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Quim Barreiros – “Quimania | Letra a Letra – Quim Barreiros e Tuna Universitária do Instituto Superior Técnico – Dia 26, Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa, 22h” (dossier | entrevista)

pop rock >> quarta-feira >> 26.01.1994


QUIMANIA | LETRA A LETRA

QUIM BARREIROS E TUNA UNIVERSITÁRIA DO INSTITUTO SUPERIOR TÉCNICO
Dia 26, Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa, 22h




É impossível alguém manter-se indiferente, sem esboçar pelo menos um sorriso, ao ouvir as letras de “O sorveteiro (chupa Teresa)”, “Vais ter um de cada lado”, “Lição de dactilografia”, “Queres é levar com o chouriço” ou o clássico “Bacalhau à Portuguesa”. A música de Quim Barreiros, quer queiramos quer não, existe, vende e é um fenómeno de massas. O homem é um profissional a cem por cento e goza à brava com o que faz, que é no fundo a música popular do país real. Mais importante ainda, faz-nos gozar a nós e rir a bandeiras despregadas com palavras em que a malícia nunca chega a vias de facto e as notas são enfiadas a metro, nas chulas, corridinhos e alguns híbridos de “world music” em versão chancho.
É como uma doença cujo contágio atinge camadas sociais que vão do homem do povo, de Alguidar-de-Baixo, até ao estudante universitário, convertido mais recente à “quimania”, que promoveu o cantor de “Mariazinha, deixa-me ir à cozinha cheirar teu bacalhau” a doutor “honoris causa” da universidade mais popular de Portugal, artista dos artistas, alfa e ómega da desbunda sem barreiras, mas necessariamente com Barreiros.
Há, como é óbvio, o factor moda a condicionar o funcionamento da coisa. Quim Barreiros é “kitsch” e, como tal, um valor que tem piada ostentar e defender. É chocante, de bom tom e ninguém leva a mal dizer-se que se gosta de Quim Barreiros. É também a maneira de uma pessoa mostrar que não tem preconceitos, que está acima deles, sinal de inteligência. “Afinal, a música é só uma, não é?” O argumento, esgrimido como algo que não passa pelo gosto e muito menos pela arte, joga com uma forte dose de perversidade. Claro que ninguém acredita que um jovem universitário, em teoria culto e letrado, goste realmente de Quim Barreiros, da mesma maneira que gosta dos Pearl Jam, U2, GNR ou outro nome qualquer, bom ou mau, dos que fazem música “para ser levada a sério”. Quim Barreiros não é para ser levado a sério. Mesmo sabendo que José Afonso o convidou um dia para fazer um arranjo, mesmo verificando que alguns dos seus discos foram exportados para o estrangeiro com a etiqueta “Portuguese folk music”, mesmo levando em conta que teve a sua fase interventiva logo a seguir ao 25 de Abril, em canções como “Agricultura em progresso”, “A batalha da prodoção” (sic) e “O malhão não é reacionário”. As canções de Quim Barreiros são piadas com banda sonora.
Claro que somos o país que somos e que, nas festas e bailes que se realizam do Minho ao Algarve, do adro da igreja à sociedade recreativa, Quim Barreiros é de facto o rei. Sem segundas leituras, com plena cumplicidade de quem se revê na sua malandrice como num espelho. Rei que por acaso vai nu e se calhar por isso é que lhe acham piada. Porque Quim Barreiros não tem jogo escondido. É meia bola e força. O grau básico da escrita. Como na “Lição de Dactilografia”: “a professora a ensinar” e ele “a bater por letra”…



