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Happy Mondays + Santana – “Happy Mondays E Santana Não Aquecem Nem Arrefecem Alvalade – Só Canções Conhecidas, O Resto Não”

Secção Cultura Segunda-Feira, 29.07.1991


Happy Mondays E Santana Não Aquecem Nem Arrefecem Alvalade
Só Canções Conhecidas, O Resto Não


Desta vez não houve festa em Alvalade. A banda de Manchester chocou em demasia com os preconceitos de um público que vinha para “curtir” boas vibrações. Quanto a Carlos Santana, terá dialogado com a divindade mas a comunicação com a assistência não foi isenta de interferências. Os grandes concertos de estádio vão-se tornando uma rotina



Nos recentes concertos de estádio realizados no nosso país, aqueles que têm permitido ver em acção os “dinossauros excelentíssimos”, há a registar um fenómeno curioso: as pessoas só têm ouvidos para as canções mais conhecidas, os chamados clássicos, aquelas que fizeram (e parece que continuam a fazer) as delícias das gerações mais velhas. Curioso é verificar que jovens de quinze anos, que na altura nem sequer eram nascidos, vibram com essas mesmas canções, como se desde sempre as conhecessem de cor.
Foi assim no concerto de sábado, com a música dos Santana. Para esses jovens e, em geral, para as 15 ou 20 mil pessoas (é difícil conta-las, ninguém para quieto no mesmo sítio) que encheram a ala Norte do estádio de Alvalade, só “Oye como va”, “Black Magic Woman” ou “Samba pa ti” contam. O resto é tudo porcaria para encher. A atitude é reveladora do modo como a mioria dos portugueses ouve música: mais com o coração e a memória do que com os ouvidos e a sensibilidade.
Para evitar, de futuro, comentários, sempre desagradáveis, como os que se ouviram durante parte (na altura dos solos) da actuação dos Santana – “Parem lá com essa merda” – aconselha-se desde já as organizações dos próximos concertos a limitarem o tempo de actuação dos artistas ao estritamente necessário. Por exemplo, já depois de amanhã, no mesmo estádio, Joe Cocker deveria actuar apenas durante cinco minutos, o tempo preciso para cantar “With a little help from my friends” e ficar toda a gente satisfeita.

As Massas Não Compreendem

Os Happy Mondays, que preencheram a primeira parte não tiveram esse problema. Quase ninguém conhece as suas canções e mesmo que alguém conhecesse, Shaun Ryder e os seus pares, tratariam de as tornar irreconhecíveis. Esperava-se que os mais jovens aderissem mas isso não aconteceu. As gerações mais novas já nascem “caretas”. Não gostam de excessos nem de barulho. Muito menos de se sentirem gozadas. Os Happy Mondays adoptaram em palco a postura que lhes é habitual – o desprezo pelo público, a bandalheira controlada, o as “blasé” de quem ali está a fazer um frete. Shaun cantou quase todo o tempo sentado, lata de cerveja em punho, um cigarro permanentemente mal aceso ao canto da boca, compondo a imagem do artista afogado em drogas e dramas existenciais, votado à incompreensão das massas.
De facto, as massas voltaram a não compreender e desde cedo manifestaram essa incompreensão, através de assobiadelas e insultos variados. Um vocalista sentado é falta de respeito. Uma dançarina de mau ar mas boa perna, também, mas vá lá, ainda se suporta. Mais difícil de suportar foi a agressão dos “flashes” dos holofotes apontados, não se sabe bem porquê, aos olhos do público. Se a intenção era alucinar, o melhor que conseguiram foi irritar (sobretudo a vista).
Quanto à massa sonora que passa por música dos Happy Mondays, encarregou-se de despedaçar o resto da paciência dos presentes que não tiveram outro remédio (os que podiam) senão refugiar-se na parte de trás das bancadas. O encore final foi quase anedótico, do género Serafim Saudade – “querem mais? Então está bem”.

