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Laurie Anderson – “Bright Red” + Madonna – “” + Joni Mitchell – “Turbulent Indigo” + Liz Phair – “Whip-Smart” (artigo de opinião | crítica conjunta de discos) – “A Margem De Certa Maneira”

pop rock >> quarta-feira >> 26.10.1994


A Margem De Certa Maneira

Cada uma à sua maneira desafia as convenções. Numa América do Norte puritana, onde cada vez mais os valores que se impõem correspondem ao gosto massificador do mercado e dos tops, quatro mulheres prosseguem sem desvios pelo seu próprio caminho. Duas veteranas, Joni Mitchell e Laurie Anderson, uma jovem, Liz Phair, e outra com aquela idade que não tem idade, Madonna, atraem a atenção, provocam controvérsia e põem o dedo nas feridas. De certa forma, poderíamos considera-las as ovelhas negras do rebanho, não fora o caso delas nem sequer fazerem parte do rebanho.
As armas que usam são diferentes. Laurie Anderson utiliza o intelecto. Madonna, o sexo. Liz Phair, o coração. Joni Mitchell, a intimidade com a “vida real”. Contudo, outras combinações são permitidas. Muita coisa as separa, mas uma coisa as une: a crítica À sociedade em que vivem. Mordaz, no caso de Mitchell. Elíptica, no caso de Anderson. Cínica, no caso de Madonna. Com a emoção à flor da pele, no caso de Liz Phair.
Duas cores e duas tonalidades, em dois pares de opostos, podem servir para caracterizar os seus novos trabalhos, editados quase em simultâneo no nosso país. Vermelho néon da distanciação para Laurie Anderson, em oposição ao vermelho sangue da violência epidérmica demonstrada por Liz Phair. Azul nocturno de um olhar atento e cruel, para Joni Mitchell, em oposição ao azul bebé do romantismo reencontrado por Madonna. Joni Mitchell, Laurie Anderson, Liz Phair e Madonna são “marginais” de um modo pessoal e intransmissível. Incomodam, é certo, mas também seduzem.



Laurie Anderson
Bright Red (7)
Warner Bros., distri Warner Music

Como refere a articulista Fietta Jarque no “El Pais”, “Laurie Anderson despojou a voz da sua aura romântica para a converter na nua corda sonora da inteligência”. Como um sensor, uma célula fotoeléctrica, a voz da autora de “O superman” observa e decompõe a realidade sem nela intervir de forma directa. Laurie Anderson é, na essência, uma contadora de histórias. “A forma de arte mais antiga”, como ela própria refere. Histórias parte das quais (bíblicas, como a da arca de Noé, que Laurie Anderson desmonta) são contadas no livro “Stories from the Nerbe Bible”, lançado em simultâneo com o álbum.
Mas Laurie Anderson é uma contadora de histórias diferente. A voz é, no seu caso, o meio e, em última análise, o fim. “A linguagem é um vírus”, não o esqueçamos. Laurie Anderson compara “Bright Red” com o “O Último Ano em Marienbad”, enigmático filme de Alain Resnais, pela idêntica estrutura em forma de diálogo: “ele diz”, “ela responde”. A artista dialoga com o seu duplo masculino, com a sua própria voz descida alguns tons até se transformar na voz de um homem, a “voz da autoridade”. “Bright Red” é um discurso electrónico sobre os temas do amor e da destruição. Ao contrário do anterior “Strange Angels”, que tinha um formato mais clássico, de “álbum pop”, o novo “Bright Red” regressa às premissas minimalistas de “Big Science”, “Mr. Heartbreak” e “Home of the Brave”. Vozes, palavras, ideias recortadas dos sonhos ou do quotidiano (no fundo, apenas outro sonho, ou pesadelo) sobre múltiplas manipulações electrónicas.
Ultrapassado porém o impacte sonoro inicial, “Bright Red” pouco ou nada adianta em relação aos anteriores trabalhos da compositora. Mudou, é certo, o produtor, e neste particular a escolha de Brian Eno, igualmente responsável pelos arranjos e misturas, revelou-se acertada. Mas Eno transformou o invólucro, não a identidade da música. As percussões subiram de tom, o acordeão de Guy Klucevsek, as presenças “duras” de Arto Lindsay, Marc Ribot e Peter Scherer ou a participação vocal de Lou Reed em “In our sleep” trouxeram uma nota de diferença, mas no essencial tudo permanece na mesma, o que acaba de certa forma por desiludir, em comparação com a ousadia do golpe de rins de “Strange Angels”.
Em suma, se na generalidade a produção consegue suscitar interesse, do tipo “deixa adivinhar que som vem a seguir”, isso não chega para disfarçar a monotonia que em certos momentos acompanha a audição de “Bright Red”.