PÚBLICO – Preparou algum espectáculo especial para a Aula Magna?
QUIM BARREIROS – Quando me telefonaram para ir tocar à Aula Magna perguntei onde ficava essa terra, pensava que fosse uma terra lá para o Alentejo ou para o Algarve. Não conhecia. Só depois é que vim a saber que era uma sala de espectáculos em Lisboa.
P. – Sabe que é uma sala diferente daquelas onde normalmente costuma tocar?
R. – Não sei. Fiquei contente porque é sempre bom tocar numa sala para quem está habituado a tocar em cima de atrelados ou de tractores. Tocar numa sala que tem camarins, casa de banho, que tem tudo, é uma maravilha.
P. – Que músicos o vão acompanhar na Aula Magna?
R. O Rui, o baixista, o Nucha, o baterista, e o Zé Figueiras, o teclas.
P. – Vai apresentar alguma canção nova?
R. – Vão ver só coisas já conhecidas. Eu não modifico assim muito. Acho que é mau modificar. Vou metendo de vez em quando uma nova. Porque a malta vai lá é para ouvir o “Bater por letra”, o “Está a nascer um negócio na tua cabeça”, “O bacalhau”.
P. – Há quem diga que os estudantes universitários, que “adoptaram” a sua música, só conseguem apreciá-la quando estão com os copos…
R. – Não, não é só pelos copos, porque quando vou para a terra deles, tocar para os pais deles e para os avós, ninguém está com os copos e eles divertem-se na mesma. É lógico que se vou a uma Queima, aparecem alguns com uns copinhos, os borracholas do costume.
P. – A sua popularidade deve-se só ao picante das letras?
R. – Aliado ao “rítimo” da música, ainda há mais essa.
P. – Em relação aos estudantes universitários, não estará na moda gostarem de si?
R. – Os estudantes descobriram-me há coisa de uns seis anos. Andei muitos anos da minha vida fora. Tocava mais para a emigração, aqui não se ganhava nenhum. Quando foi o 25 de Abril, estava tudo muito parado. Fui para a América, Canadá, Venezuela, Brasil, Austrália, Caraíbas, toda a Europa. Quando decidi regressar, há seis anos, fui convidado para ir às Queimas do Porto e de Coimbra. Foi a partir daí que comecei a ter sucesso e penso que isto nunca mais vai parar. Quando vejo crianças de três, quatro anos, a cantarem as minhas músicas, é porque são populares. “O bacalhau”, daqui a dez, vinte, trinta anos, vai ser como o “Malhão Malhão”, toda a gente vai cantar.
P. – Os seus primeiros discos davam mais relevo à música folclórica, sem preocupação de serem provocantes…
R. – Repare que tive há muitos anos “O pito da Maria”… Sempre gravei com grandes folcloristas do país e, quando podia, metia a parte mais brejeira. No Brasil – o meu pai é brasileiro, toca acordeão, é sanfoneiro, tenho uma forte pancada pela música brasileira do Nordeste -, o homem que me disse onde estava o filão para mim foi o Luís Gonzaga.
P. – Mas não acha que a música folclórica é mais qualquer coisa do que o que faz?
R. – Claro, eu tenho que ser comercialão. Sou um grande comercialão. Só gravo aquilo que à partida sei que vai vender. Porque fiz bons trabalhos ao longo da minha vida – sou capaz de ter uns cinquenta “long-playings” ou mais – e não se venderam. As coisas brejeiras têm outra saída que não tem uma boa obra que eu faça.
P. – Quer dizer que neste momento para si o mais importante é mesmo só vender?
R. – Não é neste momento, toda a vida fui assim. A parte mais cultural deixo para os outros. Só que os outros não têm dinheiro para pagar a renda da casa e eu tenho.
P. – O que faz ao dinheiro que ganha?
R. – Invisto em imóveis.
P. – A seguir ao dinheiro, o que é mais importante para si?
R. – A família, o amor, a amizade. As relações humanas são o mais importante.
P. – E o sexo?
R. – Ó bacano, sem o sexo o que éramos nós? O sexo é a coisa mais importante que há, a relação entre um homem e uma mulher.



