Precisamente, o cantor zairense está-se nas tintas para se a sua música é africana ou não. “Green Light” é “apenas” um lote de boas canções, interpretadas nos dialectos “douala”, “kikongo”, “swahili”, “mango” e “lingala” (sim, claro, mas nada impede um cantor venezuelano de cantar em “kikongo”…), com acompanhamento de piano e retocadas por percussões discretas, apoios vocais femininos em aguarela e um didjeridu. O segundo tema, “Soma loba”, por exemplo, é introduzido pelas notas de “Bonny & Clyde”, o qual, muito sinceramente, se duvida que seja um tradicional do continente negro. Esqueça-se então a proveniência geográfica da pessoa para nos concentrarmos na doçura da voz e na subtileza da composição. Não é um álbum de antologia, mas não é todos os dias que se faz História. Luz verde para Ray Lema, de quem se fica à espera de um próximo álbum de música irlandesa. (7)