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Tunas Académicas | Tuna da Universidade Internacional | Estudantina Universitária de Lisboa | Tuna Universitária do Instituto Superior Técnico | TunaMaria – “Tuna Fixe!” (dossier)

pop rock >> quarta-feira >> 27.07.1994
DOSSIER


Tuna Fixe!

Serenatas ao luar. Farra até às tantas. A camaradagem e o espírito de grupo. A música. A borga. O reatar de tradições. Quim Barreiros, o herói. Pela alegria e pela irreverência. São as tunas académicas, um fenómeno emergente entre a juventude universitária portuguesa.



Um pouco por todas as universidades do país os estudantes envergam de novo a capa e a batina, erguem o estandarte e tentam recuperar o verdadeiro espírito académico. Algo que se perdeu na vertigem da competição e do individualismo que grassam na sociedade portuguesa actual. As tunas servem, entre outras coisas, para fortalecer o espírito de grupo. Os tunos nascem para se divertirem mas também para conquistarem uma unidade perdida. Os estudos, nalguns casos, quando a paixão é maior, ressentem-se. É preciso sacrificar num lado para celebrar no outro.
Tudo está ainda no princípio. Ensaiam-se fórmulas e discutem-se modelos. O exemplo vem de Espanha, onde a tradição das tunas é mais antiga. Os tunantes, ou tunos, ou seja, os amigos da boémia, fortalecem laços, juntam as guitarras, bandolins, cavaquinhos, contrabaixos, acordeões e pandeiretas e cantam temas populares, melodias fortes, algumas brincalhonas, outras mesmo picantes. Estão unidos. Nalguns casos nem tanto. Há dissidências, elementos que saem de uma tuna para entrar noutra. Mas a regra não é essa. É-se tunante, de uma tuna que não pode ser nenhuma outra, até ao fim da vida. Com orgulho. Há quem fale na formação de uma quadratuna, tuna de veteranos.
Entra-se para uma tuna por uma porta estreita. O candidato a tuno submete-se a praxes. A rituais de iniciação. Pelo menos deveria ser assim. O mais importante é saber se tem ou não o espírito. Quem der provas entra, quem não se achar capaz sai. Cada tuna tem cerca de trinta elementos. Muita gente. Mas o corpo colectivo é só um. As serenatas podem ser um problema. Antigamente era fácil, no tempo dos orfeãos, considerados por alguns antepassados das tunas. Os rapazes saíam para a rua e cantavam à janela para as donzelas. Hoje já há tunas femininas e o caso mudou de figura. Elas perderam a timidez e cantam aos rapazes. É a mudança dos tempos e de mentalidades. A renovação da tradição. É normal, dizem alguns. Não pode ser, a tuna é coisa de homens, dizem outros, tradicionalistas ferrenhos. Mas o pior é quando as tunas são mistas. Aí fia mais fino. Como é? Raparigas fazendo serenatas a raparigas? Rapazes guitarrando outros rapazes? Não pode ser. Não fica bem. É um problema que é preciso resolver. Há vários problemas a resolver.
E os trajes? Há que ter cuidado. Sobretudo no caso das raparigas. Nem saias muito curtas, para não distrair demasiado as atenções e evitar os piropos dos mais atrevidos, mas muito compridas também não. Porque isto de cantar, vivar parte da vida numa tuna, não é só brincadeira, pode ser uma coisa muito séria. Por isso é preciso separar as águas e distinguir entre os verdadeiros tunos e aqueles que se fazem passar por tal como justificação para a bandalheira. É preciso trabalho, ensaios, fortalecer o tal espírito de grupo. Existe ordem na aparente desordem de uma tuna. Tem que ser assim. As tunas viajam por Portugal e pelo estrangeiro, participam em festivais, representam uma instituição.
Tornou-se moda convidar tunas para os programas de televisão. Têm pinta, fazem número, são folclore, pensam os responsáveis. Metem-nos nas primeiras filas, trajados a preceito e pedem-lhes palmas e alegria. As tunas, algumas, vão. Em geral arrependem-se. Dizem-lhes que vão tocar, mas mal os tunos pegam nos instrumentos e se preparam para atacar a primeira canção, logo surgem os irritantes genéricos, com a ficha técnica a passar depressa e as tunas a ficarem a ver navios. Também é costume convidar tunas para colorirem homenagens a fadistas conhecidos. No último aniversário de Amália, não podiam faltar. Lá estava uma tuna. É bom, é mau? As pessoas falam deles e delas, vestidos de negro, a cantarem coisas que toda a gente pode cantar. São contagiadas pela alegria dos tunos. Voltam talvez a ter saudades do tempo em que eram estudantes. É mesmo assim, eles e elas juram que sim: tuno até ao fim.
O PÚBLICO entrou no universo das tunas. Falou com elementos de algumas delas. Com os magísteres, por exemplo, que são uma espécie de chefes, organizadores, catalisadores do espírito de cada tuna. Desfizeram-se ideias feitas. Tunos da Estudantina Universitária de Lisboa, da Tuna da Universidade Internacional, da Tuna Universitária do Instituto Superior Técnico, e da Tuna-Maria, uma das poucas tunas femininas existentes, contaram histórias e segredos. As duas primeiras já gravaram compactos. Ficaram de fora muitas outras, de Lisboa, Porto e Coimbra. Todas elas com as suas próprias histórias para contar. É um mundo mais complexo do que parece, o das tunas universitárias. Eferreá!!

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De Pára-Quedista A Pranchado