Fazer Render O Peixe

Em contrapartida, os Santana foram acolhidos como heróis portadores da mensagem salvadora. Mas foi sol de pouca dura. Todos estavam à espera das tais canções “conhecidas” e Carlos Santana tardou em fazer-lhes a vontade. Era preciso fazer render o peixe, de maneira a esticar a actuação até às três horas previstas, como modo de tapar o buraco deixado em aberto pela desistência de última hora de Salif Keita. Passou uma hora de exercícios jazz-rockeiros até os Santana satisfazerem as ânsias nostálgicas do costume. “Oye como va”, “Black Magic Woman” e “Samba pa ti” (“um dos ‘slows’ mais compridos que havia” – suspirou alguém ao lado, saudoso dos tempos dos convívios de liceu) conseguiram congregar alguns isqueiros acesos e provocar uns tímidos passos de dança.
Embora ninguém duvidasse da competência técnica dos músicos, os mesmos fizeram questão em demonstrá-lo, estendendo-se por solos intermináveis que, a dada altura, começaram a provocar na assistência reacções de impaciência. As pessoas não queriam música, muito menos virtuosismo, queriam melodias para trautear e ritmos para acompanhar com palmas.

Uma Surpresa

Momentos altos, que , foram infelizmente recebidos quase com indiferença: uma fabulosa sequência rítmica pela dupla de percussionistas Raul Rekow e Karl Perazzo, o solo poderoso em estilo locomotiva do baterista Caylord Birch, e evidentemente, todas as notas arrancadas da guitarra por Carlos Santana, sem sombra de dúvida um mestre do instrumento, não chegaram para transformar o concerto em espectáculo de multidões.
Nas iluminações ascéticas de “Peace on Earth”, de John Coltrane, ou na releitura de sinal invertido das pulsações infernais de Jimi Hendrix, sempre a mesma energia que, percebe-se, vem muito de dentro (ou do alto, como o guitarrista prefere dizer), a respiração sublime, a alegria de tocar. Carlos Santana mostrou por que faz da guitarra a sua religião.
Surpreendente foi a aparição inesperada em palco de Pat Metheny, primeiro a solo e depois num curto mas magistral diálogo mantido com Carlos Santana. Instantes de eternidade, suspensos na euforia de duas guitarras em comunicação com Deus. Depois foi levar a coisa até ao fim, com alguns truques pelo meio (a inserção de uma frase melódica reconhecível, a pausa para uma pequena prédica doutrinal, um compasso binário na bateria a puxar as palmas) e a certeza de que, por enquanto, entre nós, a barreira das duas horas é difícil de passar. Nem sequer houve tempo para fogo de artifício.

Luís Cília – “Em Público” (entrevista)

pop rock >> quarta-feira, 22.12.1993


LUÍS CÍLIA *
EM PÚBLICO


Já por diversas ocasiões referiu o medo que sentia em tocar ao vivo. Nunca conseguiu libertar-se dele?
– É uma coisa que nasce com as pessoas. Há aqueles, como eu, que hão-de ter medo sempre. Os franceses chamam-lhe “trac”. O Ferré tinha. No meu caso, é daquelas coisas um bocado inexplicáveis porque, apesar do pavor que tinha do palco – tinha que ir para as salas duas horas antes e não largava a guitarra, a rememorar as canções e a fazer escalas, um estado de nervos enorme -, quando estava no palco e o espectáculo corria bem, claro que sentia um grande prazer. E não era só no palco. Dois dias antes já estava nervoso. Voltei a tocar há pouco tempo, excepcionalmente, para uma homenagem ao cantor catalão Raimon, e andei um mês só a tocar duas coisas. Foi para um espectáculo directo na televisão, num sítio com 19 mil pessoas, em Barcelona, andei em pânico. Entraram o Paco Ibanez, o Pete Seeger, o Ferrat, o Pi de la Serra, o Daniel Viglietti…

Não encara a hipótese de voltar a actuar ao vivo?
– No estado em que está actualmente o aspecto cultural e, sobretudo, dos espectáculos em Portugal, não me dá grande vontade de voltar. Quando regressei de França tentei instituir, em vez de fazer um grande espectáculo por ano, alugar uma sala por dez, quinze dias, como fiz há alguns anos na Comuna e no Teatro Aberto, e no porto, no TEP. O problema é que em Portugal se prepara um espectáculo e depois fazemos em Lisboa, no Porto, talvez em Coimbra, e depois ficamos à espera… É pouco gratificante. Ainda agora, por exemplo, vi os espectáculos do Sérgio no São Luiz, de que gostei muito, e pronto, depois fica-se à espera que alguém convide para um, depois para outro, não há uma continuidade que permita fazer uma “tournée” durante seis meses seguidos, em pequenas cidades. Quando vivia em França, ia por exemplo à Bretanha e fazia quinze espectáculos em salas pequenas. Era o que eu gostaria de fazer cá, nem que fosse para tocar para 30 ou 40 pessoas, mas com continuidade.

