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Vários – “Ananana: Sons Estranhos Numa Terra Estranha” (editora / importadora)

Pop-Rock Quarta-Feira, 09.10.1991


ANANANA: SONS ESTRANHOS NUMA TERRA ESTRANHA

A palavra, de ressonâncias esotéricas, é pouco esclarecedora: Ananana – designação de uma importadora de discos formada por Fred e Paulo Somsen, dois irmãos apreciadores das músicas mais esquisitas do universo, apostada em dar a conhecer, via postal, esses sons do outro mundo ao comum dos mortais. Nomes como Jorge Reyes, Erik Wollo e Vasilisk são por ora conhecidos apenas por um número restrito de iniciados. Mas a situação tende a mudar. À disposição de quem se mostrar disposto a aventurar-se está um lote de novidades discográficas, tão estranhas quanto excitantes. O futuro da música alternativa passa por aqui.



A ideia de formar a Ananana surgiu há cerca de um ano, na sequência de um programa de rádio realizado pelos irmãos Somsen, o DDD, na extinta Rádio Minuto. “Havia muita gente a telefonar para lá, a perguntar onde é que podia arranjar os discos que passávamos”, explica Fred Somsen. “Resolvemos experimentar e importar pequenas quantidades de discos, a ver o que dava. Começámos com álbuns de grupos mais radicais, como os Zoviet France. As pessoas responderam bem.”
“Radical” é de facto o adjectivo que melhor se aplica à maior parte dos discos importados pela Ananana. Os estilos abarcados são muitos, privilegiando a área das músicas electrónicas, nas suas diversas vertentes: industrial, tecnoritual, electroacústica, ambiental, minimal, new age, sound collage e outras de impossível catalogação.
De entre uma multiplicidade alucinante de nomes tão exóticos como Ordo Equitum Solis, Nouvelles Lectures Cosmopolites ou Sigillum S, é possível distinguir dois campos musicais extremados de características opostas, ilustrativos de duas concepções estéticas, senão mesmo éticas, por natureza inconciliáveis, as quais, em termos muito genéricos e recorrendo a uma linguagem simbólica, podemos designar por “música espiritual” e “música infernal”.

O Ser Humano Cobaia

Nesta última categoria, do agrado de uma certa camada de jovens que, segundo Fred Somsen, “pretende fugir à música vulgar, ao rock e à pop”, incluem-se grande parte dos itens disponíveis na Ananana: Anti-Group, Autopsia (cujo título de um dos seus álbuns não deixa dúvidas quanto ao conteúdo: “Death Is The Mother of Beauty”), Coil, Cranioclast, Dreaming Together, Hafler Trio, Lustmord, Nocturnal Emissions, Organum, Sleep Chamber ou Zero Kama, entre outros.
Todos se servem dos ouvintes, e do ser humano em geral, como cobaias. Têm em comum o gosto pela manipulação – dos sons e das mentes. Recorrem para tal à ciência psicoacústica, aos rituais mágicos antigos (sobretudo negros) ou, na maior parte dos casos, à mera sugestão. Guardam do mundo uma visão negra, embora às vezes pretendam fazer crer o contrário. Apelam ao masoquismo e ao orgulho intelectual, sempre ávido de novas conceptualizações, venham elas de Deus ou do diabo. Neste caso, do diabo.
Se não, repare-se na linguagem e na iconografia: “Great Death” (dos BDN, um dos grupos editados por uma editora que dá pelo nome de “carne fria”), “Masturbatorium” (Hafler Trio, ultra-sons à mistura com pornografia), “Heresy” (Lustmord – experiência com gamas de frequência inaudíveis, gravadas em locais como criptas, grutas e outros lugares subterrâneos, onde a luz não abunda), “Aux Morts” (Memorandum, também para as “carnes frias”), Invocation of the Beast Gods” (Nocturnal Emissions, bestiário samplado em torno do número da besta, “666”), “Music To Be Murdered By” (colectânea de várias bandas, cujo título não convém seguir à letra) ou o rebuscado “Hallucinated Moisture of synaptic Slaughterhouse” (Sigillum S, peritos nas artes mágicas e nas canhalices de Aleister Crowley), são alguns exemplos, entre outros de conotações menos evidentes, da filosofia do “antes dar que apanhar”.
Fred Somsen reconhece ter também ele, “há seis ou sete anos atrás”, apreciado este tipo de músicas. Agora já não é tanto assim, mas mesmo aqui há que ter em conta os gostos de quem consome: “Grupos como os Coil ou Current 93 são hoje, de certa forma, populares entre nós. Nos catálogos da Ananana procuramos determinadas associações e alusões a estes nomes, de maneira a que os fãs dos grupos citados procurem conhecer e experimentar ouvir os nomes menos conhecidos. Acontece comprarem, por exemplo, um disco de uma determinada editora e, se gostarem, acabam por comprar também as outras referências dessa editora.”