P. – Disse uma vez numa entrevista que dinheiro e sexo deviam andar sempre separados. No entanto, nas suas canções, são as referências ao sexo que lhe dão dinheiro…
R. – Não me venhas cá com essa. Ó bacano, ora bem, eu não te sei responder a essa pergunta, mas não… Eu canto aquilo que nós gostamos, que, ao longo dos anos, tem sido falar de sexo. Hoje em dia já se vêem filmes de sexo, já se vêem aulas no liceu de sexo. É uma coisa que está a abrir e portanto aparece o Quim Barreiros com aquelas musicazinhas e toda a malta gosta daquilo.
P. – Tem opinião sobre a sida?
R. – Ó pá, acho que devíamos seguir o conselho dos homens mais velhos, quer dizer, de quem sabe, que é preciso ter cuidado, mas, eh pá, isso vive muito da altura. Há certas alturas em que um homem nem se lembra da sida.
P. – Nesse aspecto arriscava-se, arrisca-se ou toma as devidas precauções?
R. – Ó pá, já não sou novo mas já fui, portanto a mim podiam-me dizer que há a sida e não sei quê que um gajo naquela altura, quando está de pau feito, qual sida qual carapuça, vai sida vai tudo [risos].
P. – Quer dizer que não tem medo?
R. – Não, acho que temos que ter cuidado, e que ensinar o caminho à rapaziada mais nova. Mas é muito mais perigoso andar na estrada do que contrair sida, meu filho!
P. – Já teve algum acidente grave na estrada?
R. – No Canadá ou na América, volta e meia, com o gelo, ia pela ribanceira abaixo. Mas aquilo, como há tanta neve, graças a Deus nunca tive nada.
P. – Costuma e vai tocar para estudantes. O que pensa do problema das propinas?
R. É um problema político. Mas não acho bem eles pagarem. Propina é uma forma do verbo propinar. Um gajo para estudar ter que propinar não faz sentido. Sobre essas coisas que tem havido para aí, não gostei daquela manifestação onde eles levaram pancada. Conheço muito bem os estudantes. São irreverentes mas não são agressivos, são educados. Por outro lado, a polícia também não vai arraiar porrada por dá cá aquela palha. Sou capaz de acreditar que deve haver indivíduos no meio daquilo tudo a fomentarem a desordem. Depois quem leva são os estudantes.
P. – Tem algumas preocupações políticas?
R. – Estou-me nas tintas. Andei agora a fazer campanha política para os partidos todos.
P. – Sobre aquela história de se candidatar à Presidência da República, já desistiu?
R. – A malta ao princípio queria que eu me candidatasse, mas agora já me estão a dizer para não me candidatar, porque se eu ganhasse ficavam sem o Quim Barreiros. Ainda estou na dúvida.
P. – O que pensa dos seus rivais, com um estilo parecido com o seu, como o Artur Gonçalves?
R. – O Artur Gonçalves é um homem que eu admiro. Os primeiros discos que gravou foram comigo. É um velho amigo meu. Assim como há o Crispim, o duo Ele e Ela, o Leonel Nunes, da Guarda, que tem muita graça.
P. – Mas o Quim Barreiros é o maior de todos. Tem algum segredo?
R. – Por vezes uma anedota, contada por um gajo qualquer, não tem piada. E há outros que, com a mesma anedota, mal abrem a boca já toda a gente está a rir-se.
P. – É tão bem disposto na sua vida particular como é em palco?
R. – Acordo e deito-me sempre bem-disposto. Para mim não existem problemas. Sou um aventureiro, nunca estou parado. Não sou capaz de estar sentado a ver um jogo de futebol na televisão. Gosto de ver é o Telejornal.
P. – Que música costuma ouvir em casa?
R. – Gosto de toda a música que me entra bem dentro do coração. Música tocada com “feeling”. Não gosto de música tocada com técnica, só dedos, isso não aprecio. Gosto de um bom cantor, de um Andy Williams, de um Sinatra, do Iglésias, do Carlos do Carmo.
P. – Considera-se um romântico?
R. – Sim, no fundo sou um romântico, não sou nada daquilo que às vezes vocês pensam, por causa das minhas cantigas.



P. – Era capaz de manter com uma mulher apenas um amor platónico?
R. – Não. Sei lá. Falar da mulher é um assunto muito delicado, ainda para mais em entrevistas.
P. – Qual é para si a mulher ideal?
R. – Não existem mulheres ideais nem homens ideais. Gosto de uma mulher inteligente, honesta, não importa se bonita ou não, as mulheres são todas bonitas.
P. – Não acha que as letras de algumas das suas canções dão uma imagem da mulher um bocado diferente dessa?
R. – Quando se fazem essas músicas, o objectivo não é pisar a mulher, mas sim o gozo, a cantiga em si. “Chupa Teresa”… Não estou a rebaixar a Teresa… Porque nós os homens não somos nada sem as mulheres. A mulher é a coisa mais importante que a gente tem na vida. Primeiro as mulheres, depois é que vêm as crianças. Sem mulher não há crianças, só batíamos por letra, ah ah ah ah!

Amélia Muge – “Em Público” (entrevista)

pop rock >> quarta-feira >> 26.01.1994


AMÉLIA MUGE *
EM PÚBLICO



Aguarda-se com grande expectativa o seu próximo álbum. José Martins vai, como no anterior, tomar as rédeas do poder ou haverá, desta vez, maior controlo da sua parte?
Nunca tenho a sensação de que estou a dirigir as operações. Até mesmo quando componho, sinto sempre que há interferências, em concreto dos próprios materiais que estão em jogo. São eles que se impõem e me arrastam. O novo disco, é evidente, reflecte muito mais um diálogo e a evolução natural desse diálogo. Tenho muitas coisas que começaram por ser tocadas de uma certa maneira e que, neste momento, já estão a ser tocadas de outra. É um disco que reflecte uma caminhada, bastante mais do que o outro.

