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Manuel Rocha – “EM PÚBLICO” (entrevista | artigo de fundo | dossier | portugal)

pop rock >> quarta-feira >> 22.06.1994
EM PÚBLICO


MANUEL ROCHA *


Qual foi o seu percurso como músico?
Comecei a estudar violino em Coimbra, como todos os miúdos, em escolas particulares. Mais tarde, entrei na Brigada, era ainda pequenito, tinha 14 anos. Estive aí até aos 20 anos, altura em que consegui uma bolsa na União Soviética para uma escola de ensino de violino. Estive em Moscovo seis anos, entre 1982 e 1988, a estudar pedagogia do violino. Após esse período, ainda tentei entrar numa orquestra mas acabei por ficar em Coimbra, no Conservatório de Música. Entretanto, reencontrei-me com a malta da Brigada e fiquei por lá, onde estou há 18 anos.

Enquanto violinista de formação clássica, como se processou a sua aproximação às técnicas de execução tradicionais?
De início, tocava violino de ouvido, na Brigada. Mas não existe um grande reportório de música para violino em Portugal. Não é como na Irlanda ou na Inglaterra. As coisas vão-se apanhando. Aconteceu-me um episódio engraçado: na Brigada, como na música tradicional portuguesa em geral, não existe uma grande exigência ao nível da técnica e da sonoridade. A tradição oral é, em si mesma, especializada. Um homem que é um bom ponto num cantar alentejano nunca será capaz de cantar provavelmente uma daquelas cantigas de ritmos arrevezados de Trás-os-Montes. Em Portugal, existe sobretudo uma tradição do canto. E de gaiteiros. Há tocadores de gaita-de-foles que têm a chamada “onda” no seu instrumento. No último disco que saiu de recolhas de Giacometti, há uma música em violino que eu ando a tirar, mas é difícil, porque o homem consegue, de facto, ao nível da frase musical, certos artifícios que eu não consigo tirar. Tenho uma escola muito mais clássica, enquanto a técnica popular é empírica e muito mais ornamentada. Aquilo que ele não consegue ir buscar à riqueza do timbre vai buscar ao ornamento.

Ainda faz sentido falar, hoje, no chamado trabalho de recolha?
Esta história dos grupos de recolha é uma mentirinha. Mesmo em relação à Brigada, alguns elementos do grupo fizeram realmente algum trabalho de recolha no início da formação – integrados, muitas vezes, em jornadas de trabalho com o Giacometti. O que se fez daí para a frente foi, sobretudo, ir buscar aos arquivos do Giacometti espécimes que nos pareciam interessantes. Hoje, vai-se buscar material aos cancioneiros, a pautas escritas, o que retira alguma autenticidade à recolha. Por exemplo, o caso do violino que referi há pouco: um tipo ler aquilo na pauta deve ser diabólico. E não lhe agarra a onda.

Em termos gerais, como se processa a sua relação com a música tradicional?
Tenho sobretudo interesse pela música tradicional, naquilo que esta é em termos de base de um universo sonoro a que nós pertencemos. Sou também um curioso em relação à música tradicional de outros países. Há outra questão: um músico de escola, normalmente, tem alguma dificuldade em improvisar. Na música tradicional, uma pessoa aprende a funcionar com os tons, a improvisar. Embora um improviso nunca muito arrojado do ponto de vista temático ou harmónico. Isso já vem depois com os músicos de jazz. É interessante verificar como um músico de outra área, como o Júlio Pereira, é dos melhores executantes de instrumentos tradicionais em Portugal. No nosso país, falta sobretudo escola – um problema que nunca foi equacionado em Portugal. Vemos os chamados grupos de raiz tradicional a utilizarem todos os instrumentos possíveis, acabando por agregar bateristas e baixistas, mas o que eles não fazem, de facto – e deveriam fazer -, era pegar em músicos que fossem capazes de dominar os instrumentos tradicionais. Quando nós, Brigada, vamos a Inglaterra tocar nos festivais de música tradicional, as pessoas gostam sobretudo é das músicas que estão mais agarradas à nossa raiz, não daquelas em que nós mostramos algum arrojo no domínio, por exemplo, de uma guitarra. Eles querem ouvir é uma braguesa bem tocada, guitarras têm eles lá com fartura.