Além dessa, houve outras razões que o tenham levado a abandonar os espectáculos ao vivo?
– Não foi uma decisão que tivesse tomado de repente. De facto, de cada vez em que preparava espectáculos, havia músicos que colaboravam e ensaiavam comigo em minha casa durante uns dois meses, os últimos dos quais foram o António Ferro e, se não me engano, o José Peixoto. Claro, não podia pagar-lhes os ensaios. Cada vez era mais angustiante não haver a tal continuidade. Por outro lado, comecei a ter convites para compor, na área do bailado, o que me tomava bastante tempo. Comecei também a dedicar-me à informática. Tive que fazer uma escolha.

Ainda há muita gente que associa o seu nome ao músico de intervenção, sem referir o compositor. Ter-se-á dado o caso de um excessivo envolvimento ao nível partidário, em concreto com o PCP, para quem compôs, aliás, o hino do partido.
– Não posso fazer nada quanto a isso. Em Portugal há uma certa inérciamental demuita gente em tentar conhcer as várias facetas de um compositor. As pessoas ficam à espera que lhes tragam a papinha toda feita e não querm saber o trajecto de um determinado músico. O que eu faço actualmente é composição. Agora se isso chega ou não ao conhecimento das pessoas, ou se leas continuam com a imagem do baladeiro de metralhadora em punho… Sobre o tema do “Avante”, é muito simples: um dia estava em casa e o Carlos Antunes, um funcionário do PC, chegou ao pé de mim e pediu-me para fazer uma música para passar na rádio clandestina, que tivesse um certo impacto. Fiz aquilo em quatro ou cinco dias, acho que não tem valor nenhum, era uma coisa imediatista, entreguei a pauta ao Carlos Antunes e nunca mais pensei nisso, nem sequer sei a letra. Não é que renegue o que faço. Mas o trajecto que essa canção teve depois disso já me ultrapassou.



Consegue situar o ponto de viragem na sua carreira?
Quando estudei composição, estudei os clássicos. Como comecei tarde, utilizei um método um bocado rápido de estudar harmonia e contraponto, o método de Schoenberg. Sempre me interessei pela música clássica. Dos cerca de 4000 discos que possuo, metade são de música clássica. E tive lições de guitarra de jazz com o Carlos Menezes. A canção foi, em França, o meio que tinha para me exprimir naquela altura, de uma forma política e directa.

Não gostaria de retomar o formato de canção? Abandonou de todo a faceta intervencionista, mesmo fazendo-o por outras vias musicais?
– A minha intervenção agora é mais emotiva. Politicamente, neste momento, não tenho nenhuma intervenção. Porque não sou solicitado nesse sentido e porque o quadro político português neste momento deixa-me um bocado indiferente. O que não quer dizer que não me continue a sentir uma pessoa de esquerda.

Essa indiferença não pressupõe um certo comodismo?
– Como dizia o Jô Soares: amancebei-me [risos]. Não, penso que não. Estou desperto para o que se passa e folgo com as vitórias das forças progressistas, sejam elas quais forem. Mas não sou interveniente, não vou cantar a campanhas… Também ninguém me pede!…

Se pedissem, intervinha?
– Depende… Se fosse absolutamente necessário, era capaz de intervir. Por exemplo, achei que era interessante e importante, porque era uma tomada de posição, participar no tal espectáculo de homenagem ao Raimon. Quis mostrar que estava ali e que ainda estou, se for preciso. Mas também acho que em Portugal aquele grande movimento da canção que houve depois do 25 de Abril – um movimento fortíssimo – se diluiu. Cada um foi para o seu lado. É pena.