Quais são as etapas principais dessa caminhada?
O papel individual de cada um no colectivo que representa este disco [José Martins, Luís Sá-Pessoa] está mais bem definido, sentimo-nos os três melhores na nossa individualidade. O novo disco vai ter coisas compostas há muitos anos, em Moçambique, as coisas novas misturam-se com as antigas. Um dos grandes defeitos, mais do que virtudes, de uma pessoa como eu – é esta de dizer: “Será que vou conseguir meter nesta leva aquela e aquela canção que ficaram de fora e que eu gostava de aproveitar?” Estou sempre insatisfeita porque tenho imenso material e, muitas vezes, a selecção continua a não depender de mim. De repente, ponho qualquer coisa cá para fora e o interesse das pessoas é tão grande que a canção acaba por se impor, sem que haja uma selecção criteriosa minha. Mas isso é bom.

Em que estado se encontra a sua ligação com a música tradicional? Está já confirmada a sua participação no festival Intercéltico deste ano…
Não sei muito bem o que é a música tradicional. Sei que não tem a ver com formalismos mas mais com atitudes, com aproximações que ultrapassam as próprias morfologias musicais. Para mim, a importância do Intercéltico tem exactamente a ver com isto: por um lado, com esse espírito aberto que nós, ao longo da história, nos habituámos a encontrar nos celtas, embora depois existam certos povos, como a Irlanda, que acabaram por transformar essa música num símbolo de resistência e, aí, ela acaba por cristalizar em termos formais. Mas, regra geral, o espírito da música tradicional é de grande abertura e troca de experiências. Há muita coisa que as pessoas não se habituaram a ver dentro do tradicional, como sejam novos temas, novas sonoridades, novos métodos de se trabalhar, muita coisa que irá fazer parte, no futuro, do património tradicional.

Até que ponto o seu estilo vocal incorpora elementos e técnicas do canto tradicional?
Mais, se calhar, que o canto tradicional, o canto das pessoas que cantam. Por exemplo, nas Janeiras, em que se verifica a prática de cantar em conjunto, de estarmos ao lado a ouvir a voz do outro, sem ser através do disco nem da rádio. A ideia de coro é fundamental para o canto individual. Quando ouço a voz de um homem ou de uma mulher a cantar nas Janeiras, não poso deixar de ver, por trás, um avô que ensinou aquilo àquela pessoa, um passado que é familiar antes de ser social, do testemunho de estar vivo que passa pela canção.

É essa sua sensibilidade ao canto comunitário que está na base da formação do projecto de vozes femininas Agrupa?
Pois, que eu não queria que fosse o “meu” projecto. Acho que só pode haver um projecto quando há materiais, coisas concretas a partir das quais se pode trabalhar. Isso é uma coisa que eu já tinha. Tenho certas coisas que nunca cantarei sozinha, que têm a ver com um colectivo de vozes. Por outro lado, não sei se por estar há demasiado tempo deligada disso que é ouvir outras vozes a cantarem em conjunto, vozes atrás da porta como se ouvia em Moçambique, sinto muita falta desse lado. A primeira vez que voltei a sentir de novo isso foi quando estava em casa de uma amiga, na Graça, e ouvi pessoas a ensaiarem as marchas populares de Lisboa. Afinal, há gente que canta! Isto para mim é fundamental. Por outro lado, a própria prática de cantar a várias vozes, talvez porque componho muito com a voz, é que me permite chegar aos instrumentos de uma outra maneira. Há, pois, também questões de aprendizagem. Se os processos são ricos, dão produtos ricos.

Vão ser só a Amélia Muge, a Margarida Antunes e a Cristina Antunes?
Para já, somos o núcleo duro. Gostaríamos muito de encontrar outras pessoas na mesma onda. Por exemplo, pessoas como a Filipa Pais, a Minela, a Teresa Salgueiro ou a Maria João. Inclusive, já falámos. Na teoria, tanto a João como a Filipa disseram que sim. Só que têm surgido problemas de ordem prática… Enquanto eu, a Cristina e a Guida nos encontramos uma vez por semana, não só para cantarmos como para fazermos exercícios respiratórios, vocais… Para já, estamos as três a pensar propor um trabalho de conjunto para Lisboa, Capital da Cultura, que seria um espectáculo ao vivo. Já temos um reportório de seis canções, compostas por mim, com letras minhas e duas da Hélia Correia. Tencionamos também ir buscar coisas do Lopes Graça, do Zeca, não serão só originais.