O que falta, nesta área, aos músicos portugueses?
Existe pouco profissionalismo no desempenho do músico: falta de ensaios mas também falta de escola. Pode encontrar-se, em Portugal, bons guitarristas, bons baixistas, bons bateristas, mas não se encontra bons braguesistas, grandes tocadores de gaita-de-foles, a sanfona só agora reapareceu. Deveria ser feita uma aposta na formação em escola, em que se integrasse o músico na técnica do instrumento e numa noção da música em geral, para que pudesse evoluir. Já lá vai o tempo em que funcionávamos na base da relação tónica/dominante. Considerava-se a música portuguesa aquilo da concertina para dentro e para fora. Não é. A música portuguesa é predominantemente modal. É muito difícil, hoje, abordar-se a música tradicional portuguesa sem essa parte do modalismo. E, para isso, é preciso conhecer harmonia. Aliás, estou agora a participar na gravação de um novo disco da Né Ladeiras, sobre música de Trás-os-Montes, em que a maior parte dos músicos é de jazz. É notável, ao nível das soluções harmónicas, aquilo que se tem arranjado. Músicos que nunca tiveram qualquer relação com a música tradicional acabam por achar nela um campo de trabalho onde é possível ir mais ao fundo.

Não havendo escolas, no meio de tantas limitações, como consegue evoluir como músico?
O facto de dar aulas acaba por ensinar muito. Ter que resolver problemas técnicos e musicais, e debruçar-se sobre obras de diversas maneiras faz desenvolver a própria escola pessoal. Por outro lado, o reportório clássico oferece pistas brutais no campo da música tradicional. O Villa-Lobos era, se não me engano, quem dizia que o Bach era o músico que acabou por centrar na sua música a música dos povos do mundo. E vou também evoluindo através daquilo que vou ouvindo.

Ouvindo o quê?
Por exemplo, um catálogo interessantíssimo, que é o da ECM, os discos da Silex; muita chamada música clássica, por causa da minha profissão; e, claro, música étnica, que hoje está na moda. Em Moscovo, habituei-me a ouvir coisas de muitos lados, sobretudo da América Latina e da Ásia, música vietnamita, coreana, chinesa. Havia coisas curiosas. Por exemplo, os vietnamitas eram tipos com uma dificuldade tremenda para perceber a tal questão da dominante/tónica, por que é que uma dominante ia para a tónica. O que se explica, porque o sistema musical deles não tem nada a ver com o sistema ocidental. Isto abriu-me uma janela. A nossa música não é “a verdade” mas apenas um caminho sonoro.

Em relação aos violinistas, a escola irlandesa poderá ensinar alguma coisa aos músicos portugueses?
Penso que se pode aprender. Se nós copiarmos os “standards” dos irlandeses, acabamos por ganhar muito em rapidez, por exemplo. Em termos de desenvencilhamento melódico, eles arranjam soluções extremamente interessantes, em termos inclusivamente de manejo das escalas.

Será, então, mais uma questão de “ginástica”, não é assim, e nunca uma cópia da música em si?
Sim, todos os grupos da música portuguesa, incluindo a Brigada, passaram pela fase da celtização. Penso que a celtização é uma coisa tão má como a moda dos ranchos folclóricos, do sol-e-dó. Ao fim e ao cabo, é importar algo que exerce sobre nós um certo fascínio e transportá-lo mecanicamente para a nossa música. Isto decorre de uma certa falta de ideias dos músicos portugueses – falta de ideias que, por sua vez, decorre de um baixo profissionalismo do seu desempenho. Um homem, um músico, só pode criar quando tem a cabeça cheia de informação. Há músicos extremamente mal formados na música portuguesa, alguns deles, inclusivamente, não sabem ler música, o que, às vezes, chega a ser dito com certo orgulho. Um músico popular pode não saber ler mas um músico da cidade e da sua arena musical tem que saber ler – ler e estudar. Já não se compreende que haja músicos à molhada a fazerem todos a mesma coisa. E isso faz-se. Na Brigada, também se faz. Quando se fica amarrado a fazer algo cinzentinho, para sair limpinho, isso não aponta caminho nenhum. É por isso que, nos discos de música tradicional que chagam dos países em que está mais desenvolvida, se encontra músicos com recursos brutais. O que encanta nesses discos é a manipulação, o desempenho.

