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Vários – “Festival de Bourges – Os Irlandeses Quase Deitavam A Casa Abaixo” (festivais)

PÚBLICO SEGUNDA-FEIRA, 16 ABRIL 1990 >> Cultura

Festival de Bourges

Os irlandeses quase deitavam a casa abaixo


A agitação prossegue em Bourges, que vive cada vez mais intensamente o “seu” Festival. Os heróis de sábado foram Dada, os surrealistas e o pacote final, apoteótico, “Da Cooking Vinyl”



Na zona circundante da catedral, os Délice Dada propõem aos incrédulos e surpreendidos visitantes três percursos turísticos alternativos pelas redondezas, através das informações absurdas de guias gentilmente sabotadores. Visitas guiadas ao “nonsense” e ao riso inesperado. Junto ao templo, um Dada vestido de marinheiro fornece informações preciosas sobre objetos como uma bicicleta submarina, utilizada na I Grande Guerra pela divisão de Cavalaria Subaquática francesa, ou um conjunto de bóias utilizadas por Luís XVI, único depositário atual contendo ar original do século XVII.
Ontem, a troupe Malabar, parente dos catalães La Fura Dels Baus, aterrorizou os transeuntes, com guerreiros de máscara, pintados de vermelho, lançando bombas e acendendo fogueiras ao som de música alucinante, ao mesmo tempo que gigantones longilíneos, de garras incendiadas, contribuíam para aumentar ainda mais o ambiente de caos e hecatombe entretanto gerado.
Mais calma, uma banda abandonava a catedral, tocando marchas do compositor americano Charles Ives, preparando-se para, mais tarde, na Halle du Blé, se juntar a mais 250 músicos, numa grandiosa e original homenagem e recriação da obra daquele músico.
Todas estas atividades, denominadas “Hors Jeu” (Fora de Jogo), são apoiadas pelos comerciantes desta zona da cidade. Quem diria? Parece cá…

Senhores, “rastas” e Lanois

No Grand Théâtre, o trio francês Ces Messieurs revelou-se exímio praticante do jazz de fusão, destacando-se as proezas virtuosísticas dos seus membros, nomeadamente do baterista, num espantoso solo de quase 10 minutos, e do teclista, desvairado e sempre inovador, às voltas com computadores, samplers e sintetizadores de toda a espécie. O saxofonista brilhou na interpretação de um tema de Ornette Coleman.
Um pouco mais tarde, no Palácio dos Congressos, a Reggae Philharmonic Orchestra apresentou um “soul-reggae” sofisticado, servido por uma secção de cordas e por “rastas” de colete e lacinho, empenhados em provar que a música da Jamaica também pode ser erudita e escutada enquanto se bebe uma chávena de chá.
Os Kashtin são índios dissidentes do Quebeque, armados de guitarras e preocupados em divulgarem a música das montanhas. Da maneira como o fizeram, as pessoas são capazes de ficar com uma ideia errada sobre as reais capacidades das gentes da região – os Kashtin foram uma desilusão.
Do Canadá veio também Daniel Lanois, nas bocas do mundo desde que produziu o álbum dos Neville Brothers. Mais barulhento que no álbum “Acadie”, tocou e cantou o que poderíamos designar de “Country Cajun Metálico”, em francês e acompanhando-se (mal) à guitarra. Trouxe consigo outros músicos mas daí não adveio grande benefício. O Canadá em dia não.

O fantasma de Hortênsia

Encantatória e comovente são os adjetivos que melhor se ajustam à “performance” de Joseph Racaille e Daniel Laloux, no teatro Jacques Couer. Racaille – voz, piano, ukelele –, e Laloux – voz e tambores militares, por vezes tocados com arco – criaram sobre o palco uma ópera de “music-hall” surrealista, difícil de descrever por palavras. Leo Ferré e Erik Satie, de mãos dadas, procurando nos confins do mundo o fantasma da omnipresente “Hortense”, desde sórdidas águas-furtadas até a ilhas do Pacífico ou ao deserto de Gobi. Dissertações sobre sapatos e revoluções cósmicas. Diálogos mirabolantes, cintilações de piano e pulsações amorosas nos tambores. “A existência, querida Hortênsia, apenas requer um pouco de paciência”. Joseph Racaille e Daniel Laloux transportaram-nos, sem que déssemos conta, para um universo irreal em que o humor se cruza com a paixão, e o ridículo com o sublime.

Baile da meia-noite

Meia-noite, sala Gille Sandier, foram a hora e o local escolhidos para a apresentação do trio de artistas da editora Cooking Vinyl. Os Colorblind James Experience foram os primeiros, arrancando em grande velocidade com um “cool bluegrass-a-billy” a meio caminho de Memphis, Tennessee. Um vocalista/vibrafonista com pinta de Dino Meira contando histórias da América, numa veia semelhante à de Stan Rigdway, impulsionado por uma turbina rítmica alimentada por metais (sax e trombone) delirantes e eufóricos de swing.
O irlandês Rory McLeod atuou de seguida, sozinho, para uma sessão de “folk blues”, canções de viagem e ritmos sul-americanos, em tom intervencionista. Solou num par de colheres e num órgão de boca tailandês. A voz, guitarra, harmónica, sinceridade e boas canções fizeram o resto.
A noite acabou com mais folclore, novamente vindo da Irlanda, trazido pelos Oyster Band, versão dura e a 78 rotações dos Fairport Convention. Deitaram a política para trás das costas, mas sempre foram dizendo detestarem gordos ricos. Como não havia gordos ricos na sala, não houve problema. A partir daí, com um ritmo e um violinista endiabrados, não deram hipóteses a ninguém. Nos dois “encores” finais, Rory McLeod juntou-se à festa, acabando toda a gente, incluindo os músicos, a dançar e a cantar. Como se diria em bom francês, os irlandeses “wente daonne a storrme”, ou seja, iam deitando a casa abaixo. Um comentário final intelectual: IUPII!!!