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Vários – “Poucos Mas Bons” (notícia | artigo de opinião)

PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 27 JUNHO 1990 >> Videodiscos >> Notícias


POUCOS MAS BONS

Os melhores discos quase ninguém os conhece. Como assim? Vamos explicar. Um exemplo: os “O Yuki Conjugate” são uma obscura e excelente banda, praticante de uma música misteriosa e fascinante, não facilmente catalogável. Devia ser conhecida no planeta inteiro, mas de facto apenas 268 dos seus habitantes ouviram falar dela, entre os quais cinco são portugueses. Uma ou outra discoteca nacional, daquelas que arriscam e importam, manda vir cinco exemplares. Quatro desses portugueses adquirem o disco, dez segundos após este ter sido colocado no expositor da loja ou mesmo antes. O disco restante é levado por engano por alguém que pensava tratar-se de Yoko Ono. O quinto português conhecedor fica a chuchar no dedo porque vive em Viseu, não soube que o disco estava disponível, ou não foi suficientemente rápido. De entre os contemplados, um escreve para algum lado e faz uma crítica elogiosa. Trinta pessoas leem o artigo e pretendem adquirir o disco. A discoteca em questão vai importando quantidades progressivamente maiores de exemplares à medida que a procura aumenta. Satisfeitos todos os pedidos, passa-se à aposta seguinte. Seis meses depois, uma editora ligada a uma multinacional ouviu dizer que o disco era um sucesso de vendas no mercado independente e resolve importar 10.000 exemplares do dito. Não se vende nenhum. A editora, a braços com um produto que desconhece e que não sabe como promover, diz que o disco é mau e não vende. Segue-se o habitual estendal de lamentações de mais uma história triste do nosso pobre panorama editorial.
Vamos lá ver se conseguimos alterar o estado de coisas. Para já, escrevendo e informando regularmente, neste canto aconchegado, sobre bons e desconhecidos nomes e discos que regularmente por cá aterram, nas tais discotecas especializadas.
Por exemplo, “Title In Limbo” – um estranho objeto vinílico gravado a meias pelos anónimos e bizarros Residents e os Renaldo And The Loaf, ainda mais bizarros e divertidos. “Title” é uma ópera épico-cómica eletrónica em que o cantor principal é Bugs Bunny. Foetus, depois do duplo “Sink”, tem já um novo maxi com três temas: “Butterfly Potion” é o principal. “Smiles, Vibration & Harmony” é uma homenagem de variadas bandas (entre as quais os Sonic Youth) ao ex-Beach Boy Brian Wilson, 30 anos depois, de novo na berra. Finalmente, para os fanáticos do folk, o álbum estreia dos Ad Vielle Que Pourra, dois canadianos, dois belgas e um bretão apostados em tornar a música tradicional de expressão francesa num formidável espetáculo de virtuosismo e inspiração. As discotecas Contraverso e VGM fazem as despesas.

Vários – “Festival de Bourges – Até O Canário Canta A ‘Marselhesa'” (festivais)

PÚBLICO DOMINGO, 15 ABRIL 1990 >> Cultura


Festival de Bourges

Até o canário canta a “Marselhesa”


ÁFRICA ELÉTRICA, ciganos jugoslavos, trompas de caça, percussionistas embuçados, rock texano, espanhol e português, formaram um conjunto de concorrentes pouco habitual neste tipo de concursos. Sexta-feira Santa, dia 13, Ray Lema, Dadadang e os Brave Combo foram os três primeiros no pódio de Printemps.
A chuva chegou a Bourges, mas a cidade aquece de entusiasmo. A música instalou-se definitivamente no seu quotidiano. Nas discotecas (poucas) praticamente só se vendem discos dos artistas do festival. Não há loja que não ostente na montra qualquer referência ao acontecimento. É tal a loucura pela música que até no “bistrot” onde almocei havia um pássaro que cantava a “Marselhesa”.

Lema de sucesso

Da programação de sexta-feira constava uma espécie de mini-gala de músicas do mundo. Ray Lema, chamado à última hora para substituir Kid Creole and the Coconuts, fez questão de presentear o numeroso público presente com um super concerto. Sete músicos e duas bailarinas funcionaram sobre o palco com a precisão e intensidade de uma máquina perfeitamente afinada, fazendo uma demonstração exemplar de como as sonoridades africanas se podem casar harmonicamente com as técnicas ocidentais. Foi uma hora de emoção e virtuosismo suportados por um espetacular jogo de luzes. O baterista e o percussionista ofereceram um bónus suplementar, alinhando uma sequência de solos de cortar a respiração.
Ainda as luzes não se tinham acendido e já a assistência era surpreendida pela orquestra cigana jugoslava “Besir”, liderada por Jova Stojiljkovic, tocando e desfilando por vários pontos da sala até se ficar finalmente no meio da plateia. Um tambor, três trompetes e cinco trompas embrenharam-se por sons algures entre a Arábia e a típica música eslava cigana.