Enquanto professor de violino, procura despertar nos seus alunos o interesse pela música tradicional?
Utilizo, nas aulas, alguns temas tradicionais portugueses, infantis, por exemplo. Os alunos mais novos, que movimentam ainda muito debilmente os dedos, podem tocar essas músicas. Utilizo também algum reportório estrangeiro. Trouxe, há pouco tempo, livros de Inglaterra, com escalas e harpejos, formas simples de tocar que são para os alunos extremamente estimulantes. Eles sentem-se logo a fazer música, até porque o seu universo sonoro inclui esses tipos de música, a irlandesa e a portuguesa. Toda a escola devia fazer isso e não faz.

* Violinista da Brigada Victor Jara e músico convidado dos Realejo. Professor de violino no Conservatório de Música de Coimbra. Encontra actualmente a gravar, com Né Ladeiras, um álbum desta cantora centrado na música tradicional de Trás-os-Montes.

Júlio Pereira – “Em Público” (entrevista | biografia)

pop rock >> quarta-feira >> 01.06.1994

EM PÚBLICO


JÚLIO PEREIRA



Nos seus discos, está sobretudo patente a sua faceta de compositor e arranjador, enquanto os espectáculos ao vivo o mostram, acima de tudo, como intérprete. Por que razão nunca gravou um disco ao vivo?
Imaginemos que faço um disco baseado num instrumento, como o cavaquinho, que é acompanhado por vários instrumentos. Isso representa que, se eu quisesse tocar este ou aquele tema ao vivo, teria, ou quereria ter, esses instrumentos que achei por bem, por motivos estéticos, no palco. Mas, depois, põe-se a velha interrogação: quem é que tem escola de música popular, sendo profissional, que me acompanhe neste ou naquele tema? Ao longo destes anos, vivi sempre uma dificuldade. Baseio-me num determinado tipo de música que parte de referências étnicas; depois, vou aprender a tocar este ou aquele instrumento, faço as combinações entre eles, os arranjos, etc. Quando chega a altura de concretizar isto em termos reais, ou seja, em termos humanos, chego à conclusão de que não há pessoas que façam, que toquem com aquela ironia com que eu toquei determinado instrumento em determinado disco.

Mas por que é que os espectáculos têm que ser uma reprodução dos discos? Não consegue separar as duas coisas?
Acabam por ser versões dos temas que utilizo em disco, vamos sempre dar ao mesmo ponto. Eu só posso tocar bem se estiver acompanhado da mesma maneira que foi composta e arranjada no disco.

Quer dizer que tocaria ainda melhor ao vivo se tivesse acompanhantes à altura?
É evidente. Ao longo dos anos, tenho tentado isso. Por exemplo, neste momento, a parelha que faço nas cordas com o Zé Carrapa é algo que eu sei que vai resultar em outras coisas no futuro. É um fulano que, por acaso, até é da minha geração, que toca muito bem cordas e que se está a colar cada vez mais À maneira como eu faço música.

Não haverá, nessa posição, em que são sempre os outros músicos a terem de ir ter consigo, uma certa dose de egocentrismo?
Não acredito em soluções de compromisso. Já fui acompanhante de muitos músicos – uma coisa que eu gosto sempre de ser – e, quando vou acompanhar alguém, tenho que compreender a maneira como é o outro e a sua música. Quem quiser tocar comigo tem que entender a minha.