O fenómeno das tunas explode nos meios académicos de Lisboa em 1988, com o aparecimento da Tuna da Universidade Internacional, formada por um grupo de amigos que “gostava de tocar e beber uns copos”. Tem 30 elementos. “Com uns a sair e outros a entrar.” Foi a primeira tuna mista e a primeira a fazer o ressurgimento da capa e batina em Lisboa. Mas a história vem de trás. “As tunas são originárias de Espanha”, explica Rogério. O fenómeno chegou cá “com a vinda da tuna de Santiago de Compostela a Coimbra. Surgem nessa altura, por volta de 1912, a Estudantina de Coimbra e a Tuna do Orfeão do Porto, as duas tunas portuguesas mais antigas”.
Rogério diz que a Tuna da Universidade Internacional (TUI) surgiu para ressuscitar em Lisboa o espírito das tunas. A primeira das praxes de uma tuna diz respeito ao seu nascimento. Para nascer, uma tuna tem que ser apadrinhada por outra, já existente. No caso da TUI o padrinho foi o Orfeão do Porto. Ramón – um espanhol que se transferiu de uma tuna castelhana para a TUI, ficando os dois agrupamentos geminados – critica as tunas que não cumprem esta praxe: “É preciso que haja uma tuna com experiência que ensine aos candidatos o que é ser tuno. Ninguém nasce tuno. Aprende-se com a prática.”
Na TUI para se chegar a tuno tem de se passar por três fases distintas. “Na primeira, vemos se o candidato tem aptidões para ser tuno”, explica Ramón. É a fase do “pára-quedista”, em que “uma pessoa ainda não está integrada na tuna, nem sobe ao palco com os outros para cantar. Vem aos ensaios para aprender. Ninguém lhe pode tocar. É como se fosse imaculado”. Esta fase dura em geral três, quatro meses. “Quando vemos que ele já está a tocar e a cantar bem, fazemos-lhe uma prova escrita em que terá de mostrar perante um júri se aprendeu ou não as músicas.” Se passar, torna-se caloiro e já poderá subir com os outros para o palco. “Já tem mais responsabilidade”. Esta segunda fase, em que o caloiro é denominado “pranchado”, costuma durar cerca de dois anos.
O “pranchado” deverá desempenhar tarefas, como “transportar os instrumentos, comprar bebidas, fazer a limpeza depois de um ensaio, etc.”. “São os burros de carga!”, diz a rir o Rogério. “É nessa altura que vemos se ele tem ou não o espírito de camaradagem e se quer cumprir as regras do jogo.” Finalmente, a última iniciação, a entrada definitiva na tuna, ou seja, o “baptismo”, acontece “de surpresa”. “Vamos um dia para uma fonte e é aí que se processa o baptismo. Com o caloiro em cuequinhas…” Chegado a este ponto convém precisar que a TUI é uma tuna mista… “É igual, elas em cuequinhas e ‘soutien’.”
A TUI foi a primeira a organizar em Lisboa um festival de tunas, com “tunas de todo o país e de Espanha”. Em Dezembro deste ano vai realizar-se a sexta edição. Mandam as regras que a tuna receba “cachet” pelas suas actuações apenas nas participações em festivais nos vários pontos do país ou do estrangeiro. No âmbito das actividades académicas não se cobra.
É o lado mais formal das actividades musicais. Além dele, a tuna “toca nas ruas e nos bares”, diz Rogério. “É mais boémio, vamos para o Bairro Alto ou Mouraria, fazer serenatas.” As canções do nosso disco [“Encantos de Lisboa”, editora Ovação] falam da vida da boémia, das serenatas ao luar.” E as raparigas? “Há um preconceito quando se diz que as tunas têm que ser só masculinas ou femininas. Ninguém tem problemas em fazer serenatas juntos.” (Ver foto.)
Um aspecto curioso na vida das tunas é a rivalidade existente entre elas: “uma rivalidade saudável”, garante Rogério. “Podemos sair nós e outra tuna qualquer e irmos para os copos juntos.” A quem a TUI não perdoa é à Estudantina Universitária de Lisboa. “Fizeram uma coisa muito mal feita”, comenta Ramón. “Numa altura em que já havia algumas tunas em Lisboa, eles, em vez de arranjarem caloiros, foram buscar elementos a outras tunas, incluindo a nossa. Aconteceu que as outras tunas que estavam a começar ficaram fracas. Não é por acaso que a Estudantina nunca foi convidada para nenhum festival de tuna em Portugal.”
Rogério e Ramón apreciam ambos Quim Barreiros, embora sejam de opinião de que ele “não tem nada a ver com as tunas”. Para Rogério, “o fenómeno Quim Barreiros surgiu a nível universitário porque em Lisboa ou em qualquer outro lado onde há queima das fitas o Quim Barreiros está lá. Pode dizer-se que nas universidades toda a gente gosta muito dele.



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A Tuna Institucional

A Estudantina Universitária de Lisboa (EUL) foi formada em 1992. É uma espécie de supertuna, ou tuna das tunas, integrando elementos de várias faculdades da capital. “Das universidades públicas e privadas e privadas, da medicina à informática, há praticamente elementos de todos os cursos”, diz Luís Jerónimo, “magíster” da EUL, que tem cerca de 30 elementos. A tuna já apareceu na televisão ao lado de Herman José e colaborou recentemente no aniversário público de Amália. Nela, ao contrário de outras tunas, não há praxes de entrada. Para Luís Jerónimo, “é um processo natural”: “As pessoas vão aparecendo, é óbvio que têm que ter determinados requisitos – ser estudante universitário, saber tocar um instrumento e cantar. Depois vão andando connosco, vão aos ensaios. Se virmos que eles entraram bem no estilo das músicas e que tocam razoavelmente, começam a acompanhar-nos como caloiros.”
Alvo de várias críticas, nomeadamente por ter “roubado” elementos a outras tunas, Luís Jerónimo, que foi um dos fundadores da Tuna da Universidade Internacional, uma das que se sentem mais lesadas, defende-se: “Quando há críticas, das duas uma, ou há alguma coisa muito má e muito grave ou há alguma coisa muito boa. Não fomos buscar ninguém à Tuna da Universidade Internacional. Eles vieram de livre vontade. Foi aí que surgiu a ideia da Estudantina. Depois, como este era um projecto que agradava a muitas pessoas, pessoas que já pertenciam a outras tunas, estas juntaram-se por sua vez à Estudantina. Não havia qualquer pretensão de ‘roubar’ seja quem fosse.”
Outra das críticas relaciona-se com a falta do chamado “espírito de tuna” na EUL, encarada como um grupo onde, de facto, em termos artísticos, os seus elementos são excelentes, mas onde a camaradagem é menor e a vida de boémia mais controlada. Em suma, uma tuna mais bem-comportada. “Não aceitamos que digam isso. Até porque, para contradizer essa opinião, posso dizer que estivemos na Páscoa em Paris, durante 15 dias e, além dos espectáculos marcados, aproveitámos para conviver uns com os outros, acertar ideias, discutir projectos, fazer músicas, enfim, mas também um bocado de boémia, de copos, etc.”, replica Luís Jerónimo.
Já com um compacto no mercado, editado pela Vidisco, “Estudantina Universitária de Lisboa” e um segundo em preparação. A EUL é, a par da Tuna da Universidade Internacional e, anteriormente, das tunas de Coimbra e do Orfeão da Universidade do Porto, uma das poucas que tem a sua música gravada. Sem a preocupação de seguir modelos ou a tradição: “Não existe uma verdadeira tradição, porque a tradição implica muitos anos passados sobre uma mesma realidade. A tradição das tunas em Portugal não existe, está a fazer-se agora. Existiram a Estudantina de Coimbra e a Tuna do Orfeão Universitário do Porto, no início do século, mas depois essa tradição apagou-se.”
Uma das ideias avançadas por Luís Jerónimo é a criação de “uma instituição nacional que regulamentasse um bocadinho a realidade das tunas”, no sentido de definir normas e defender a qualidade artística delas.: “Uma tuna não é só juntar 20 ou 30 indivíduos em cima de um palco. O espírito académico, toda a gente fala nele mas pouca cumpre. Há uma rivalidade estúpida entre as várias tunas, não há uma amizade, uma coesão, uma força. A rivalidade tem que pressupor o respeito entre uns e outros e isso não se verifica. Aquilo que cada tuna quer dar a entender é uma coisa, o espírito é a capacidade de ser tuno, de se dar bem, de ir para os copos, sem se embebedar.”
E o “magister” da EUL explica: “Quando as pessoas ouvem falar em tuno, boémia, copos, tudo isto lhes faz confusão e, devido à má imagem criada pelos estudantes nestes últimos anos, nomeadamente nas manifestações ou nas semanas académicas, em que passam nos carros completamente bêbedos, vão para o hospital em estado de coma alcoólico, tudo junto cria na consciência das pessoas que boémia é sinónimo de bebedeira. Não é. A magia dos copos não quer dizer estar ali numa mesa a beber até cair para o lado. Os copos encerram em si toda uma mística muito importante que é o convívio e a amizade.”
Sobre as tunas mistas, Luís Jerónimo tem ideias formadas: “Não faz sentido raparigas estarem a cantar para raparigas ou rapazes para rapazes. É problemático. Uma pessoa quer usar palavrões próprios, às vezes, entre os homens. Com meninas… se bem que as mulheres que fazem parte das tunas tenham, digamos assim, uma personalidade diferente da das outras raparigas estudantes, mais para a frente, também gostam de beber o seu copo. Agora, concordo e acho que é de incrementar a existência de tunas femininas.