O seu trabalho actual de composição para bailados não será em parte um refúgio? Por que motivo não voltou a editar discos que não fossem trabalhos de encomenda?
– Talvez haja um bocado de inércia da minha parte. Eu estava habituado a trabalhar com editoras, até um certo momento, em que havia uma relação de absoluta confiança entre o artista e a casa editora. Em França tive um editor, o Moshe Naim, a quem eu pedia para marcar o estúdio e ele só ouvia o disco no fim. Por cá, com a Sassetti, foi o mesmo tipo de relação. Hoje tem que se fazer cassetes e andar a mostrá-las, eu recuso-me a entrar nesse esquema. Tenho material suficiente para gravar um disco e estou a pensar editá-lo, mas sou um bocado preguiçoso nesse aspecto, ter de procurar uma editora.

Para além das tais composições por encomenda, não tem outros objectivos musicais?
– Sinto um especial prazer em fazer esses trabalhos que não implicam qualquer tipo de sacrifício da minha parte. Mas também gostaria de produzir discos, mas lá está outra vez a minha inércia. Fiz a produção do disco da Né Ladeiras, “Corsária”, que depois não tece seguimento. Talvez não ande à procura. E as pessoas talvez continuem com a tal imagem que referia há pouco.
Quando laguém quer fazer um disco, não selembra de mim como produtor, que é uma coisa que eu penso que poderia fazer bem, sem falsas modéstias. Em termos gerais, não vou dizer como o Picasso: “O que procuro, encontro.” Mas enfim, todos os dias trabalho no meu estúdio. Se não são encomendas, é o estudo. Depois, em Portugal, uma pessoa não pode ter grandes ambições.

Em França tinha outro tipo de oportunidades, mas apesar disso voltou…
– Era um exilado, as condições que me obrigaram a esse exílio acabaram, portanto voltei. E quando voltei vi que as coisas, mentalmente, não tinham evoluído muito. Mesmo hoje não creio que haja condições em Portugal para que se possa fazer uma carreira aqyui.

Disse uma vez que foi “a febre dos tops que acabou por dar cabo disto tudo”…
– Havia em Portugal um movimento de canção de textos que era muito respeitado. Mas num determinado momento começou-se a querer entrar nos tops à força. Passou a haver uma concorrência mesmo entre os cantores daquela área. Isso acabou por desvalorizar opróprio movimento. Por mim, sempre tive a consciência de que a música que fazia era minoritária. Nunca pretendi com osmeus discos, ser um rei de vendas. Creio que o grande erro foi as pessoas que estavam na minha situação tentarem entrar naquele esquema. Sei que com a música que fazia nunca poderia ir ao Coliseu. O meu trajecto era outro: tocar em pequenas salas, durante mais tempo. Tentar encontrar um público que me seguisse ao longo dos anos.

* Cantor e compositor, de música de intervenção nos anos 60, às actuais peças electrónicas feitas em computador. Autor do hino do PCP, “Avante camarada”, tem gravados e editados, em Portugal e em França, 18 álbuns, entre os quais “Portugal, Angola – Chants de Lutte”, três volumes de genérico “La Poésie Portugaise”, “Contra a Ideia de Violência, a Violência da Ideia”, “Memória”, “Transparências”, “O Peso da Sombra” (sobre poemas de Eugénio de Andrrade), “Cancioneiro” (com temas tradicionais), “Sinais de Sena” (sobre poemas de Jorge de Sena), “Penumbra” (idem, de David Mourão Ferreira) e “A Regra do Fogo”. Entre as encomendas contam-se música para peças de Strindberg, Pasolini, Agustina Bessa-Luís e Marguerite Yourcenar, e coreografias de bailado de José Seabra, Rui Nunes, Paulo Ribeiro, Rui Horta e Clara Andermat. Trabalha actualmente numa peça a levar à cena pelo Centro Dramático de Évora, da autoria de Valle Inclam, com encenação do espanhol Pedro Alvarez Ossorio.