(escrito por Jorge Dias)



Joni Mitchell
Turbulent Indigo (8)

Arista, distri. Warner Music
A violência e os maus tratos físicos nas relações conjugais, a reclusão e os trabalhos forçados impostos às mulheres irlandesas pela igreja católica, no final dos anos 80 (em “The Magdalene laundries”, um tema que parece ter incomodado os Chieftains ao ponto de terem posto a hipótese de recusar tocá-lo num espectáculo com a cantora), o caos, a solidão, o consumismo e a loucura – uma loucura “fria”, em tons do tal azul indigo, ilustrada em paralelo pela série de pinturas da autoria da cantora (entre as quais, o auto-retrato aqui reproduzido, “pastiches” estilo Van Gogh) – da sociedade norte-americana actual são alguns dos temas abordados em “Turbulent Indigo”.
A esta fixação na “vida real” (conceito cada vez mais fluido nas suas significações e implicações) responde a música com a complexidade, ultrapassada que parece estar a fase recente voltada para a pop mais acessível dos álbuns “Wild Things Run Fast”, “Dog Eat Dog” e “Chalk Mark in a Storm” (os dois últimos talvez os seus discos mais fracos de sempre), processo, de resto, encetado no anterior “Night Ride Home”. Complexidade que se manifesta, sobretudo, ao nível das vocalizações, com as suas intricadas progressões harmónicas, numa exigência de diversidade e exploração que, inclusive, se traduziu no número de afinações que a cantora até agora já experimentou na guitarra, nada mais nada menos que cerca de cinquenta.
Não espanta, por isso, que Joni Mitchell tenha, a partir de certa altura, procurado prioritariamente em músicos de jazz acompanhantes à altura. Eis o que de novo acontece em “Turbulent Indigo”, com as presenças dos já habituais Wayne Shorter, saxofonista dos Weather Report, Larry Klein no baixo e Jim Altner na bateria. Mitchell encontrou a liberdade total. Livre de constrangimentos ou do arbítrio de tonalidade e compassos fixos, a voz libertou-se em definitivo deste tipo de espartilhos, parecendo cada vez mais coincidir com os ritmos e entoações próprios da oralidade.
As canções ganharam, assim, uma naturalidade e uma respiração com maior amplitude, a par da sensualidade e do requinte que sempre caracterizaram esta voz que a passagem do tempo agarrou com um manto de seda dourada. Apenas alguns reparos, subjectivos, para “How do you stop”, popularizada por James Brown – a canção mais comercial de “Turbulent Indigo”, que, nesta versão, provavelmente destinada a ser editada em “single”, conta com o apoio vocal de Seal, a ir um pouco contra a corrente do resto do álbum. Porto de Abrigo entre uma turbulência que se pode sentir no azul mais profundo da alma.



Liz Phair
Whip-Smart (9)
Matador, distri. Warner Music

O novo álbum de Liz Phair, depois da estreia “Exile in Guyville”, faz acreditar que a música rock está longe de se poder considerar um filão esgotado e que as mulheres conduzem, de facto, o processo da sua renovação. O que sobressai logo após a primeira audição é que a voz de Liz nem sequer é aquilo que se pode considerar uma grande voz. São, antes, a maneira como canta, a visceralidade e a emoção vulcânica que se desprendem das canções que fazem de “Whip-Smart” um dos grandes discos deste ano. Liz Phair conversa, sussurra, revela-se, num contraste por vezes violento entre a aparente serenidade da voz e a violência magmática do acompanhamento instrumental.
A produção e os arranjos reforçam esta característica, ao valorizarem um som frontal e rude mas atento aos pormenores, de maneira a colocar em evidência a coesão do som do grupo, o mesmo de “Exile in Guyland”, constituído por Brad Wood, Casey Rice e Leroy Bach. É o deitar fora das máscaras e da maquilhagem, com o acento na sofisticação na própria essência da música e não, como tantas vezes acontece, no espalhafato permitido pelo estúdio. A esta notável economia de meios, onde a voz e cada instrumento (as guitarras ora ternas, ora sulfúricas, um sintetizador, um piano coloquial, uma bateria com tanto de poderoso como de transparente) têm a precisão de uma arma que dispara ou de um beijo abrasivo, correspondem a uma riqueza harmónica e uma originalidade que, neste ano, em trabalhos vindos de outras “novas” compositoras-intérpretes, apenas encontram paralelo em “Martinis & Bikinis”, de Sam Phillips, e “Happiness”, de Lisa Germano. Canções como “X-rated man”, “Shane”, “Dogs of LA”, “Jealousy” e “Crater lake” transbordam de ideias e são do topo de onde parece ser possível extrair melodias diferentes de cada acorde.
“Whip-Smart” é ainda um álbum que não esconde o seu amor pelo passado do rock, dos Velvets à “surf-music” (submetida a um trabalho de virulência e corrosão, no título-tema) o que lhe confere uma aura de solidez e classicismo.
Liz Phair limita-se, no fundo, a fazer o mesmo que muitos outros artistas: falar de si própria e da sociedade que a rodeia. A diferença está em que o faz de tal forma e com uma força, intensidade e personalização tais que desde logo colocam “Whip-Smart” no grupo dos álbuns de excepção. Um disco para escutar vezes sem conta. Daqueles que nunca mais se esquecem.