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Dez Horas A Jogar Matraquilhos

Vinte e oito elementos formam a Tuna Universitária do Instituto Superior Técnico. Manuel Correia toca pandeireta e é “o principal”, já que na TUIST não se emprega o termo “magister”, de origem espanhola. “Tentamos puxar às tradições portuguesas o mais possível e não imitar os espanhóis. Procuramos investigar o que havia há 50 anos atrás, o que faziam as estudantinas e orfeões da altura.” A data oficial de formação da tuna é 20 de Março de 1993, embora alguns dos seus elementos se tenham reunido há mais tempo. Actuaram na primeira parte do espectáculo recente de Quim Barreiros na Aula Magna de Lisboa. Foram apadrinhados pela Tuna do Liceu de Évora, a única liceal do páis e uma das mais antigas, formada em 1902. “Mantiveram-se até hoje e usam capa e batina.”
Nas intenções do grupo esteve desde o início a vontade de serem diferentes, “não em ser uma bandalheira mas sim uma tuna no verdadeiro sentido”. “Fizemos recolha sobre as características das tunas. Tentamos, além disso, adaptar o nosso reportório aos dias de hoje, embora procurando manter particularidades como as praxes, o traje, etc.” o mais difícil, na formação de uma tuna, diz Mário Fernandes, guitarrista da TUIST, “não é arranjar cem pessoas que toquem bem viola, é arranjar vinte pessoas com uma boa atitude”.
Manuel Correia não concorda com a existência de festivais que, segundo ele, seguem o modelo espanhol, com atribuição, por exemplo, de prémios aos melhores solistas. “Nas nossas tunas não há solistas. Só nas espanholas, que têm uma tradição muito mais forte. As tunas portuguesas copiam-nas. Na TUIST não há solistas.” O “principal” acha igualmente que “é grave haver tunas em que metade do seu reportório é composto por músicas espanholas”. A tuna do Técnico toca apenas temas próprios, embora “com raízes na música popular portuguesa”.
Manuel Correia critica também o facto de algumas tunas se estarem a virar “para o lado comercial, em vez de o fazerem para o mais importante, que é o espírito. O disco, por exemplo, deverá ser uma consequência de vários anos de existência”. “De todos os discos gravados por tunas portuguesas – garante Manuel Correia -, só conheço um em que realmente transparece o espírito académico e a raiz portuguesa, o primeiro da Estudantina de Coimbra. O segundo já é mais comercial, vê-se que foi feito por contrato.”
Torna-se evidente que a TUIST não quer ser, de facto, uma tuna igual às outras. “Ser tuno não é só vestir a capa e a batina. É uma maneira de estar”, diz Mário Fernandes. “O mais importante é, pr exemplo – embora tenhamos todos namoradas -, podermos estar juntos num jantar ou ir para a feira jogar matraquilhos. Chega estarmos lá, sem ser preciso apanhar bebedeiras.”
É fácil entrar para a TUIST? “Não pomos barreiras à entrada de algumas pessoas. Só que, pela especificidade do grupo, só gente com este espírito é que se adapta. Quem não gostar de estar dez horas a jogar matraquilhos… Uma vez no dia 31 de Julho do ano passado, estávamos reunidos e resolvemos que tínhamos que ir passar férias a qualquer lado. Juntámo-nos no dia seguinte em Santa Polónia e apanhámos o primeiro comboio!…
A quem quiser entrar, levamo-lo a um jantar e vemos se alinha nas brincadeiras, para estudarmos a personalidade da pessoa. O ano passado tivemos o caso de alguém que nem sequer sabia tocar. Levámo-lo a jantar, passámos uma noite divertida com ele e pronto entrou logo na tuna. Demos mais importância a esta maneira de estar… É muito mais fácil entrar um rapaz que saiba tocar só o dó e sol mas que tenha o espírito do que um gajo que seja um maestro mas não tenha esse espírito.”
Fazem a apologia de Quim Barreiros: “Pode lá ter todos os defeitos mas ele é de facto um êxito, porque é bem português. Aquilo é Portugal. Damo-nos muito bem com ele.” Mas advertem: “O perigo está em que as pessoas associem as tunas ao Quim Barreiros. Há muitas tunas que entram na onda. Não sabem ter o seu espaço e vão atrás do Quim Barreiros. Entram na fase da brejeirice mas não sabem fazê-lo bem. O Quim Barreiros sabe ser brejeiro. É diferente de ser ordinário e mal-criado.”
A TUIST orgulha-se de ter contribuído para o ressurgimento do espírito académico no Técnico: “Havia uma grande sede. As festas no Técnico, há dez anos, eram no estilo dos marinheiros do Cais do Sodré. Só iam homens e acabava sempre me naifas e facada. Agora têm mil pessoas, o ambiente é outro, e as pessoas vêm de todo o lado para nos ver. Mas ainda há quem nos ache exibicionistas. Por andarmos de capa e batina. A capa e batina são o traje autorizado para os estudantes universitários de Portugal e não são só para o Porto ou Coimbra. Só falta arranjar um concurso público, como aconteceu na Universidade Nova, e escolher um estilista para fazer os fatos, com apresentação na Gare Tejo…”