Passemos a uma questão delicada, relativa à UPAV e ao modo como foi distribuído e promovido o seu álbum de estreia, “Múgica”, que desapareceu do mercado depois de uma primeira edição esgotada em poucos dias…
O disco, de que foi feita apenas uma primeira edição de 2000 exemplares, está esgotadíssimo, é verdade. Na altura em que se estava a pensar fazer uma segunda edição, surgiram os problemas da suspensão de toda a actividade editorial da UPAV. Os dois mil exemplares editados são, de facto, um número muito baixo, que teve a ver com contenção de despesas e com uma sondagem de mercado. Mas, a partir do momento em que o disco esgotou… E quem vendeu mais foram os armazéns, o Serafim, da Movieplay (ver página 4 deste suplemento); e, se vendeu, foi porque as discotecas o procuraram…

Não se sente frustrada por o disco ter chegado a tão poucas pessoas?
Há sempre a hipótese de nos tornarmos profissionais da frustração, o que, neste país, é muito comum. Às vezes penso até que as pessoas têm um certo gosto em estar frustradas, por acharem que ficam mais interessantes. Tudo aquilo que possa ter corrido menos bem em relação ao disco não elimina o facto de a UPAV ter apostado na gravação quando nenhuma editora quis pegar no disco; como não elimina a importância que tudo isso teve para mim no determinar de um certo tipo de opções que eu fui tomando, que me permitiram, no fundo, fazer aquilo que quero que é estar a trabalhar mais na música. Considero que o processo em si, da feitura do disco, foi extremamente positivo. Sobre o lado que tem mais a ver com a venda, fica, apesar de tudo, em aberto a hipótese, no caso de o próximo disco vender bem, de ser feita a reedição do primeiro. Vamos até imaginar que tinha sido feita uma edição de 10 mil exemplares e tivesse apenas vendido mil. Nesse caso, estaria muito pior do que estou neste momento, em que sei que não há um único disco cá fora.

Hoje, que o seu nome se tornou já mais conhecido, mudou alguma coisa na atitude das editoras em relação a si? O próximo disco já tem editora?
Em relação ao novo álbum, estou ainda na fase de selecção dos temas. Tenho um bocado de dificuldade em me situar em relação a isso. Para mim, as editoras não são um todo homogéneo. Estou a seguir com o maior interesse o actual movimento das pequenas editoras independentes. Gosto pouco da palavra coerência, se coerência tem a ver com qualquer coisa de muito certinho, isto assim porque liga com aquilo. Uma das coisas que me dá enorme gozo é encontrar ligações insuspeitadas. E até sou capaz de chegar à conclusão de que tenho muito a ver com uma multinacional…

Será que certas resistências postas pela indústria à sua música se prendem com a sua intransigência, com a exigência de imposição de regras próprias?
Mas se também a indústria é difícil para as pessoas! Aí estamos iguais! É preciso ter muita força para encontrar a voz interior que toda a gente deve ter. E se não tem é porque estamos numa época onde se entende a comunicação apenas pelo lado de fora. Temos de comunicar e de pactuar com tanta coisa que, a certa altura, fica pouco espaço para comunicar connosco mesmos. E isso eu considero essencial. Mas não acho que seja uma pessoa intransigente, pelo contrário. Considero sempre qualquer proposta, seja ela qual for, a mais maluca ou que aparentemente não tenha nada a ver comigo, como um desafio,

* Cantora e compositora. Prepara o lançamento do projecto de vozes femininas Agrupa e de um novo álbum a solo, cujo reportório será apresentado parcialmente nos três espectáculos ao vivo de amanhã, sexta e sábado no Instituto Franco-Português

Celso de Carvalho – “EM PÚBLICO” (rubrica | série | dossier | entrevista)

pop rock >> quarta-feira >> 19.01.1994


EM PÚBLICO (rubrica / série)