Joni Mitchell – “Night Ride Home”

PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 27 MARÇO 1991 >> Pop Rock >> LP’s


REGRESSO A CASA

JONI MITCHELL
Night Ride Home
LP / MC/ CD, Geffen, distri. BMG


Um caso de classe e distinção. Não fora o lamentável equívoco de “Dog Eat Dog” (acesso tardio de comercialite aguda) e seria caso para se dizer que Joni Mitchell nunca erra. Com “Night Ride Home” não só não erra como acerta em cheio no alvo. Digamos que a cantora canadiana consegue aqui conciliar a extrema simplicidade dos arranjos com as típicas sinuosidades de um estilo vocal e composicional muito próprio, sem perder de vista uma acessibilidade que não envolve qualquer tipo de concessões.
Longe vão os tempos do jazz, de “Mingus” e “Don Juan’s Reckless Brother”, ou os labirintos estruturais de “The Hissing of Summer Lawns”. De regresso à serenidade e ao tom acústico da fase inicial, aquela que culmina em “For the Roses” ou, já num período de transição, em “Court and Spark”. “Night Ride Home” flui com a facilidade das águas de um rio antigo, até ocupar o lugar exato num universo pacientemente construído, a que se acede sem pressas nem escusadas violências. Joni Mitchell nunca foi, de resto, mulher de perder a cabeça. Mas, se, na aparência, se pode falar em termos de “regresso”, “Night Ride Home” representa, além de tudo o mais, a maturidade e a depuração de um estilo.
Se, por vezes, o seu modo de cantar pareceu “difícil” e a sua poesia demasiado obscura, agora a música revela-se com a limpidez e o brilho de um diamante perfeitamente lapidado. Entre o som dos grilos numa noite de Verão, de “Night Ride Home”, e o tom sombrio e despojado de “Two Grey Rooms”, Joni Mitchell vai aos poucos desvelando o seu universo pessoal, através da poesia e de uma voz que, como em “Passion Play”, nos toca como o veludo sobre a pele.
Momentos trágicos, pontuados pelas explosões surdas dos timbalões orquestrais, em “Slouching towards Bethlehem” (baseado no poema “The second coming”, de W. B. Yeats). Momentos mágicos, vividos na Itália de Botticelli e Fellini, trazidos pelos ventos quentes do oboé que a própria Joni toca. Brilho cintilante ainda nas percussões de Alex Acuna, ao longo de todo o disco, e no saxofone de Wayne Shorter, em “Cherokee Lousie” e “Ray’s Dad Cadillac”. Depois do regresso, de novo a partida.

Joni Mitchell – “Cinco Estrelas” (artigo de opinião – “Blue” +”For The Roses” + “The Hissing of Summer Lawns” + “Hejira” + “Mingus”)

12 de Maio 2000


Cinco Estrelas

33 anos de carreira, 20 álbuns de originais, ao longo dos quais a cantora e compositora canadiana tem escrito e reescrito a sua própria história. Um universo pessoal, tão musical como pictórico, sem paralelo na enciclopédia dos grandes singers-songwriters norte-americanos. Desta longa viagem confessional retirámos cinco momentos que são outros tantos álbuns de retratos. Uma escolha assumidamente subjectiva, não consensual, que exclui a fase mais recente da cantora, presente em álbuns como “Turbulent Indigo” ou “Taming the Tiger”, sem dúvida excepcionais. Apenas porque a intenção foi, acima de tudo, chamar a atenção para o barro e para as estrelas de um passado sem o qual nunca se teria iluminado o firmamento de clássicos que Joni Mitchell, no seu mais recente capítulo de uma história de amor interminável, entroniza em “Both Sides Now”.