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Até Ao Outro Dia De Manhã

Da cisão na tuna mista da Faculdade de Ciências e Tecnologia nasceu, em Novembro do ano passado, a TunaMaria, uma das raras tunas femininas existentes em Portugal. Em finais de Abril deram o primeiro espectáculo, num festival de tunas. São 30 e tocam os instrumentos habituais numa tuna: acordeão, bandolins, cavaquinhos, guitarras, pandeiretas, flautas. Sandra Isabel toca acordeão. Ana Teresa, pandeireta.
Começaram por ser recebidas pelas pessoas e pelas tunas masculinas, como elas próprias dizem, “com um pé atrás”. “Até porque as duas tunas femininas mais antigas são pouco conhecidas – diz a Sandra, que desempenha no grupo a função de magister -, a tuna feminina do Orfeão do Porto e outra, da Covilhã.”
Sandra e Ana são ainda muito novas, 21 e 20 anos, respectivamente. Para elas, como para outros elementos da TunaMaria, nem sempre é fácil sair para as noites de boémia. “É difícil, aqui em Lisboa. Normalmente só a seguir a um espectáculo”, observa Sandra. “Há pessoas que moram com os pais, outras na outra banda.” Mas quando se juntam não brincam em serviço: “Somos capazes de estar até ao outro dia de manhã.” O espírito de tuna “foi crescendo”. No que diz respeito a serenatas, a TunaMaria anda a preparar aquilo que é a sua obrigação: “Ainda não fizemos. Mas os rapazes também hão-de gostar. Mas primeiro que tudo é preciso arranjar um reportório para isso.” Um reportório que, nas actuações normais, inclui canções “mexidas”, temas populares, por enquanto sem composições originais.
Praxes vão “passar a ter”. Por serem uma tuna muito recente, não têm ainda caloiras. O traje adoptado é o clássico saia-casaco, com um pormenor extra, o chapéu alentejano, de aba larga. “É o nosso símbolo, o que nos distingue. As pessoas acham piada.” Preferem seguir o modelo português, embora não se importem de tocar músicas espanholas, “até italianas, que são mais difíceis”. De resto, tunas femininas em Espanha, são coisa recente e as que existem “não gozam de muito boa fama”. “É a tal coisa de raparigas bonitas e mal-comportadas” (risos). Na TunaMaria, passa-se por cima dos preconceitos: “Apanhamos bebedeiras se for preciso, como os rapazes.” Mas há um conservadorismo na atitude que nem Sandra nem Ana negam. “Dentro da nossa tuna estabelecemos uma certa altura para a saia. No Porto elas usam abaixo do joelho. Em Coimbra, mais ou menos a meio do joelho. Nós escolhemos acima do joelho.” “Logo acima do joelho”, apressam-se a acrescentar. Mesmo assim “ouvem-se comentários”. Mesmo da parte de outras tunas, “se alguém aparece com uma mini-saia”. “Temos muito cuidado com o comportamento que temos”, diz a magister da TunaMaria, “até mesmo em palco”. É que “enquanto os rapazes podem mandar piadas às raparigas”, às raparigas “não convém” fazê-lo, “por causa da imagem que se dá para fora e porque as pessoas à vezes interpretam isso de maneira errada”. Os copos, esses, não constituem problema, “até dão uma certa alegria quando uma pessoa sobe para o palco. Não ir bêbedo, claro, mas alegre. Uma alegria que pode ser contagiante”.
Problema real são os estudos, que amiúde passam para segundo plano. Há quem “deixe de estudar um bocadinho”, para se entregar às actividades da tuna, como há quem faça o contrário e não esteja disposta a sacrificar os estudos. Quando há um teste, por exemplo. A Ana Teresa, a partir de certa altura, “só via a tuna à frente”. A Sandra afirma que já sacrificou bastante o curso. Os professores não dão qualquer apoio. “Alguns acham giro mas não dão qualquer ajuda. Mesmo da parte da faculdade, que nós representamos, ninguém facilita, por exemplo, no aspecto das faltas. Simplesmente não ligam nenhuma.”
Apesar de tantas dificuldades, a TunaMaria ensaia duas vezes por semana, na Faculdade de Ciências e Tecnologia. Três, quando há espectáculo. Todos os dias, antes do primeiro espectáculo.
Numa coisa a TunaMaria não difere das tunas masculinas. Na admiração por Quim Barreiros. Ao ponto de incluírem no seu reportório “Bacalhau à Portuguesa”. “Por brincadeira. Os espanhóis adoram esta música.” ” A tuna chegou mesmo a fazer uma primeira parte de um espectáculo do popular acordeonista. “Eu, pessoalmente, não gostava dele”, diz Sandra. “Mas depois de conviver com ele, vê-se que há nele uma alegria que contagia. Fala com as pessoas de uma maneira cómica. E as músicas têm imensa piada.”



Anabela Duarte – “Em Público” (dossier | grande entrevista)

pop rock >> quarta-feira >> 20.07.1994
EM PÚBLICO


ANABELA DUARTE *


Como e quando surgiu o canto lírico na sua carreira?
Desde há quatro anos que ando a trabalhar nesta técnica. Há cerca de um mês, fiz a voz soprano no “Requiem” de Verdi. Tenho evoluído musicalmente e procurado desenvolver o meu instrumento, que é a voz. À medida que fui estudando e afinando este instrumento, cheguei imediatamente à conclusão que o campo onde me posso exprimir melhor em termos vocais é o canto lírico. Podia ser o fado, mas em termos de precisão, o canto lírico é entre todos os géneros aquele que tem uma técnica mais sofisticada.

