Arquivo da Categoria: Religiosa

Vários – “Coal Heart Forever”

Pop Rock >> Quarta-Feira, 10.06.1992


VÁRIOS
Coal Heart Forever
CD, Sub Rosa, distri. Contraverso



Uma das características interessantes do fenómeno musical neste final de milénio é a deslocação do próprio conceito de “música”. Sem ser preciso recuar até ao canto sacro da Idade Média e a uma função específica da música enquanto elo, enquanto “ser” e “via de acesso”, pode analisar-se, pelo menos, o progressivo esvaziamento da noção romântica de “obra”, como um todo musical orgânico produzido e autorizado por um indivíduo que, diferentemente da tradição medieval (e até certo ponto renascentista), em que o divino se sobrepunha ao humano e este se “limitava” a ser o veículo transmissor de forças que o transcendiam, se contrapunha e lutava contra quem se opusesse ao movimento centrípeto da sua paixão. A esta noção de “obra” veio sobrepor-se a de “matéria sonora” e, como consequência, também a alteração da “ordem” convencional. O som deixou de ser “composto”, segundo a acepção clássica do termo, para ser “recolhido” e “organizado”. As técnicas de “samplagem” contribuíram, por seu lado, para o esbatimento do estatuto de “autor”. Tudo passou a ser música, “material” susceptível de ser manipulado e transformado, o que acarretou outro dano maior, o da abolição da história, enquanto movimento no tempo. “Coal Heart Forever”, à semelhança de parte de um anterior projecto da mesma editora, da série Myths, é exemplar de tudo o que acima foi dito. Aqui não há autores mas apenas sons e “pilhagens” feitas a diferentes arquivos sonoros pertencentes a diferentes espaços geográficos e temporais, se é que estas palavras ainda fazem algum sentido: cerimónias religiosas recolhidas no Tibete (entre 1963 e 1972), Turquia (1973) e Bélgica (1989), num dos temas, fragmentos de diálogos de uma série de vídeos experimentais, noutro, e finalmente uma “aural subjective vision” de um ritual religiosos tibetano, à semelhança do primeiro tema, gravado “in loco” por John Scividya.
Neste caso, a “subjectividade” reside em que as gravações originais são praticamente inaudíveis, substituídas por um zumbido contínuo e, no final, por uma conversa de teor hermético-aleatório. Interessante, sobretudo para os cegos que gostam de cinema e para os interessados em cursos de habilitação a Dalai Lama por correspondência. (6)

Frei Hermano Da Câmara – “Frei Hermano Da Câmara Celebra 30 Anos De Carreira – Desafinação Bíblica” (concerto / 30 anos de carreira)

Cultura >> Domingo, 15.03.1992


Frei Hermano Da Câmara Celebra 30 Anos De Carreira
Desafinação Bíblica


Não esteve em forma, o padre-cantor que gosta de fazer de “Nazareno”. Cumpridos 30 anos de carreira, Frei Hermano da Câmara desafinou nos fados e acrescentou ao termo “kitsch” um significado bíblico. Os fiéis deliraram com a dose de religião-espectáculo. Para entrar no céu basta comprar bilhete.



Em entrevista ao PÚBLICO do passado dia 12, frei Hermano da Câmara afirmava a existência de duas vias para se alcançar o Alto: uma activa e outra contemplativa. Na 1ª parte do concerto inaugural no Coliseu dos Recreios em Lisboa em Lisboa (repete dia 21 no Porto), que serviu para comemorar os seus 30 anos de carreira, o sacerdote que “canta a rezar e reza a cantar” optou nitidamente pela via contemplativa, contemplando a audiência com uma desafinação monumental, do tamanho da Bíblia.
Mas se o cantor desafinou, o público desatinou de entusiasmo: a plateia, que enchia a sala de corpos jubilosos e vibrações positivas, vendo nisso uma atitude ascética, quiçá de sacrifício pessoal, aplaudiu extasiada. Frei Hermano da Câmara, vestido de frade, todo de negro, interpretou, entre a paixão interior e a desafinação exterior, uma colectânea dos seus fados mais conhecidos, acompanhado à guitarra e à viola pelos insuspeitos António Chainho, António Nobre da Costa, Pedro Nóbrega e Raul Silva, que fingiram não dar pela constante saída de tom do cantor. Ao fim de 30 anos, e dada a vestimenta, é caso para dizer que esta noite o hábito não fez o monge.