“Blue” (1971)

“Sentia-me isolada, como uma ave presa na gaiola. Já não conseguia relacionar-me com as pessoas. Uma certa dose de sucesso pode acabar com uma pessoa, de várias maneiras.” Esta dose de sucesso tinha sido granjeada ao longo dos três álbuns precedentes e “Blue” é a resposta aos que queriam ver nela apenas a “hippie” que assinou o hino “Woodstock”. Com “Blue”, Joni Mitchell demarca-se do seu passado recente, abandonando os concertos ao vivo para se auto-analisar num retiro interior do qual resultou este álbum, onde é possível descortinar os claros-escuros de um poço emocional e criativo sem fundo. É ainda a autora que, a propósito deste seu trabalho, afirmou: “Neste período da minha vida não tinha quaisquer defesas, por isso dificilmente se encontrará nas letras ou na voz o mínimo sinal que não corresponda a uma sinceridade absoluta.”

“For the Roses” (1972)

Apesar da ausência voluntária dos palcos, “For the Roses” entra, num ápice, para as listas de vendas dos EUA, feito para o qual muito contribuiu o impacte do single “You turn me on, I’m a radio”, o primeiro “hit” da cantora que chegou a ter alguma divulgação em Portugal. Embora muitos prefiram o tom mais extrovertido do álbum seguinte, “Court & Spark”, é em “For the Roses” que a relação entre a voz e o piano de Joni Mitchell – nalguns casos e pela primeira vez, pontuados por uma orquestra – se tornam cúmplices de mil e uma solidões repartidas. Um crítico do “New York Times” apontava então para ela como uma “cantora e compositora de génio que fazia com que não nos sentíssemos sozinhos”, enquanto ela própria, na canção “Woman of heart and mind”, canta: “Pensas que sou como a tua mãe, ou outra das tuas amantes, ou a tua irmã, ou a rainha dos teus sonhos, ou apenas outra rapariga tonta, quando o amor faz de mim o que quer.”

“The Hissing of Summer Lawns” (1975)

Há quem não morra de amores por este álbum, embora tivesse sido, uma vez mais, um sucesso de vendas. Ao contrário de todas as obras anteriores, autoconfessionais, “The Hissing of Summer Lawns” aponta o bisturi para o exterior, fazendo a dissecação de alguns dos vícios da sociedade americana. É, em simultâneo, em termos musicais, o álbum mais experimental da compositora, carregado de uma electrónica densa que atinge o esplendor em “The jungle line”. Manhattan transformada numa selva tropical, cimento e lianas, atravessada por jibóias e batuques rituais. E o jazz começava a despontar.

“Hejira” (1976)

O oposto do álbum anterior. Se “The Hissing of Summer lawns” era calor e humidade, “Hehjira” é branco e frio, com o desenho rigoroso de uma patinadora no gelo. Conta Joni Mitchell que a maioria das canções foi composta em viagens de automóvel. O título significa “uma viagem empreendida com a finalidade de escapar a um ambiente hostil ou indesejável”. Por vezes algo hermético, de um apuro formal levado à perfeição, “Hehjira” é um exercício de jazz ambiental, cuja arquitectura depende em grande parte do baixo de Jaco Pastorius, da bateria de John Guerin e do vibrafone de Victor Feldman. Neil Young, um velho amigo, toca harmónica como convidado. “Coyote” e “Amelia” são as canções que fogem um pouco a esta paisagem imaginada por uma esteta.

“Mingus” (1979)

Depois da participação, em 1978, no filme de Scorsese, “A Última Valsa”, Charles Mingus, um dos maiores contrabaixistas e compositores da história do jazz, já na fase terminal da sua doença, contactou-a, manifestando-lhe o desejo de trabalharem juntos numa adaptação musical de “Four Quartets”, de T. S. Eliot. Ele escreveria a música, ela editaria os textos. Joni Mitchell declinou a oferta, com a justificação de que seria mais fácil fazer uma síntese da Bíblia. Mingus insistiu, compondo seis composições para a voz da cantora. Acabaram por ser utilizadas apenas quatro, incluindo o “standard” “Goodbye pork pie hat”. Completam o alinhamento de “Mingus” dois originais da cantora e cinco designados rap, que não são mais do que curtíssimos excertos de monólogos de Mingus, um “Parabéns a você” e conversas e sons de circunstância captados durante o funeral do músico. Mingus morreu a 5 de Janeiro de 1979, mas “Mingus”, o álbum, ficou como uma tocante homenagem a esse músico visionário. Contribuíram para a gravação, além de Guerin e Pastorius, Wayne Shorter, Herbie Hancock, Peter Erskine e Don Alias.