Trompas e batuque

Depois dos Besir, trompas de caça soaram do alto de um andaime junto ao teto, sopradas por dez músicos trajados a preceito. Frank Na dirigia as operações ao mesmo tempo que também soprava.
E de repente, o espanto com a entrada triunfal na sala das percussões apocalípticas dos italianos Dadadang. Vestidos de branco, envergando máscaras antinucleares, encheram o Palácio dos Congressos com um rufar dos tambores assustador. Os Dadadang são o equivalente dos Urban Sax, com percussões em vez de saxofones. Os quinze músicos que integram o coletivo evoluíram igualmente ao longo de vários pontos do recinto, marchando em passo maquinal para um público completamente fascinado. O batuque urbano dos Dadadang ora ameaçava fazer desabar as estruturas do edifício, ora se desdobrava em subtis polirritmias. Inesquecível e emocionante a presença destas personagens, a um tempo hiper-reais e fantasmáticas, tocaram uma peça banhados por luz negra, empunhando baquetas fluorescentes e movimentando-se ao ritmo das perturbadoras coreografias.
Depois de terem, na véspera, inquietado os pacatos habitantes da cidade, estes humanoides da era nuclear bateram, desta feita ainda com mais força, na cabeça do pessoal festivaleiro.

Salada de gringos

Depois dos tambores, uma curta intervenção a solo de Pierre Bastien. De novo a trompa, agora acompanhada de percussões sintéticas pré-gravadas, num registo entre John Surman e Jon Hassell, fazendo a passagem para os texanos Brave Combo.
Os americanos entraram a matar para mais um excecional concerto. O conceito de Tex-Mex com que se auto-definem é insuficiente para abarcar a diversidade de estilos de que se valem. Os Brave Combo tocam um rock híbrido, onde cabem sem esforço música árabe, polcas, tangos, o “Danúbio Azul”, Jim Morrison, Frank Sinatra, Mike Oldfield ou o genérico musical da “Missão Impossível”.
Utilizando uma instrumentação variada com saxofone, clarinete, flauta, teclas, acordeão e tuba, para além das guitarras e bateria, este gringos bem-humorados deram uma lição na arte de ser eclético sem perder a identidade própria. Bravo para os Brave Combo.

Lança em França

Na sala do pavilhão, uns metros mais acima, estava tudo preparado para uma noite de rock latino. Abriram os espanhóis La Busqueda. Rock com pouco “salero” e um trompetista procurando abrilhantar canções apenas competentes. Além disso, por melhor que seja a música, mal aparece uma voz a cantar em espanhol, fica logo o caldo entornado. Será preconceito? Talvez seja, mas após mais de cinco horas consecutivas de música, há a natural tendência para se ficar um tudo nada mais suscetível.
A banda seguinte chamava-se Xutos e Pontapés e, segundo o programa, era portuguesa. Arrancaram cheios de garra, levando até ao fim um rock duríssimo, altíssimo e, por vezes, à beira do “feed-back”. O grupo apostou, mais do que nunca, na linha dura. A aposta, pelo menos aqui em Bourges, foi ganha. O público saltou e vibrou com os Xutos e, no final, pediu mais. Os franceses “Noir Désir” cumpriram o seu papel fechando o espetáculo com um rock vulgar.
Os Xutos e Pontapés deram, de tarde, no Palácio dos Congressos, uma conferência de imprensa, em conjunto com os espanhóis “La Busqueda” e os franceses “Noir Désir”. O porta-voz foi Tim, respondendo às perguntas e ao interesse pela banda manifestado pelos jornalistas presentes, na maioria espanhóis e franceses.
Entretanto, a Polygram Internacional parece empenhada em promover os Xutos no estrangeiro, começando pela França onde foi já editado na segunda-feira passada, com o selo Phonogram, o álbum “88”, reintitulado “90” para o efeito.
Depois do Printemps de Bourges, a banda regressa a Portugal para apresentar, a 5 de maio, em Barcelos, o novo álbum “Gritos Mudos”. A 9 do mesmo mês está confirmada uma atuação na 1ª Bienal Europeia de Rock, que terá lugar na cidade de Toulouse. Na revista “Actuel” deste mês já saiu a notícia. A França é, decididamente, a segunda pátria dos Xutos e Pontapés.
A partir da meia noite começou a segunda jornada, dedicada ao cinema publicitário, prevendo-se a exibição de cerca de 500 filmes, numa maratona que durou até de manhã, com pequeno-almoço incluído.

Vários – “De 11 A 16, Bourges É A Capital Francesa Do Espetáculo – Riso, Ritmo E Ecletismo” (festivais)

PÚBLICO SÁBADO, 14 ABRIL 1990 >> Cultura


De 11 a 16, Bourges é a capital francesa do espetáculo

Riso, ritmo e ecletismo


Bourges está uma confusão. Desde quarta-feira que as ruas da cidade foram invadidas pela fauna típica destas ocasiões. “Punks”, “hippies” e exemplares menos catalogáveis enchem tudo o que é sítio de cor, barulho e sabe-se lá que mais. Se não fosse assim não era festival.