António Ferro – “EM PÚBLICO” (entrevista | perfil)

pop rock >> quarta-feira, 08.12.1993
EM PÚBLICO


ANTÓNIO FERRO *


Depois de “Crepúsculo do Vinho”, com o quinteto KAF, fusão bem sucedida do jazz com temas populares portugueses, o que se segue?
Já está gravado e sairá em Dezembro um disco meu com o violinista chinês Wong On Yuen. Chama-se “Sinais de Yuanjo” (“yuanjo”, pássaro fabuloso da China). Estive em Macau em Abril deste ano a gravar com um grupo macaense e, a partir daí, contactei o Wong On Yuen. Trouxe alguns cancioneiros de música chinesa, documentação sobre alguns poetas chineses e foi daí que comecei a fazer este trabalho. É uma ligação entre a música portuguesa e a música chinesa. Tem temas meus, temas tradicionais portugueses e dois temas tradicionais chineses. O que dá título ao álbum é de verdadeira fusão: começa por um tema tradicional chinês, passa para o “Gungunhana”, que é um tema tradicional do Minho, depois para uns “lhaços” (música que acompanha os pauliteiros do Douro) e termina novamente num tema chinês.



De onde lhe vem esse interesse continuado pela música tradicional, de certa forma estranho num músico conotado com o jazz?
Este interesse vem de todo o meu trabalho anterior. Comecei a tocar nos Go Graal Blues Band. Depois da tropa estive ligado aos cantores chamados na altura “de intervenção”, Luís Cília, Janita Salomé, Vitorino, Carlos Mendes, José Mário Branco, uma série de gente que, de alguam forma, estava perto desse género musical. Estive também em certa parte ligado ao GAC, que foi um viveiro de músicos. Todas essas inas partiram daí.

Mas o seu objectivo musical último é mesmo essa fusão entre o jazz e a música tradicional?
O que eu pretendo não é bem isso. Por exemplo, no novo disco, a ligação entre as músicas tradicionais portuguesa e chinesa não passa pelo jazz. Ou tem a ver apenas pela improvisação, embora esta não seja exclusiva do jazz. Existe até na música antiga. Este é o disco que eu precisava de fazer. O segundo disco é sempre o mais difícil e houve certas coisas do primeiro que ficaram por fazer. No primeiro disco, [“Crepúsculo do Vinho”] dei uma imagem minha mais em termos de arranjos e agora dou mais a imagem do instrumentista, de baixista. Embora também os arranjos tenham sido todos escritos por mim. E aquilo que faço no baixo tem, no fim de contas, a ver com um espírito, uma forma muito especial de encarar o instrumento. É evidente que há uma série de influências de compositores como o Charles Mingus, o Jaco Pastorius, o próprio Dave Holland.

Considera-se ou não, afinal, um músico de jazz?
Situo-me como um músico que tem influências do jazz, mas não me considero apenas um músico de jazz. Até porque, dentro de uma linguagem jazzística propriamente dita, o “be-bop”, por exemplo, não é um estilo em que me sinta muito à vontade. Hoje em dia já há aí muita gente a tocar muito bem e pensoq eu dentro do jazz há um género com o qual estou perfeitamente à vontade que são os “blues”. Isso sim, se me falarem em “blues”, posso tocá-los lá fora com quem quiser.

De onde lhe veio esse interesse pelos “blues”?
É um interesse que já vem de muito longe. E depois tive a sorte de conhecer e de fazer parte dos Go Graal Blues Band, onde gravei o primeiro disco de “blues” feito em Portugal, em 1978, penso eu. Comecei logo num grupo que já era conhecido, fizemos as primeiras partes de uma série de músicos estrangeiros. Passei logo de uma pessoa que gostava de tocar baixo e que fazia coisinhas para o palco de Cascais, cheio de gente, apanhei logo um impacto muito grande. Estive também com o Rui Veloso, no Festival de Jazz de Cascais, e aí veio um bocado a comprovar-se essa ligação aos “blues”. Não me estou a ver de fatinho e gravata a tocar um tema de “be-bop”…