Ritual Litúrgico-Mediático

Na 2ª parte foi diferente. É difícil dizer se para melhor se para pior. Digamos que o aparato visual teve a virtude de distrair os ouvidos agredidos, através de mais uma encenação de episódios da vida de Jesus Cristo transformada em selecção do “Reader’s Digest”. Ao som de uma mistura grandiosa entre a “Guerra das Estrelas”, Dino Meira, Can-Can e música de circo, o pano abriu para revelar uma cenografia que procurava recriar o interior de uma catedral. Ao fundo, um coro majestoso imitava as elevações vocais gregorianas. À frente, uma mesa em volta da qual se dispunham os 12 apóstolos e, claro, o Nazareno. Estava montado o cenário e o ambiente para o ritual litúrgico-mediático que se havia de seguir.
O espectáculo decorreu como se de uma missa se tratasse, entre canções alusivas à vida do Messias e homilias que difundiam, de forma simples e directa, a mensagem do Novo Evangelho. A música não ajudava a encaminhar as almas: Frei Hermano, agora de branco vestido, continuou a desafinar, embora se notasse menos, graças ao auxílio prestado pelo som da orquestra e do coro (composto por elementos dos “apóstolos de Santa Maria” e do “coro do Estoril”) que lhe abafava as fífias. Coro e orquestra que, diga-se de passagem, foram dos poucos elementos que se salvaram na noite de anteontem. Salvaram-se artisticamente falando, entenda-se.
Pelo palco foram passando os convidados que cumpriram de forma profissional as tarefas de que foram incumbidos: as sopranos Hannelore Fisher e Teresa Couto “tremolaram” na pureza dos agudos que se queriam o mais próximo possível do céu, respectivamente nos papéis da Virgem Maria e do anjo, Teresa Tarouca compôs uma Maria Madalena convincente, o tenor João Costa Campos trovejou num Judas em desespero de causa.
Sucederam-se as cenas sagradas e que assim deveriam ter permanecido: a Anunciação, a Última Ceia, a Crucificação e a Ressurreição – transformadas em caricaturas “kitsch” para consumo imediato de quem procura “mensagens” em “self-service”. Fica a imagem tocante de um “Pai-Nosso” entoado com fervor pelos músicos e pela assistência, em uníssono, naquele que constituiu o momento de catarse colectiva mais alto do concerto.
Frei Hermano da Câmara perguntava ao PÚBLICO, dias antes da sua actuação, por que razão um sacerdote não há-de representar a figura de Cristo, da mesma maneira que um actor o pode fazer. Precisamente, padre, porque um sacerdote não é, não pode ser, um actor. Leia-se fundo neste “não pode”. Cumprindo o ritual, saiu-se da sala, de ouvidos feridos e alma aliviada.

Frei Hermano Da Câmara – “Frei Hermano Da Câmara Comemora 30 Anos De Carreira No Coliseu De Lisboa E Porto – ‘Canto A Rezar E Rezo A Cantar'”

Cultura >> Quinta-Feira, 12.03.1992


Frei Hermano Da Câmara Comemora 30 Anos De Carreira No Coliseu De Lisboa E Porto
“Canto A Rezar E Rezo A Cantar”


Para frei Hermano da Câmara, cantor, sacerdote e “apóstolo de Santa Maria”, o espectáculo não é indissociável da vida contemplativa. Por isso, amanhã e sábado, no Coliseu de Lisboa, e a 21, no Porto, também no Coliseu, volta a encarnar o “Nazareno”, como forma de celebrar 30 anos de carreira, de “fazer apostolado cantando”. Uma coisa “fulgurante”. O próprio Cristo, avisa, “não vai ficar em casa”.



Benedito durante 23 anos, frei Hermano da Câmara, o padre-cantor, acabou por fundar uma comunidade vocacionada para a música e para a oração. É “possível orar em qualquer lado” – diz -, num convento do Sameiro como sob os holofotes do Coliseu. Entre uma oração e o ultimar de preparativos para mais uma encenação espectacular, desta feita celebrando 30 anos de carreira e de apostolado, o PÚBLICO foi ao seminário falar com o “nazareno”.
PÚBLICO – O fado foi para si o ponto de partida para muita coisa…
FREI HERMANO DA CÂMARA – Comecei precisamente pelo fado. Nasci em Lisboa e sabe como é… na época em que comecei a gostar de música o fado estava na moda. Mas a determinada altura passei a cantar um pouco de tudo, da música popular à música ligeira. Houve uma certa evolução, sobretudo depois da entrada para a vida religiosa.
P. – O fado funciona para si de algum modo como um complemento da vida religiosa, como uma outra forma de comunicar com o transcendente?
R. – O fado teve muita influência em mim, não só na minha vocação. Mexia muito comigo, com os meus sentimentos. Costuma às vezes dizer-se que o fado é uma música de taberna mas a mim elevava-me muito para Deus. De resto tive sempre uma fé muito viva.
P. – Depois da sua entrada para a vida religiosa, verificou-se alguma alteração nessa atitude? Porque, apesar de tudo, existe no fado um forte elemento profano…
R. – Quando entrei para a vida religiosa, cantei o célebre “Fado da Despedida” mas logo a seguir senti necessidade de gravar uma “Avé-Maria” e espirituais angolanos. Fui aos poucos perdendo um pouco de interesse pelo fado e a ter vontade de cantar outras coisas, composições minhas, por exemplo, e de procurar letras com mensagem…
P. – Em que autores encontrou essa mensagem?
R. – Procurei-a e procuro-a em autores e livros conhecidos, portugueses: Miguel Torga, Pedro Homem de Mello, Augusto Gil, o padre Moreira das Neves…