Trata-se então mais de uma ginástica e menos uma vocação?
É uma vocação. Mas não se deve ver as coisas dessa maneira. Canto pop, canto fado, canto lírico, canto árabe, canto não sei quê… O canto é só um e eu tenho essa possibilidade de fazer a diversificação. O meu instrumento é suficientemente maleável e híbrido para poder aplicá-lo a outros cantos sem ficar preso a nenhum em particular.

A sua presença na pop é um assunto definitivamente encerrado?
O que eu faço hoje tem muito a ver com o que fazia nessa altura. Os Mler Ife Dada sempre foram um grupo que no início começou por ser muito ligado a gente que frequentava as Belas-Artes. Era um grupo muito “artístico”, no sentido em que a sua música era inseparável do aspecto cénico. Era arte total. Não no sentido wagneriano, mas pronto, era uma aproximação. No campo lírico é exactamente isso. Se aplicarmos o lírico em termos operáticos.

O contexto não é bem o mesmo…
Há no rock e na pop talvez um lado mais improvisado. Um lado mais rebelde. Na música lírica, tudo isso tem que ser em doses mais restritas. Para já, estamos ligados a uma partitura. Não podemos chegar ali, está lá um sol, e fazemos um lá sustenido.

Quer dizer que hoje privilegia o rigor e a disciplina, em detrimento desse tal outro lado mais rebelde?
Sim, é um processo de disciplina. Mas isso tem o seu lado subversivo. Utilizar essa disciplina para subverter.

O mesmo tipo de subversão que utilizou no fado, em “Lishbuneh”?
Não sei se nesse caso foi bem subverter. O fado, encarei-o de uma maneira diferente. Mas em termos vocais acho que até cantei o fado de forma bastante tradicional. O tradicional é que nessa altura estava fora de moda.

Nos Mler Ife Dada havia também o lado do gozo, de um certo gosto iconoclasta. Ficou-lhe essa faceta de “destruir” o instituído?
A mim o que me dá gozo é surpreender. Não só os outros como a mim própria. Daí começar a experimentar coisas diferentes. O disco de fado foi uma dessas coisas.

O canto lírico é para si ponto final ou ponto de passagem?
Afinar o instrumento desta maneira é como por exemplo um violoncelista que, desde que tenha o instrumento bem aprendido e dominado tecnicamente, tanto pode tocar música clássica como jazz, fado ou seja o que for. O canto lírico em si já tem muita coisa. Por exemplo, “Salomé” – que eu gostaria de fazer – é uma ópera clássica no sentido tradicional do termo. Mas é uma ópera tão empolgante que mesmo dentro do clássico ultrapassa barreiras. O personagem em si, muito ligado à voz. O que vai criar dinamismo, cores e tessituras vocais entusiasmantes.

A sua voz serve melhor certos personagens do que outros?
Sim, sou soprano “stinto”, mais próximo do dramático. O que me dá a possibilidade de fazer os papéis mais de “prima dona”, que exigem uma presença forte em termos vocais e teatrais.

Os Mler Ife Dada, pela sua estética e atitude, davam espectáculo, no sentido em que enfatizavam o lado cénico e visual. Isso acontecia consigo e na maneira como se apresentava ao vivo. Consegue transpor essa característica, de algum exibicionismo, para o canto lírico?
Nunca tinha pensado nisso antes. Cada vez estou mais afastada disso. As entrevistas e as fotografias então eram uma chatice completa. Não sou uma pessoa extrovertida.

Nos Mler Ife Dada exibia-se bastante…
Normalmente é sempre assim [risos]. É o protótipo do artista. Uma faceta a que eu infelizmente não posso escapar. Agora, o canto lírico é muito exibicionista. Qualquer arte é exibicionista, senão não se fazia. Ficava-se em casa a coser meias ou a lavar pratos, ou ia-se para o escritório…

E narcisismo, o desejo de reconhecimento público?
Isso nunca me passou pela cabeça. Aliás nunca fiz bem a distinção entre o ser eu e ser no palco.

Gostaria de fazer teatro?
Nunca fiz, mas já me propuseram umas coisas. Sempre achei que não tinha jeito. O teatro implica uma relação com a palavra dita, discursiva, enquanto a minha relação é cada vez mais com a palavra cantada. Embora haja muitos discursos de teatro que não passam pela palavra. Esses são muito mais interessantes e muito mais próximos do canto lírico.

Sente-se à margem das cantoras ligeiras ou doutras áreas da música portuguesa? Nunca se ouviu falar em qualquer colaboração com algumas delas…
Sou muito individualista. A única com quem poderia fazer coisas interessantes seria a Maria João e só ela. Fazer com mais gente… Isto agora é um bocado chato… Mas o que é que me interessa a mim fazer duetos, que projecto é que eu posso ter com outras cantoras além da Maria João? Não estou a ver… Porque a Maria João é a única que explora a voz de um ponto de vista mesmo vocal. A mesma coisa que eu faço, embora em moldes diferentes. Ela em moldes mais jazzísticos, próximos quase da música contemporânea. Mais ou menos o meu campo… O mesmo não se passa em termos de canção, com a Teresa Salgueiro, ou a Lena d’Água, ou…

Afastou-se então em definitivo da música dita “ligeira”?
Claro. Não me apetece. Mas não tenho nada contra.

Até onde pretende chegar no canto lírico?
O meu interesse é apenas ser cantora. É nisso que estou a apostar. No canto lírico quero ser uma cantora ilimitada. E, nesse sentido, apurar uma técnica que depois se possa aplicar a muitas outras coisas.

Eis o que se pode chamar uma autoconfiança total…
Mas eu sou assim em tudo. Quando há uma coisa que me chateia, abro logo a boca. Sai-me logo o coração pela boca. Qualquer episódio do dia-a-dia, sei lá, um problema qualquer com um taxista ou um padeiro, tenho sempre conseguido resolvê-lo da melhor maneira. Em termos artísticos, é exactamente a mesma coisa. Sou uma pessoa arrojada.