Um dos aspectos já conhecidos do seu próximo álbum é que, pela primeira vez na sua discografia, será totalmente acústico. Que motivos levaram a esta mudança?
Não sei. O prazer, talvez… Mas é óbvio que o espectáculo do S. Luiz, no ano passado, era já um passo que prenunciava esta mudança…

Em álbuns anteriores, deu ênfase a determinados instrumentos: o cavaquinho, a braguesa, o bandolim. Vai continuar a ser assim?
Não, isso não acontece neste disco. Não quis estar ligado a instrumento nenhum. Foram os instrumentos que me apeteceu tocar e ponto final.

Esse seu interesse, em álbuns anteriores, em valorizar determinados instrumentos prende-se com alguma intenção didáctica?
Não exactamente. No “Cavaquinho”, foi por causa de um arranjo para o Zeca, num tema, segundo creio, chamado “O Cabral fugiu para Espanha”. Era necessária a sonoridade de um cavaquinho e aprendi com o Pedro Caldeira Cabral; mais tarde, com os tocadores populares do Minho. Com “Braguesa”, foi que, quando estava a fazer o próprio “Cavaquinho”, ao ir lá acima, a Braga, conheci um construtor, tomei contacto com as braguesas e comecei a achar piada a este instrumento. Mal acabei o “Cavaquinho”, peguei na braguesa. A história do bandolim é mais conhecida, pois toco-o desde miúdo, bem como a guitarra, nos tempos em que fui músico de rock.

Curiosamente a guitarra nunca foi muito utilizada nos seus discos…
No novo disco, há uma série de temas com guitarra – um pouco por mero acaso. O dono de uma loja de música teve a gentileza de me oferecer uma guitarra, daquelas hiperboas. Achei piada a ter uma guitarra nova e acabei por compor nela alguns temas.

Normalmente todos os seus discos obedecem a um conceito. O novo disco também?
A ideia do novo disco é o som. O som inerente a cada instrumento que toco. Não o som de uma técnica específica, mas o som que cada um deles pode oferecer. Por exemplo, há um tema que fiz na guitarra onde senti a necessidade de um ritmo. Experimentei primeiro com duas folhas de papel esfregadas na mão, mas não gostei. De repente, lembrei-me de fazer esse ritmo esfregando longitudinalmente nas cordas. Saiu um som como nunca tinha ouvido. Este disco resulta muito deste tipo de procura.

Não existe o perigo de ficar demasiado dependente dos instrumentos? Dá ideia que é sempre o instrumento a ditar leis ao intérprete e não o contrário…
Eis uma maneira de explicar por que é que este disco é diferente dos anteriores. “Cavaquinho”, “Braguesa” e “O Meu Bandolim” foram feitos, de facto, dessa maneira, ou seja, fui à procura do som deles através das técnicas tradicionais ou do que quer que seja – e, neste disco, fiz ao contrário. Não vai haver referências directas à música tradicional daqui ou dali, dadas por este ou por aquele instrumento. Um afastamento que julgo ser importante. É como em alguns pintores: todos aqueles que começam baseados numa referência directa a algo, à medida que o tempo passa, vão-se inevitavelmente afastando do ponto de origem, ou seja, naquilo em que se basearam para começar a pintar. Enquanto, nos meus discos anteriores, há uma teimosia minha, com um certo ar didáctico, assumo, neste disco estive-me marimbando para isso.

Pode particularizar os termos desse lado didáctico?
A curiosidade em relação aos instrumentos que toco levou-me a ler livros que nunca tinha lido, a ir a bibliotecas onde nunca tinha entrado, a falar com musicólogos e etnólogos com quem nunca tinha falado. Foram experiências. Ao gravar um disco com um determinado instrumento, é evidente que quero lá meter estas experiências. Não quero, com isto, dizer que sou musicólogo… Sou simplesmente um músico curioso.