Apostolado Musical

P. – A que ordem religiosa se encontra ligado actualmente?
R. – Eu entrei para os Beneditinos: 23 anos de vida beneditina durante os quais criei uma fundação. Depois desliguei-me dessa ordem para fundar uma comunidade, os “Apóstolos de Santa Maria” de que sou actualmente responsável. Tenho também um seminário no Sameiro, ligada aos “Apóstolos”. O objectivo principal é o apostolado através da música.
P. – O facto de ter uma carreira artística conferiu-lhe algum estatuto especial, de privilégio, no seio da ordem religiosa?
R. – O problema principal é esse mesmo, o de conseguir conciliar a vida artística com a religiosa. A nossa vida como “Apóstolos de Santa Maria” é essencialmente contemplativa, de oração, e é esse o nosso carisma. Mas depois temos como objectivo o tal apostolado através da música. Digamos que existem duas facetas: uma contemplativa, outra activa. As duas têm muita importância mas para mim a mais importante é a contemplativa. De tal maneira que se fosse preciso abdicar do canto e dedicar-me apenas à oração, fá-lo-ia. Acho que Deus quer a parte contemplativa mas não quer que eu abdique da música.
P. – Mas isso conduz a uma questão delicada que tem a ver com a venda de discos, concertos, lucros, enfim, aspectos muito pouco espirituais que envolvem o fenómeno artístico…
R. – Todos os lucros resultantes da venda de discos e de concertos revertem para os “Apóstolos de Maria”.
P. – Consegue fazer passar a mensagem que há pouco referia, quando actua no estrangeiro, para estrangeiros?
R. – Canto essencialmente para portugueses. Mas já fui convidado, por exemplo, para ir à Grécia, cantar para gregos. Não havia um português na sala. Foi na catedral de S. Nicolau, na ilha de Creta, com um coro de crianças gregas a quem ensinei a cantar em português.

“O Nazareno”, Acto II

P. – Por falar em mensagem, o “Nazareno” foi um espectáculo mediático, uma espécie de “Jesus Christ Superstar” à portuguesa. Os próximos concertos do Coliseu vão seguir a mesma tónica?
R. – A segunda parte vai ser fulgurante (na primeira vou cantar uma selecção dos meus maiores sucessos). Contará com uma orquestra dirigida pelo Jorge Machado, um coro de 75 vozes, um corpo de bailado e artistas convidados: as sopranos Hannelore Ficher e Teresa Couto, um tenor do Teatro de S. Carlos e o João Costa Campos. A Teresa Tarouca também participa. Vão aparecer de novo teatralizações do Nazareno, de Nossa Senhora, de Madalena, de Judas, mas numa óptica diferente da primeira apresentação, com inserção de números inéditos.
P. – Pode especificar em que consiste essa diferença?
R. – Vai ter o 2º acto do “Nazareno” – que é a parte dramática e também a 2Ressurreição” – encaixando como que numa grande missa, no interior de uma catedral.
P. – O público aderiu sem reservas à primeira apresentação do “Nazareno”, sensível ao aspecto teatral, ao religioso, ou à mistura de ambos. Não há o perigo de a música passar para um plano secundário?
R. – Acho que as pessoas vão aos meus espectáculos à procura de algo mais. Se eu fosse cantar temas religiosos, sem mais qualquer coisa, que puxassem só para o “beato”, talvez não conseguisse chegar a todas as camadas de público.
P. – Uma solução de compromisso?
R. – Sim, sem abdicar no fundo dos meus temas que são sempre a figura de Cristo e o Evangelho.
P. – Mas não deixa de fazer uma certa impressão esse lado espectacular ligado à religião…
R. – Vou explicar-lhe como procedo para conciliar os dois: a nossa espiritualidade tende para uma oração contínua. Mas não é só quando se está na capela que se reza. Podemos rezar no trabalho, na rua, em qualquer parte. Costumo dizer que faço dos meus espectáculos uma oração. Canto a rezar e rezo a cantar. No próximo espectáculo participam doze “Apóstolos de Santa Maria” e eu preveni-os que Cristo não vai ficar em casa, no Sameiro. Cristo vem connosco. Claro que é preciso uma ginástica, um treino, mas temos de fazer esse esforço. É possível estar num teatro ou num ensaio e permanecer em união com Deus.
P. – Poder-se-á associar essa maneira muito especial de propagandear a mensagem de Cristo a um novo tipo de missionarismo?
R. – Acho que sim. Quem ouve dizer que os “Apóstolos de Santa Maria” são contemplativos mas andam a cantar por aí, pode achar que há uma grande contradição. Mas, no fundo, não há.
P. – Não receia que acusem os seus espectáculos de folclore, no mau sentido?
R. – Claro que há sempre críticas negativas, como aconteceu com o “Nazareno”. Admito que as pessoas possam dizer mal dos meus espectáculos e não estarem de acordo que eu encarne a figura de Cristo e outras coisas do género. Mas se um actor o pode fazer porque é que um sacerdote não pode?
P. – Como resumiria estes seus 30 anos de carreira?
R. – Foram 30 anos gastos ao serviço de Deus. No fundo, é fazer apostolado, cantando. Mas a parte mais importante, aquela que me realiza, é a parte de sacerdote, de direcção espiritual das almas, a confessão. O que eu mais gosto e ajudar as pessoas espiritualmente.