Essa não arrumação num estilo bem demarcado provoca-lhe algumas dificuldades em termos de carreira?
Não, porque normalmente as pessoas ligam-me sempre ao jazz. De resto até me traz vantagens. O facto de eu ter tocado com músicos muito diferentes traz-me várias vivências. Estive com o Luís Cília, que talvez seja um dos músicos que mais respeito, mas estive também com o Fernando Pereira, que é um imitador e com quem fazia 27, 28 espectáculos por mês. Isto quer dizer alguma coisa. São duas pessoas completamente diferentes, para dois públicos completamente diferentes, mas se calhar a riqueza que tirei dos dois trabalhos foi muito importante. Com o Fernando Pereira, era um trabalho de fazer arranjos e de tocar a acompanhar as sessões que ele fazia. Isso permitiu-me ter um contacto directo com o país que foi muito benéfico. É evidente que essa música não tinha muito a ver com a minha linha de acção. Também é preciso dizer que foi numa altura da minha vida em que precisava de ganhar umas massas… Sem desprezo nenhum, atenção. Na cultura, há uma coisa um tanto ou quanto ridícula. Se estás no BPA e passas amahã para o Barclays Bank e dizes “Olha, agora estou a ganhar mais 50 contos”, toda a gente diz “Eh pá, fizeste bem!”. Agora, se estás num sítio e passa a cantar com um cantor e ganhas mais, dizem que já te vendeste. Na cultura é assim: ou as pessoas morrem de fome ou, então, nunca se sabe muito bem como é que vivem, onde é que arranjam dinheiro para viver.

Na altura em que saiu “Crepúsculo do Vinho” houve quem o criticasse por ter escolhido temas demasiado popularuchos, em vez de fazer uma recolha mais profunda no cancioneiro tradicional. Fê-lo por facilidade, por opção ou por humor?
Foi propositado. Pelo seguinte: esta experiência da música tradicional com o jazz não é a primeira vez que acontece. Há um músico que é um pouco esquecido, o José Eduardo, contrabaixista, que foi das primeiras pessoas que eu me lembro de ter feito essa ligação. Lembro-me de assistir a concertos dele em que utilizava gaitas de amolador. Mas o facto de ter começadopelas coisas mais popularuchas explica-se porque, na altura nenhum dos músicos que trabalhavam comigo percebi amuito bem o que é que se estava a passar em relação à música portuguesa. Havia, de certa forma, que educa-los na música portuguesa. Além de que, da parte do público, como aconteceu por exemplo num concerto às três da tarde antes de um discurso do Cunhal, as pessoas por vezes só captam o tema, a melodia principal. Se eu tocar o “Fado Vitória” ou o “Povo que lavas no rio”, as pessoas reconhecem os temas, mas a partir daí, os solos, já não percebem nada. O que eu quis foi então chamar a atenção das pessoas não por uma questão de comercialização, mas para elas verem que já ouviram muitas versões daquelas músicas mas se calhar nunca da nossa maneira.
Se no segundo disco continuasse no mesmo caminho, isso ái já não. Uma coisa que acontece no novo trabalho, com o Wong On Yuen, é que se calhar só alguns entendidos é que vão perceber que há lá melodias portuguesas. Também fiquei um bocado cheio daquela quantidade de grupos que apareceram com a mulher do que tocava guitarra a tocar bombo… Às vezes dava uma imagem da música tradicional um bocado de “coitadinhos”. Da parte de alguns grupos de música tradicional há muito a tendência de se fazer a recolha o mais fielmente possível. O que traz alguns problemas. Uma vez falei com um senhor do Alentejo que me disse que tinha lá ido um grupo desses fazer uma recolha e não se tinham a percebido de que os músicos locais se tinham enganado. O senhor estranhava que não tivessem reparado que eles se tinham enganado. Criaram uma música tão fiel que taé tem um engano e tudo…

* Compositor, arranjador e baixista do quinteto KAF. Actual responsável na zona norte do projecto “multimédia” de informação e publicidade M-24. Fez parte dos Go Graal Blues Band e tocou, entre outros, com Luís Cília, José Mário Branco, Rui Veloso e Vitorino. É director artístico do festival Guimarães-Jazz que decorreu nessa cidade desde o dia 20 até ao dia 27 do mês passado, onde actuou com a nova formação do KAF no passado dia 22.