Na edição deste ano do “Printemps de Bourges” – a decorrer do dia 11 até dia 16 –, os palcos foram estrategicamente espalhados por vários pontos da zona antiga da cidade, desde monumentos como o “Castelo de Água” ou a própria catedral, até recintos de construção moderna como o novo Palácio dos Congressos. Existe ainda uma nova zona franca para o pessoal pé-descalço, estilo Feira da Ladra ou Praça de Espanha, cheia de tendinhas de comes e bebes e de famílias inteiras andrajosas, com guitarras e criancinhas aos montes espalhadas pelo chão, como se Woodstock não tivesse acontecido já há mais de vinte anos. Numa tenda maior, como as de circo, fica a chamada “zona aberta”, onde pode tocar quem quiser.

Música a pique

Das atividades paralelas à programação normal, constava uma proposta inusitada, no “Castelo de Água”, a meio da tarde. Na ocasião, o velho edifício foi utilizado para um espetáculo em princípio multimédia, mas que afinal se ficou com unimédia, girando à volta do afundamento do Titanic. As velhas paredes de tijolo, forradas com fotografias “postal ilustrado” de objetos recuperados do fatídico naufrágio, mais uma estatueta e um sino de nevoeiro pertencentes ao próprio navio, eram os únicos adereços existentes para além da música. Esta, claro, foi composta por Gavin Bryars na obra “The Sinking of the Titanic” e, na ocasião, tocada pela “ensemble” de Bryars, nas caves do castelo.
O público vagueava lá em cima, às voltas, por entre as colunas e a humidade da construção circular, recebendo o som através de altifalantes. A ideia era, à partida, excelente, mas na prática não resultou. O som era mau, e para além do ambiente evocativo do lugar, nada mais havia para fazer senão olhar para a cara do vizinho. Ninguém protestou, pudera, a entrada era grátis.

“Rap”, tira, põe e deixa

A escolha seguinte era óbvia: “Tackhead” e “Public Enemy” no Palácio dos Congressos. Os primeiros celebraram durante cerca de vinte minutos, um ritual de ruído, um “rap” demoníaco feito de pilhagens sonoras e “samples” desenfreados e neuróticos, com o “Deejay” de serviço operando prodígios de “scratching” na mesa do gira-discos, e dois dançarinos espetaculares, acrobáticos e perfeitamente sincronizados.
No intervalo (que durou quase uma hora – ainda se queixam os portugueses) subiram ao palco, riram-se, mostraram-se, fotografaram a assistência e deram autógrafos. Os rapazes ainda são novos e vê-se que apreciam a fama. Sempre foram entretendo os presentes durante a espera.
Finalmente, os “Public Enemy” dignaram-se subir ao palco para mais uma dose de “Rap” bem aviada. O esquema era semelhante ao dos Tackhead: gira-discos, dois vocalistas e algumas figuras de cena. O público sabia ao que vinha e gostou.

Brincadeiras sérias

O grupo Sttellla é uma dupla indescritível. De um lado um indivíduo com cara de Wim Mertens, vestindo-se sucessivamente de leopardo, “marjorette” ou simplesmente em cuecas, tocava guitarra e sintetizador, contando piadas realmente cómicas e com apartes perfeitamente hilariantes.
Do outro, a sua “partenaire”, vestida como dona-de-casa, peruca aos caracóis com lacinho ao alto, malinha de mão e sacos de plástico, cantava e dançava como uma doméstica em dia de “Um, Dois, Três…”.
A música é um “cocktail” impensável onde se misturam, sem preocupações de decência ou coerência, os B-52’s, minimalismo Suicide, Gianni Morandi e Madalena Iglésias. Canções foleiras, tangos, experimentalismo a fingir e letras desopilantemente imbecis (“Attention Odile aux Crocodiles dans le Nile”) deliciaram a assistência e, melhor ainda, fizeram-na rir.
No Pavilhão, podia verificar-se até que ponto a música do pós-moderno Hector Zazou (autor de álbuns fabulosos como “Reivax au Bongo”, “Géographies e “Geologies”) resulta em palco. A nova banda de Zazou dá pelo nome de “Les Nouvelles Polyphonies Corses” e é constituída por quatro instrumentistas, entre os quais o próprio Hector e um quarteto vocal misto.
A combinação de eletrónica, sopros e percussões com as espantosas polifonias vocais, inspiradas no canto corso, criam uma atmosfera grandiosa, uma música inclassificável entre o romantismo, a tecnologia e a tradição. De referir que uma das vocalistas é Patrizia Poli, a tal rapariga com voz igual à de Anamar.
Quinta-feira confirmou, pois, o ecletismo e pluralidade de propostas desta edição de “Printemps”.