Ala Luminosa

Independentemente dos efeitos que o consumo de tais experiências possa provocar no ouvinte, importa em primeiro lugar dar a conhecer e, eventualmente, vender. “Somos apenas intermediários”, explica Fred Somsen, para quem esta questão não se coloca em termos éticos.
Mas há outras maneiras de ver e de sentir menos sombrias.
Erik Wollo, Hans-Joachim Roedelius, Jorge Reyes, Lights In A Fat City, O Yuki Conjugate, Pascal Comelade, Robert Rich e Tim Story são alguns dos legítimos representantes da ala luminosa presente nas preocupações e no catálogo da Ananana. Longe das mezinhas e dos xaropes banha da cobra dos subprodutos new age, e recorrendo, em alguns casos, também eles às sonoridades rituais (Erik Wollo, Lights In A Fat City, O Yuki Conjugate, Jorge Reyes), servem-se delas como ponto de partida para um trabalho de integração e não de dispersão. A diferença reside em ser-se apologista da harmonia (não se confunda o termo com estatismo, nem com concepções piegas, de todo ausentes nos casos apontados) ou, por oposição e danação, “construtor” do caos.
Dispersos entre o contingente satânico e a ala celestial, revolvem-se outros músicos e outros grupos, nas tintas para as preocupações morais ou para os furores separatistas, preocupados tão-só em criar mundos alternativos originais, sem descendência directa possível, nem hipótese de cópia credível.
Jakob Draminsky-Hojmark, Jeff Greinke, Mecanica Popular, Nurse With Wound, Peter Frohmader, PGR, Stefan Tiedje, Vasilisk (cujo CD “Liberation & Ecstasy” é, até à data, o disco mais vendido pela Ananana), Zoviet France, inventam territórios, estilhaçam fronteiras, obrigam a escutar tudo de novo.

Rituais Do “Quarto Mundo”

Impõe-se uma menção muito especial a dois dos nomes de maior impacto no leque de escolhas da Ananana: o mexicano Jorge Reyes e os britânicos O Yuki Conjugate. O primeiro dedica-se à tarefa fascinante de reinventar a tradição musical pré-hispânica, juntando, numa síntese magistral, a electrónica mais sofisticada, o primitivismo de instrumentos rituais do México anterior Às invasões espanholas, sons naturais e mesmo a amplificação de vibrações produzidas pelo corpo humano percutido.
Geniais e inovadores, álbuns como “Nierika”, “Musica Mexicana Pre-hispanica” ou o recente “Cronica de Castas” (este em colaboração com o guitarrista espanhol Suso Saiz, dos Orquestra de las Nubes) merecem pelo menos uma audição despreconceituada. Citem-se a propósito desta música estranha, e como meros vectores de orientação, as fusões tribalistas de Jon Hassell ou da dupla Roberto Musci – Giovanni Venosta.
Os O Yuki Conjugate inserem-se na mesma veia das músicas étnico-rituais do “quarto mundo”, embora enveredando por veredas bem mais obscuras. Depois de “Scenes from a Mirage” e “Into Dark Water”, a banda britânica prossegue, neste seu novo trabalho, de genérico “Peyote”, gravado no selo sueco Multimood, as incursões num mundo de sombras e geografias paralelas onde pulsam os elementos naturais e os computadores se insinuam – organismos estranhos numa terra estranha – para intensificar o mistério.
Outras bizarrias recentemente chegadas à Ananana incluem os álbuns “Greates Hits 81-91”, colectânea de pop industrial dos Psyclones, um dos múltiplos projectos de Phil Ladd e Julie Frith, “Incandescent”, de Julien Ash (dos Nouvelles Lectures Cosmopolites), “Apropos Cluster” da lendária dupla germânica Moebius-Roedelius e “Vienna 1990”, assinada pelos mestres da colagem, Zoviet France. Tempo de partir à descoberta.