CELSO DE CARVALHO *




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Por onde começou, pelo jazz, pelo rock, por outras músicas?
A minha primeira boa experiência de música foi no liceu, em 1965, tinha quinze anos. Houve um concurso que o meu grupo ganhou. O prémio, além de uma taça simbólica, era ir à Emissora Nacional gravar dois temas à escolha. Lembro-me que fomos gravar dois temas instrumentais dos Shadows. Tocava piano e viola ritmo. O grupo chamava-se Misters. O Plexus formou-se mais tarde, em 1968. Da sua primeira formação faziam parte, além de mim, o José Teixeira Lopes, que já vinha dos Misters, o Carlos Zíngaro, o Jorge Valente, o Luís Pedro Fonseca. Gravámos um disco de quatro temas na garagem do José Cid. Depois veio o fantasma da tropa e cada um seguiu para seu lado. Consegui meter-me numa banda militar, não saí de cá. Tocava violoncelo na banda da GNR, por influência do meu pai. [Impossível não recordar aqui a figura de Woody Allen, em “O Inimigo Público”, desfilando em parada a arrastar pela rua a cadeira e o violoncelo…] Dois anos mais tarde o Plexus reformou-se, comigo, o Zíngaro, o Jorge Valente e novos músicos.

Que motivos levaram à extinção do Plexus?
Eu e o Paulo Gil pretendíamos uma direcção musical mais aberta, enquanto o Zíngaro queria manter-se na anterior linha, mais vanguardista. Separámo-nos. A confusão toda que houve a seguir deve-se a que a coisa foi mal explicada. O Zíngaro resolveu continuar o Plexus, mas não disse nada. Ele depois fez umas coisas esquisitas. Primeiro quis ficar detentor do nome, e isso irritou-me na altura. Foi um assunto que nunca ficou bem esclarecido.

Zíngaro entretanto partiu para uma carreira no estrangeiro bem sucedida. Por que razão não tentou o mesmo? Por uma questão de feitio?
Quando o Plexus acabou, quis tocar outro tipo de música, na altura já estava um bocado farto do “free jazz”. Sempre houve em mim uma componente rock. No liceu gostava dos Beatles, dos Stones e por aí fora. Mais tarde, nos anos 70, interessei-me pelos King Crimson, pelo rock progressivo, a escola de Canterbury… O Zíngaro não, além de que terá começado a sentir que já não era ele só o “director”, a figura-chave do grupo. Senti que houve um bocado de ciúmes musicais da parte dele… Depois do Plexus acabar fiquei a fazer cinco ou mais coisas simultâneas: a orquestra do São Carlos, ainda estava na banda da GNR, mais a Band do Casaco, o Rão Kyao e de vez em quando ainda era chamado para fazer sessões de estúdio…

Essa diversidade não o terá prejudicado, na medida em que impediu uma orientação definida para a sua carreira?
Isso é nítido. Lembro-me de que uma vez fomos em excursão a um festival em Château-Vallon, em França, onde assisti a seminários com músicos como o Steve Potts ou o Barre Philips, mas, se em algumas coisas ainda encontrei algum “feedback”, noutras vi que já não era o que me interessava. Pelo contrário, o Zíngaro encontrou logo ali a linha-mestra daquilo que queria fazer. Foram duas opções diferentes.

Na Band do Casaco encontrou a música que lhe interessava?
No princípio havia uma magia grande, de facto. Os dois primeiros discos resultaram muito bem. Mas envolvi-me mais na Banda do Casaco sobretudo nos últimos tempos. O Pinho tinha saído e a minha participação já podia ser mais de compositor e produtor. A princípio eram só o Nuno Rodrigues e o Pinho que tinham as decisões finais.

Com a extinção da Banda do Casaco o seu nome desapareceu também…
Pois, na passagem dos anos 70 para os 80 queimei os fusíveis, em termos de rentabilidade. Vi que era um disparate ter tido todos aqueles projectos ao mesmo tempo. Não dava. Foi nessa altura que comecei a compor. Também lamento não ter tentado há mais tempo pôr essas músicas a funcionar, em vez de as ter guardado. Da parte das editoras também não houve “feedback”. Das várias que contactei, só tive resposta de duas: uma foi a Valentim de Carvalho, onde me disseram que tinham achado a música interessante mas um bocado de difícil audição (na altura, ainda me desafiaram para fazer trabalho de produção, mas até agora não aconteceu nada…), a outra foi a Numérica, onde me disseram que estavam numa fase de recessão e não previam um projecto como o meu. O que é que uma pessoa pode fazer?