De que modo foi recebida no meio do canto lírico? As outras “divas” aceitaram a sua entrada?
Para já em Portugal, divas não estou a ver nenhuma… Não sei, não as conheço pessoalmente. A partir de agora é que vou saber. Uma coisa é certa: posso perfeitamente fazer carreira no canto lírico. Não é forçoso que o canto lírico seja clássico. É tudo um problema de estruturas. Dos conservatórios, das academias de música. O que cria muito medo nas pessoas. Já percebi isso. Ao nível do canto, ao nível dos instrumentistas, ao nível da música em geral, há um medo das pessoas em se afirmarem. O facto de eu vir de um canto diferente e de me atrever a fazer coisas que elas não fazem cria atritos. Já fiz audições, falei com pessoas, inclusive da Gulbenkian, e há umas certas reticências nas pessoas. Por exemplo, alguém atrever-se a fazer uma “Lady MacBeth” neste país é uma heresia.

Tenciona forçar a entrada nesse meio ou, pelo contrário, manter-se à margem dele?
Uma coisa é a gente querer fazer as coisas, outra é na realidade não as conseguir fazer. Ou porque não temos o instrumento suficiente para isso, ou porque à última hora ficamos a tremer e não conseguimos, ou porque alguém nos faz a cabeça e não se consegue, ou porque temos um acidente e morremos… Se conseguirmos ultrapassar tudo isto, as pessoas terão que reconhecer-nos. As pessoas, quando me vêem, sabem reconhecer as minhas capacidades. Mas antes disso dizem tanto mal que quase nos levam a desistir. Em relação a entrar ou não no meio, o que é que me interessava? Só se fosse para mudar aquilo tudo! Ganhar 300, 400 ou 500 contos, para depois ouvir “você tem de fazer o que a gente quer”?

Que estratégias utiliza então para levar à prática os seus projectos?
Recorro a meios alternativos. Tenho encontrado imensos mecanismos de resistência. Sobretudo porque as pessoas não t~em referências de mim como cantora na área delas. A minha luta é contra o academismo e contra as mentalidades tacanhas. Há em Portugal um provincianismo que corta as pernas às pessoas.

* Ex-vocalista dos Mler Ife Dada. Autora-intérprete de pois a solo. Dedica-se actualmente ao canto lírico e está a preparar um recital de voz e piano (com José Colorado), a apresentar no final do Verão, em que interpretará “Lieder” e excertos de operetas de compositores como Richard Strauss, Offenbach e Lecocq, e peças operáticas de Puccini, Wagner, Verdi e Catalani.

Vários (Amândio Bastos + Manuel Faria + José Mário Branco + Carlos Maria Trindade + Mário Martins) – “Produtores Musicais – Uma Profissão Portuguesa”

pop rock >> quarta-feira >> 22.06.1994
DOSSIER


Produtores Musicais – Uma Profissão Portuguesa

“Não há em Portugal produtores capazes” foi o lugar-comum utilizado durante muitos anos pelos músicos portugueses, dentro daquele outro lugar-comum mais vasto que era a “falta de condições”, para justificarem todo o tipo de deficiências. Os que podiam rumavam então para o estrangeiro, em busca da varinha mágica do produtor milagroso que transformaria o esboço tosco ou a ideia difusa no êxito estrondoso capaz de espantar o mundo. Claro que nem mesmo os produtores lá de fora fazem milagres. Seguia-se inevitavelmente o desencanto e o regresso a casa com mais umas dúzias de pistas e enfeites de estúdio desnecessários debaixo do braço e a frustração de se ter despendido dinheiro inutilmente. Enquanto isso, por cá, os produtores – que, embora poucos, existiam – lutavam contra a incompreensão e a falta de trabalho. Hoje, a situação alterou-se de forma significativa, com os músicos portugueses a solicitarem sem preconceitos os serviços dos produtores nacionais. O sucesso recente, em termos de vendas e aceitação, do projecto Filhos da Madrugada veio definitivamente romper as ideias feitas do passado e confirmar que há em Portugal produtores tão bons ou melhores do que os estrangeiros. Convidámos e colocámos cinco questões a outros tantos produtores, da velha e da nova guarda, no sentido de definirem as suas concepções e estratégias. Eles explicaram como se educa os músicos e a música – como se constrói o som.



1. O produtor é alguém que, desligado do artista, põe em prática as ideias deste ou, pelo contrário, é, em estúdio, um representante dos gostos do público?
AMÂNADIO BASTOS – Não acho que as duas componentes da pergunta sejam incompatíveis. Um produtor, ao liderar um processo de gravação, é obrigado a avaliar o trabalho segundo vários prismas e a “meter-se na pele” do público consumidor, do artista, do editor, dos “media”, etc. Não creio que haja uma fórmula que, aplicada, resulte sempre da mesma amaneira. Parece-me mais correcto pensar nos produtores como pessoas que lideram os processos de gravação de música utilizando formas e técnicas variadas em função das características de cada trabalho.

MANUEL FARIA é músico dos Trovante e produtor de, entre outros, Trovante, Mafalda Veiga, Sérgio Godinho, Vitorino, Piratas do Silêncio, Essa Entente, Carlos Zel e, em colaboração com Tim e João Gil, do projecto “Filhos da Madrugada”. Actualmente, prepara os espectáculos “Fados” de Ricardo Pais e “Filhos da Madrugada”. Dirige um estúdio de som, Play It Again, juntamente com Ricardo Galera.

MANUEL FARIA – Há dois tipos de produtores e de produções. De uma forma geral, o produtor tem como principal objectivo ajudar o artista a desenvolver todo o seu potencial e a passa-lo para o disco. Claro que, ao pôr em prática as ideias dos artistas, simultaneamente acompanha o trabalho de uma forma mais fria e desapaixonada, aproximando-se mais do sentimento do público.
CARLOS MARIA TRINDADE – Existem basicamente três tipos de produtor: o musical, o técnico e o auto-suficiente. O primeiro pode arranjar, compor ou dirigir o intérprete a nível musical. O segundo pode gravar, misturar e desenvolver toda a parte de engenharia envolvida num processo de estúdio. O terceiro acumula as duas funções. Em qualquer dos casos, o produtor deve ter a noção de que está ao serviço de um artista e de que a sua função é basicamente a de maximizar as suas ideias e potencialidades. No caso de o produtor ser delegado por uma companhia editora, pode ter também de escolher reportório e assegurar um mínimo de “viabilização comercial” (ao encontro dos gostos dos vários públicos), a par da gestão de um orçamento.
JOSÉ MÁRIO BRANCO – Se, como diz a pergunta, o produtor está “desligado do artista”, ele não poderá , evidentemente, ser o executor dos gostos ou do projecto estético do artista que propõe; será então um representante dos gostos que a editora pretende promover, que nem sempre serão os gostos do público, mas sim os gostos que a editora quer promover junto do público (como escreveu Bénard da Costa, “os gostos não se discutem, mas educam-se…”).
MÁRIO MARTINS – Pode ser as duas coisas. Exemplo: “O Nazareno” – dei a ideia ao autor Frei Hermano da Câmara, que compôs a música, os textos foram escolhidos por ambos e depois, com o maestro Jorge Machado, trabalhámos laboriosamente na produção continuada em estúdio. Foi a mais complexa produção que fiz. Outro exemplo: um disco de Marco Paulo – escolhi sempre todos os sucessos, ultimamente fazia as versões, trabalhava depois com o músico que orquestrava e com o cantor. Em qualquer dos casos, como produtor ao serviço de uma editora tinha de pensar obviamente no gosto do público a quem os discos são dirigidos.