Jorge Reyes – “Mexican Music Prehispanic” + “Mexican Music Prehispanic: Music for the Forgotten Spirits” + “Mexican Music Prehispanic: Mystic Rites”

Pop Rock

17 de Maio de 1995
álbuns poprock

Jorge Reyes
Mexican Music Prehispanic (10)
Mexican Music Prehispanic: Music for the Forgotten Spirits (9)
Mexican Music Prehispanic: Mystic Rites (10)

PARAMUSICA, DISTRI. SYMBIOSE


jr

Durante anos, os apreciadores da música deste mexicano procuraram em vão o compacto “Mexican Music Prehispanic”. Quem teve a sorte de escutar um exemplar de amostra que por aí circulou há tempos, desde logo considerou este um dos melhores trabalhos de sempre do músico. Agora, não só o disco está finalmente disponível, como a ele se vieram juntar os volumes dois e três deste projecto “sui generis”. Jorge Reyes – que actuará ao vivo em Portugal no próximo mês de Junho – pode ser considerado como que um Jon Hassell terceiro-mundista. Só que, enquanto o trompetista americano partiu do naturalismo ambiental das “Possible musics” do quarto mundo para se aproximar progressivamente de uma urbanidade revista à luz de novas ficções, em álbuns como “City: Works of Fiction” ou “Dressing for Pleasure”, o mexicano seguiu o caminho inverso. A música progressiva exótica dos primeiros álbuns derivou rapidamente para um lado mais acústico que privilegiava a utilização de instrumentos das antigas civilizações mexicanas, maias e “nahuatl”, ou de elementos da Natureza, quando não o próprio corpo, numa síntese subtil com a tecnologia electrónica. “Mexican Music Prehispanic” representa o primeiro momento desta inflexão numa vertente ritualista, ao qual se viriam mais tarde juntar obras importantes como “Cronica de Castas” (com o guitarrista espanhol Suso Saiz, seu companheiro nos Suspended Memories), “Bajo el Sol Jaguar”, “El Costumbre” e os desperdícios de ouro de “The Flayed God”.
Música única, feita com sons únicos, de conchas, pedras de fósseis, troncos de árvore ou água, juntamente com flautas e tambores rituais, “Mexican Music Prehispanic” invoca as antigas divindades pagãs e os seus poderes mágicos – “um simples pedaço de madeira pode constituir um elo de ligação com os deuses”, diz Jorge Reyes, a propósito do tema “Wood Music” – viajando nas asas de uma ave pelo mundo dos sonhos e das cerimónias de iniciação. Toda a obra de Reyes, e de forma superlativa neste disco, pode ser encarada por uma dupla perspectiva. Se por um lado pode agir como música funcional, psicadélica, na medida em que propicia condições para a passagem de estados normais de percepção para outros, em planos paralelos de realidade, por outro é inegável o seu fascínio e enorme riqueza sonoros, independentemente dos usos que se lhe quiser dar.
O segundo volume, “Music for the Forgotten Sprits”, recua ainda mais, até “ao tempo anterior ao tempo, aos deuses e à existência da consciência humana”. Leitura virtual dos estratos mais profundos do inconsciente humano onde habitam as entidades a eu chamamos deuses e demónios, e do limbo intemporal onde vivem os espíritos que, na tradição asteca, presidiram à criação do universo, como Ometeotl, a “essência suprema”. O álbum é produzido por Steve Roach, terceiro elemento dos Suspended Memories, cujo primeiro álbum, “Forgotten Gods”, aborda idêntica temática. À semelhança dos Suspended Memories, neste segundo volume de “Mexican Prehispanic” a música ganha peso, centrando-se no ritmo hipnótico das percussões, enquanto as melodias dervíshicas das flautas e dos cânticos servem para despertar os órgãos ocultos de percepção. De notar que se encontra também disponível outra edição deste registo, com capa diferente e o título “Tonami”, no selo espanhol No-CD.
“Mystic Rites”, terceiro volume da trilogia, é um caso especial, já que se trata de uma colectânea de temas considerados mais “místicos” e “rituais” da discografia do músico anterior à fase “pré-colombiana”, ou “pré-hispânica”. Voltado desta vez para o lado solar e luminoso, a ênfase é posta no amor e no misticismo, como forma superior de transcendência. Em consonância com este estado de espírito, o tema de abertura, “Invocacion”, combinação de “ritmos do corpo” com “atmosferas” e uma voz feminina, inspira-se na liturgia católica de uma ordem monástica. “Mexican Music Prehispanic”, na sua geografia secreta, desperta para a descoberta de novas formas de ouvir música. Ou, como diz o título de um dos temas, para “Ver cosas nunca oidas”.