Como encara a utilização do cavaquinho na quase totalidade dos grupos de música de raiz tradicional?
Vivemos no país em que vivemos. As pessoas tocam da maneira que sabem e aprendem. Chega-se a uma aldeia qualquer e está um fulano a tocar mal um instrumento. O que é que se lhe vai dizer? Ele toca aquilo que lhe ensinaram. Temos que criticar o sistema todo, um país que ainda não tem uma escola metodológica ligada à educação no que toca à aprendizagem da música. Todos nós aprendemos e, de repente, temos vinte e um anos, somos maiores e vacinados, e ainda desconhecemos o país, a nossa música, os instrumentos, desconhecemos, em suma, toda a interligação possível entre todas estas coisas.

O seu estatuto de multi-instrumentista aliado a alguma da sua música fazem de si uma espécie de Mike Oldfield português…
Já me chamaram isso, em tempos. Hoje, é ridículo, até porque o Mike Oldfield se perdeu em termos musicais. Mas somos da mesma geração e o Mike Oldfield tem uma coisa idêntica a mim, ou vice-versa, que é termos começado no rock e termos afinidades com a música tradicional dos nossos países. A verdade é que el, como o Alan Stivell, está a seguir por um caminho que já não se sabe muito bem qual é e eu não quero seguir por esse caminho.

Há alguma continuidade, um fio condutor, na sua obra?
Há uma coisa em comum e de terrivelmente teimosa: a procura de coisas que estão inequivocamente ligadas a referências que têm a ver com o nosso passado e, a partir delas, tentar criar atmosferas. Com ou sem electrónica.

Mantém alguma ligação com o campo?
Sou terrivelmente urbano mas tenho necessidade do campo. Saio constantemente de Lisboa, não suporto viver o ano inteiro em Lisboa. De há doze anos a esta parte, vou com frequência a Braga.

A Galiza tem influência na sua música?
Não sinto influência em termos musicais, mas sinto uma grande influência em termos humanos.

Consideram-no lá quase um herói…
É… e há programas de rádio com indicativos meus. Não sei explicar mas a Galiza, deixemo-nos de coisas, é uma região específica; para mim, já nem sequer é Espanha e tem sempre mostrado uma grande e impressionante afinidade connosco. Houve, inclusive, um grande número de espectáculos que fiz lá com o Fausto e com o Zeca – a quem fizeram, de resto, posteriormente, uma série de homenagens.

Por falar em José Afonso, com quem privou e tocou durante muito tempo: não acha estranho não o terem convidado para participar no disco “Filhos da Madrugada”?
Achei estranho, de facto. Foi-me explicado, não por Manuel Faria, que já não vejo há anos, que era um disco só de grupos… É um critério que não faz nenhum sentido.

* Compositor, arranjador e multi-instrumentista. Recuperou e divulgou instrumentos de corda portugueses, como o cavaquinho e a viola braguesa, em álbuns que lhes foram dedicados. Acabou de realizar uma digressão pela Áustria e prepara o lançamento, em Setembro ou Outubro, de um novo álbum de música exclusivamente acústica, com as colaborações das cantoras Maria João e Filipa Pais.

Amélia Muge – “Em Público” (entrevista)

pop rock >> quarta-feira >> 26.01.1994


AMÉLIA MUGE *
EM PÚBLICO



Aguarda-se com grande expectativa o seu próximo álbum. José Martins vai, como no anterior, tomar as rédeas do poder ou haverá, desta vez, maior controlo da sua parte?
Nunca tenho a sensação de que estou a dirigir as operações. Até mesmo quando componho, sinto sempre que há interferências, em concreto dos próprios materiais que estão em jogo. São eles que se impõem e me arrastam. O novo disco, é evidente, reflecte muito mais um diálogo e a evolução natural desse diálogo. Tenho muitas coisas que começaram por ser tocadas de uma certa maneira e que, neste momento, já estão a ser tocadas de outra. É um disco que reflecte uma caminhada, bastante mais do que o outro.