2. Em que medida os produtores são criadores?
A.B. – Os produtores são criadores na medida em que são os responsáveis pelo elo final da cadeia criativa, ou seja, intervêm na criação do produto final, o fonograma. E se, nalguns casos, essa intervenção se limita à adaptação da obra do artista



JOSÉ MÁRIO BRANCO é o compositor e arranjador de álbuns como “Ser Solidário”, “Margem de Certa Maneira”, “Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades” e “A Noite”. Membro fundador das cooperativas GAC e, anos mais tarde, da UPAV e do Teatro do Mundo. Recentemente entrou para a formação do Grupo de Gaiteiros de Lisboa

A padrões de consumo, noutros a acção do produtor é bem mais profunda e decisiva. O produtor pode ser chamado a intervir em todos os estádios do processo criativo, corrigindo ou propondo alternativas à composição original ou mesmo criando soluções para colmatar eventuais deficiências.
M.F. – Os bons produtores são sempre criadores. Devem ser criativos no acompanhamento aos artistas, na escolha de todas as soluções logísticas, de todas as soluções musicais ainda não resolvidas pelos músicos. Têm, acima de tudo, de saber onde devem para de criar. Nos discos de artistas, ao contrário dos de bandas, o produtor tem muito mais influência no resultado musical.

AMÂNDIO BASTOS é. Desde há dez anos, técnico de estúdio da Valentim de Carvalho, com um ano de interregno em que trabalhou como “free lancer”. Técnico de som e de iluminação. Produtor de, entre outros, Pop Dell’Arte, Rádio Macau, Rui Veloso, Tubarões, Trovante, Waldemar Bastos e Sétima Legião. A sua produção mais recente é a do novo disco dos Pop Dell’Arte, “Sex Symbol”.



C.M.T. – Os produtores são, média geral, criadores, mas quantas vezes isso não sai para o domínio público… Nalguns casos, essa criatividade é defendida por um “royaltie” de produção.
J.M.B. – Tal como nas outras artes que implicam processos de criação colectivos e complexos – a arquitectura, o cinema, a ópera, etc. -, os “producers” (entendidos como produtores autênticos) têm um papel decisivo na configuração do produto final que veicula para público o impulso criador do artista titular. Neste sentido, há inúmeros exemplos que demonstram que o verdadeiro autor da obra, aquele que lhe dá o cunho intrínseco e distintivo, é o produtor – vide os casos de Quincy Jones nos princípios da “soul music” ou George Martin nos primeiros discos dos Beatles.
M.M. – De várias maneiras. Se descobrir, como eu, vários artistas, há que lhes encontrar a “medida” através da escolha doo reportório adequado à voz, às características e à imagem. Esse trabalho, da escolha do reportório, quer seja da autoria do artista em causa, que r de outros autores, é de criatividade. Há casos em que essa escolha marca, define, o estilo futuro e interfere na personalidade interpretativa do cantor. O reportório hoje em dia é fundamental.

3. O que é um disco de produtor? Considera que existe em Portugal algum disco de produtor?
A.B. – Quando o trabalho de produção se torna o aspecto mais marcante da estética de um disco, podemos estar eventualmente perante um disco de produtor. Em Portugal, estou a lembrar-me do primeiro disco dos Diva, chamado “Ecos de Outono”, produzido por Ricardo Camacho, um dos melhores produtores portugueses, com a ajuda do Francis.
M.F. – Pessoalmente, acho que os discos são dos artistas e que o chamado “disco de produtor” é um erro. Neste caso, o produtor sente-se como um realizador de cinema e toma para si a parte do espaço do artista, muitas vezes motivado pela falta de criatividade deste. Quando o artista não tem interesse ou potencial suficiente, o produtor deve declinar o convite. Acho que existirão em Portugal vários exemplos e espero nunca ter feito nenhum.
C.M.T. – Disco de produtor é todo aquele em que a personalidade musical do produtor se sobrepõe à do artista. Em Portugal existem “n”, mas lá fora são mais evidentes. A ZTT impôs-se nesse campo (Frankie Goes To Hollywood, Propaganda, Seal…).
J.M.B. – Um “disco de produtor” é aquele em que a organização logística e estética da obra é fruto de um projecto artístico do próprio produtor, sendo cada uma das suas componentes não-significante por si só. Em Portugal posso citar dois casos: uma obra de José Luís Tinoco publicada em Novembro de 1971, com as vozes de Tonicha, Carlos Mendes e Samuel sobre a poesia de António Gedeão; e a recente colectânea “Filhos da Madrugada” com versões de canções de José Afonso.
M.M. – É um disco em que o produtor escolhe o reportório, trabalha com o músico, dirige as vozes, colabora na mistura. Claro que há, no meu caso citaria o disco de Fafá de Belém, que nunca tinha cantado fado. Foi preciso fazê-la entender o tipo de música e a interpretação adequada.



CARLOS MARIA TRINDADE é antigo teclista dos Heróis do Mar, Co-autor, com Nuno Canavarro, do álbum “Mr. Wollogallu”. Produtor de discos dos Heróis do Mar, Delfins, Golpe de Estado, Xutos & Pontapés, António Variações, Rádio Macau e Paulo Bragança.