Jorge Reyes – “The Flayed God”

Pop Rock

28 de Setembro de 1994
WORLD

JORGE REYES
The Flayed God

Staalplat, distri. Ananana


JR

“Mundo real” significa, no caso de Jorge Reyes, “Mundo interior”. A progressão da obra deste músico mexicano que nos últimos anos se tem dedicado à prática de uma “música mexicana pré-hispânica” (aliás, título de um dos seus álbuns), reinventada a partir de referências simbológico-mitológicas, mais do que o resultado de um estudo das fontes históricas, é exemplar.
Da música progressiva com tendências planantes dos primeiros álbuns (“Ek-Tunkul”, “A la Izquierda del Colibri”, com Antonio Zepeda), Reyes passou para a electrónica, que cedo começou a incorporar elementos étnicos, através de utilização de instrumentos rituais mexicanos, os álbuns como “Comala”, “Niérika”, “Bajo el Sol Jaguar” e o m ais recente “El Costumbre”. O aprofundamento deste vertente etno-ritual, inclinada para o uso preferencial de sons acústicos, viria a produzir obras como “Cronica de Castas” (com o guitarrista espanhol Suso Saiz) e a já citada “Musica Mexicana pre-Hispanica”, cuja distribuição está prevista pela Dargil. O encontro com Steve Roach, expoente da “nova electrónica” norte-americana, cujo percurso tem evidentes pontos em comum com o do mexicano (“World’s Edge”, por exemplo), presente em “El Costumbre”, foi determinante para Jorge Reyes levar ainda mais longe a opção pelo “exclusivamente acústico”. Ficando a estética electrónica salvaguardada no colectivo Suspended Memories, do trio Reyes, Roach e Saiz, do qual resultou já o álbum “Forgotten Gods”. “The Flayed God”, divindade mexicana que simboliza realidades como a morte, a ressurreição, o sacrifício ritual e a fertilidade, é, ainda com maior intensidade que em discos anteriores, uma alucinação de “peyote”, imersão num universo elementar, mágico e ancestral. Jorge Reyes manipula flautas de osso, didgeridoos, pedras, água, tambores que reproduzem os ritmos do homem, da natureza e dos cosmos. Anjos e demónios são convocados do alto de arquitecturas erguidas no mundo dos sonhos. A capa reproduz preces e invocações, num invólucro com reflexos de pérola e opala que reforçam o onirismo deste objecto situado nas margens da música contemporânea.
Ao auditor coloca-se o dilema de mergulhar nesta fantasmagoria onde, consoante a profundidade a que se chegue, se manifestam entidades surgidas do Inconsciente ou provenientes do labirinto do tempo, ou, pelo contrário manter distâncias e optar pela visão aérea, exterior, podendo mesmo assim maravilhar-se com as cores e texturas da música sem atender aos chamamentos. “The Flayed God” é o disco psicadélico por excelência. (8)