Quais são as etapas principais dessa caminhada?
O papel individual de cada um no colectivo que representa este disco [José Martins, Luís Sá-Pessoa] está mais bem definido, sentimo-nos os três melhores na nossa individualidade. O novo disco vai ter coisas compostas há muitos anos, em Moçambique, as coisas novas misturam-se com as antigas. Um dos grandes defeitos, mais do que virtudes, de uma pessoa como eu – é esta de dizer: “Será que vou conseguir meter nesta leva aquela e aquela canção que ficaram de fora e que eu gostava de aproveitar?” Estou sempre insatisfeita porque tenho imenso material e, muitas vezes, a selecção continua a não depender de mim. De repente, ponho qualquer coisa cá para fora e o interesse das pessoas é tão grande que a canção acaba por se impor, sem que haja uma selecção criteriosa minha. Mas isso é bom.

Em que estado se encontra a sua ligação com a música tradicional? Está já confirmada a sua participação no festival Intercéltico deste ano…
Não sei muito bem o que é a música tradicional. Sei que não tem a ver com formalismos mas mais com atitudes, com aproximações que ultrapassam as próprias morfologias musicais. Para mim, a importância do Intercéltico tem exactamente a ver com isto: por um lado, com esse espírito aberto que nós, ao longo da história, nos habituámos a encontrar nos celtas, embora depois existam certos povos, como a Irlanda, que acabaram por transformar essa música num símbolo de resistência e, aí, ela acaba por cristalizar em termos formais. Mas, regra geral, o espírito da música tradicional é de grande abertura e troca de experiências. Há muita coisa que as pessoas não se habituaram a ver dentro do tradicional, como sejam novos temas, novas sonoridades, novos métodos de se trabalhar, muita coisa que irá fazer parte, no futuro, do património tradicional.

Até que ponto o seu estilo vocal incorpora elementos e técnicas do canto tradicional?
Mais, se calhar, que o canto tradicional, o canto das pessoas que cantam. Por exemplo, nas Janeiras, em que se verifica a prática de cantar em conjunto, de estarmos ao lado a ouvir a voz do outro, sem ser através do disco nem da rádio. A ideia de coro é fundamental para o canto individual. Quando ouço a voz de um homem ou de uma mulher a cantar nas Janeiras, não poso deixar de ver, por trás, um avô que ensinou aquilo àquela pessoa, um passado que é familiar antes de ser social, do testemunho de estar vivo que passa pela canção.

É essa sua sensibilidade ao canto comunitário que está na base da formação do projecto de vozes femininas Agrupa?
Pois, que eu não queria que fosse o “meu” projecto. Acho que só pode haver um projecto quando há materiais, coisas concretas a partir das quais se pode trabalhar. Isso é uma coisa que eu já tinha. Tenho certas coisas que nunca cantarei sozinha, que têm a ver com um colectivo de vozes. Por outro lado, não sei se por estar há demasiado tempo deligada disso que é ouvir outras vozes a cantarem em conjunto, vozes atrás da porta como se ouvia em Moçambique, sinto muita falta desse lado. A primeira vez que voltei a sentir de novo isso foi quando estava em casa de uma amiga, na Graça, e ouvi pessoas a ensaiarem as marchas populares de Lisboa. Afinal, há gente que canta! Isto para mim é fundamental. Por outro lado, a própria prática de cantar a várias vozes, talvez porque componho muito com a voz, é que me permite chegar aos instrumentos de uma outra maneira. Há, pois, também questões de aprendizagem. Se os processos são ricos, dão produtos ricos.

Vão ser só a Amélia Muge, a Margarida Antunes e a Cristina Antunes?
Para já, somos o núcleo duro. Gostaríamos muito de encontrar outras pessoas na mesma onda. Por exemplo, pessoas como a Filipa Pais, a Minela, a Teresa Salgueiro ou a Maria João. Inclusive, já falámos. Na teoria, tanto a João como a Filipa disseram que sim. Só que têm surgido problemas de ordem prática… Enquanto eu, a Cristina e a Guida nos encontramos uma vez por semana, não só para cantarmos como para fazermos exercícios respiratórios, vocais… Para já, estamos as três a pensar propor um trabalho de conjunto para Lisboa, Capital da Cultura, que seria um espectáculo ao vivo. Já temos um reportório de seis canções, compostas por mim, com letras minhas e duas da Hélia Correia. Tencionamos também ir buscar coisas do Lopes Graça, do Zeca, não serão só originais.