4. Como funciona o trabalho de produtor a) quando tem que congregar vários artistas para gravar um disco (p. ex,. “Filhos da Madrugada” e b) quando lhe cabe fazer os arranjos e as orquestrações a partir de vagas linhas melódicas, letras alinhavadas e uma ideia de ritmo apresentada pelos músicos À entrada do estúdio?
A.B. – a) No caso concreto do projecto “Filhos da Madrugada”, existem dois aspectos distintos no plano da produção a considerar; por um lado, o trabalho de conceber, planear e executar as grandes linhas do projecto, tarefa que coube ao trio Manuel Faria, Tim e João Gil. Por outro lado, a produção musical propriamente dita de cada tema, confiada a diferentes produtores indicados pelos grupos [Amândio Bastos produziu o tema dos Sétima Legião]. O primeiro aspecto passa pela definição, em conjunto com a editora, das grandes linhas do projecto, o que implica a tomada de decisões por vezes polémicas, passa pelo planeamento e acerto do calendário das gravações; escolha, em acordo com os grupos, do tema a ser trabalhado; coordenação de todas as datas e aspectos logísticos para as gravações; masterização e finalização do fonograma… Trata-se, como se pode ver, de tarefas que não passam directamente por aspectos de produção musical, mas que se revelam, em especial neste tipo de discos, de importância capital para o sucesso do projecto.
b) Apesar de existirem vários produtores portugueses com capacidade para lidar com esta situação, são bem conhecidas as vantagens do trabalho de pré-produção. Só intencionalmente e com objectivos bem definidos se abdica dessa fase da produção de um disco.
M.F. – a) No caso de “Filhos da Madrugada”, escolhemos os grupos e as canções e, a partir daí, tentámos interferir o mínimo no trabalho dos artistas. Apenas os espicaçámos para serem ousados.
b) Se um produtor esperar até à entrada do estúdio para conhecer as ideias dos músicos, está liquidado. A pré-produção, embora escassa em Portugal, é fundamental para o sucesso do trabalho. Acho muito importante o conhecimento das atmosferas que o músico pretende. De uma forma geral prefiro sempre ajudar os artistas a fazerem os próprios arranjos.
C.M.T. – O produtor, em qualquer dos casos, prepara a entrada em estúdio, num processo que se chama pré-produção. Pode revestir-se de vários aspectos: reuniões executivas para orçamentação do projecto, ensaios de grupo, escolha de reportório, harmonização de melodias, direcção de interpretação, programação em computador ou sequenciador, etc.
J.M.B. – No trabalho do produtor, as duas funções – organização logística e globalização do projecto artístico – estão, sendo distintas, intimamente relacionadas por via das características do processo produtivo. O maior pendor do produtor para uma ou outra destas vertentes dependerá das própria características iniciais do artista e do seu projecto, ou seja, da “matéria-prima” original do disco. O produtor poderá quase limitar-se a ser um organizador de situações complexas a partir de uma ideia inicial (que até pode não ser sua), caso de “Filhos da Madrugada”; ou poderá, perante a fragilidade da matéria-prima ou do artista a produzir, tornar-se totalmente protagónico na criação musical propriamente dita. Uma coisa é certa: se é verdade que “hoje já não se faz música, faz-se som”, a influência do produtor na matéria estética transmitida ao público configura-o cada vez mais como autor da obra ou, pelo menos, co-autor. E atenção: produção, arranjos, orquestrações, direcção artística, tudo isto são funções diferentes que podem, ou não, estar centralizadas num produtor.
M.M. – a) Desse tipo produzi “O Nazareno”, que é uma obra em que cantores, como numa ópera, faziam solos, duetos, tercetos, etc. e tinha além disso actores que diziam as suas partes do texto.
b) Nunca foi o meu caso. Mas, observando esse fenómeno, o que acontece em regra é que os músicos se preocupam com a parte em que são “mestres” e esquecem uma área muito importante que é a da direcção de vozes. Outra tendência dos músicos é a de valorizarem o seu trabalho em detrimento da voz solista. Eu, quando em estúdio, nas misturas, tenho sempre que, diplomaticamente, conciliar as duas vertentes.

5. Quais as vantagens e desvantagens de um produtor ser ou não igualmente músico?
A.B. – Qualquer produtor tem vantagens em dominar a linguagem musical, desde que mantenha o distanciamento necessário e que esse domínio não seja um fim em si, afastando-o da realidade e dos anseios dos criadores e consumidores. Por outro lado, é indispensável a um produtor ter capacidade de organizar, manipular e criar sons musicais, de modo a poder acompanhar o avanço das novas atitudes e formas de expressão musical que estão a marcar este fim de século.
M.F. – Se um produtor for músico, tem a vantagem de poder estabelecer um diálogo mais musical com os artistas. Mas, se se der o caso de ser um “músico falhado”, poderá tentar passar, á custa do artista, ideias que nunca conseguiu gravar. Se for um técnico, por outro lado, poderá querer apenas que o grupo tenha um “bom som”. Pessoalmente, penso que o produtor deve ser alguém tranquilo e consciente de que o disco em que está a trabalhar não é seu.
C.M.T. – A vantagem de um produtor músico é que pode aconselhar e valorizar toda a estética musical inerente ao projecto de gravação. A desvantagem é que se, por exemplo, o produtor for simultaneamente o guitarrista do grupo, ele, por imaturidade, poderá, consciente ou inconscientemente, prejudicar o trabalho de misturas, subindo as suas próprias pistas em detrimento do cantor ou de qualquer outro elemento ( a inevitável “ego trip”…).
J.M.B. – Defendo que “a cada produção, o produtor certo”. Os aspectos determinantes são a competência profissional do produtor – capacidade de (ante)visão global de uma obra e de gestão logística do projecto artístico, e a adequação do seu gosto artístico; e a adequação do seu gosto artístico pessoal e da sua idoneidade ético-estética às características premissiais do projecto artístico. De um modo geral, é evidente que o gosto musical do produtor é determinante, para bem ou para mal do resultado.
M.M. – A resposta está implícita na que dei à pergunta anterior.



MÁRIO MARTINS “descobriu, entre outros, Marco Paulo, António Variações, Paco Bandeira, Lara Li e José da Câmara. Entre inúmeras produções, destaque para o trabalho “O Nazareno”, de Frei Hermano da Câmara, e álbuns de Luís Goes, Fafá de Belém, Nuno da Câmara Pereira, Carlos Paião, Paco Bandeira, José Cid, Júlio Pereira, Jorge Palma, Grupo de Cantares de Manhouce, Alexandra, José da Câmara, Maria Teresa de Noronha e Lucília do Carmo.