Mas há alguma dificuldade específica na sua música que impeça de todo a sua audição?
O meu drama se calhar é ser muito individualista. Toco vários instrumentos e consigo fazer sozinho aquilo que idealizo. Outro drama é não ter feitio para andar a pedir batatinhas, a percorrer as capelinhas todas a tentar impingir o meu trabalho. Depois também me isolo muito. Não ponho os pés num Hot Clube há uma dúzia de anos, deixei de me interessar ainda no tempo em que tocava lá. Era sempre o mesmo público, e cansei-me sobretudo daquele público mais conservador.

No Plexus , como na Banda do Casaco, pensa que terá havido alguma azar em ter ficado sempre à sombra das individualidades?…
Os instrumentos que tocava, em particular o contrabaixo, predispunham um bocado essa situação. Senti isso sobretudo com o Rão Kyao. O Rão Kyao usava muito um esquema que era tocar um tema baseado numa ou duas tonalidades, algo que tem a ver com a música indiana. Estávamos dez minutos a tocar a às tantas sentia que estava a fazer o meu melhor, mas no fundo pensava em qual era a utilidade do que estava a fazer. Estava sempre a servir de suporte para a “estrela” brilhar. Era um papel subalterno.

E em relação ao violoncelo?
A minha voz, de facto, é o violoncelo, é como comunico melhor. No violoncelo liberto-me desse papel subalterno.

Quanto às suas composições, vão ficar para sempre na gaveta?
Este ano vai sair um disco meu, nem que seja em edição de autor. Tenho tudo pronto, escrito em pauta. Até o título, que vai ser “Violoncelo”. Vou precisar de um teclista que esteja bem batido nas programações de computador. Falei com o António Emiliano e ele mostrou-se interessado. A minha vontade era também fazer concertos, só fazer o disco não tem piada. Se o Emiliano tiver disponibilidade… O grupo terá mais um baterista e um baixista. Eu vou tocar violoncelo e alguns teclados. Tenho um “alter ego”. Sou um guitarrista frustrado. Sempre fui influenciado pelos guitarristas, do Satriani ao Steve Vai ou, mais jazzísticos, o Allan Holdsworth ou o Scott Henderson, já para não falar no Stanley Jordan. Como no violoncelo não poso fazer o que eles fazem, arranjei o tal “alter ego”, uma guitarra simulada, a que chamo “fake guitar”, que é um registo feito num sintetizador que tenho em casa.
Ter ou não sucesso é uma questão que o preocupa?
Não quero ter sucesso em termos de popularidade da minha pessoa, mas sim de a minha música começar a ser conhecida.

Precisamente, num meio pequeno como o português, atendendo às especificidades da sua música, não teria sido preferível seguir um percurso semelhante ao do Carlos Zíngaro ou Maria João, e procurar fazer carreira no estrangeiro?
Não quero, como acontece com os nomes que cita, ter de me manter fiel a uma linha musical. Não gosto de sentir amarras. Prefiro estar em várias áreas. Quem tem a sorte de ter uma carreira internacional depois tem que se manter um bocado fiel a essa carreira.

Mas não parece que a Maria João e o Zíngaro estejam muito condicionados na música que fazem…
Mas isso é porque já têm um nome e a partir daí é uma bola de neve.

Sim, mas não lhe parece que eles tiveram de lutar até conseguirem esse estatuto?
São as tais questões de aproveitar ou não aproveitar as oportunidades.

Não gostaria, por exemplo, de voltar a tocar com o Carlos Zíngaro?
Acho que sim. O tal problema pessoal, ou mal-entendido, é ele que tem de o resolver, não sou eu. Se ele quiser falar comigo, tudo bem. Não sei o que se passa na cabeça dele.

Nunca se interrogou sobre se o problema não será afinal devido à sua maneira de ser?
Não, sempre fui muito aberto, nunca impus a minha opinião. Normalmente as pessoas querem logo marcara a sua posição, mostrar que são isto ou aquilo, mas acabam por só fazer asneiras. Ou então mostram logo tudo de repente e depois não acontece mais nada. Eu não. Acho que sou espontâneo. O meu problema será talvez o de não conviver com as pessoas.

* Violoncelista, contrabaixista e compositor. Tocou com os Plexus, Rão Kyao, Né Ladeiras e Banda do Casaco. Prepara o lançamento do seu primeiro álbum a solo, intitulado “Violoncelo”.