Passemos a uma questão delicada, relativa à UPAV e ao modo como foi distribuído e promovido o seu álbum de estreia, “Múgica”, que desapareceu do mercado depois de uma primeira edição esgotada em poucos dias…
O disco, de que foi feita apenas uma primeira edição de 2000 exemplares, está esgotadíssimo, é verdade. Na altura em que se estava a pensar fazer uma segunda edição, surgiram os problemas da suspensão de toda a actividade editorial da UPAV. Os dois mil exemplares editados são, de facto, um número muito baixo, que teve a ver com contenção de despesas e com uma sondagem de mercado. Mas, a partir do momento em que o disco esgotou… E quem vendeu mais foram os armazéns, o Serafim, da Movieplay (ver página 4 deste suplemento); e, se vendeu, foi porque as discotecas o procuraram…

Não se sente frustrada por o disco ter chegado a tão poucas pessoas?
Há sempre a hipótese de nos tornarmos profissionais da frustração, o que, neste país, é muito comum. Às vezes penso até que as pessoas têm um certo gosto em estar frustradas, por acharem que ficam mais interessantes. Tudo aquilo que possa ter corrido menos bem em relação ao disco não elimina o facto de a UPAV ter apostado na gravação quando nenhuma editora quis pegar no disco; como não elimina a importância que tudo isso teve para mim no determinar de um certo tipo de opções que eu fui tomando, que me permitiram, no fundo, fazer aquilo que quero que é estar a trabalhar mais na música. Considero que o processo em si, da feitura do disco, foi extremamente positivo. Sobre o lado que tem mais a ver com a venda, fica, apesar de tudo, em aberto a hipótese, no caso de o próximo disco vender bem, de ser feita a reedição do primeiro. Vamos até imaginar que tinha sido feita uma edição de 10 mil exemplares e tivesse apenas vendido mil. Nesse caso, estaria muito pior do que estou neste momento, em que sei que não há um único disco cá fora.

Hoje, que o seu nome se tornou já mais conhecido, mudou alguma coisa na atitude das editoras em relação a si? O próximo disco já tem editora?
Em relação ao novo álbum, estou ainda na fase de selecção dos temas. Tenho um bocado de dificuldade em me situar em relação a isso. Para mim, as editoras não são um todo homogéneo. Estou a seguir com o maior interesse o actual movimento das pequenas editoras independentes. Gosto pouco da palavra coerência, se coerência tem a ver com qualquer coisa de muito certinho, isto assim porque liga com aquilo. Uma das coisas que me dá enorme gozo é encontrar ligações insuspeitadas. E até sou capaz de chegar à conclusão de que tenho muito a ver com uma multinacional…

Será que certas resistências postas pela indústria à sua música se prendem com a sua intransigência, com a exigência de imposição de regras próprias?
Mas se também a indústria é difícil para as pessoas! Aí estamos iguais! É preciso ter muita força para encontrar a voz interior que toda a gente deve ter. E se não tem é porque estamos numa época onde se entende a comunicação apenas pelo lado de fora. Temos de comunicar e de pactuar com tanta coisa que, a certa altura, fica pouco espaço para comunicar connosco mesmos. E isso eu considero essencial. Mas não acho que seja uma pessoa intransigente, pelo contrário. Considero sempre qualquer proposta, seja ela qual for, a mais maluca ou que aparentemente não tenha nada a ver comigo, como um desafio,

* Cantora e compositora. Prepara o lançamento do projecto de vozes femininas Agrupa e de um novo álbum a solo, cujo reportório será apresentado parcialmente nos três espectáculos ao vivo de amanhã, sexta e sábado no Instituto Franco-Português