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Gavin Bryars – “Jesus’ Blood Never Failed Me Yet”

pop rock >> quarta-feira, 10.11.1993
NOVOS LANÇAMENTOS POP ROCK


Gavin Bryars
Jesus’ Blood Never Failed Me Yet
Point Music, distri. Polygram



Gavin Bryars gravou em 1975, num dos primeiros volumes da editora Obscure, de Brian Eno, as versões originais de “The sinking of Titanic” (faixa que deu nome ao álbum) e este “Jesus’ Blood never Failed Me yet”. Com o advento da era digital, o compositor recuperou cada um destes temas, lançando em primeiro lugar a versão alongada alusiva à catástrofe do Titanic, para agora fazer o mesmo com “Jesus’ Blood…”, que passou a estender-se por 74 minutos de duração. É o regresso do velho vagabundo que Bryars gravou numa rua de Londres, em 1971, a cantar pelo tempo fora, com voz tôpega e emocionada, a hipnótica oração. A novidade em relação à versão original, que se limitava a acrescentar progressivas camadas orquestrais à lenga-lenga do vagabundo, é a inclusão, nas duas últimas partes, da voz de Tom Waits, também ele de certa forma um vagabundo e admirador de longa data da obra de Bryars, primeiro numa espécie de canto-resposta e, nos últimos minutos, já sem o vagabundo por companhia. O resto são múltiplas variantes orquestrais de acompanhamento que servem para acentuar, sob diferentes prismas, o carácter de “human-ness” que Bryars encontrou nesta espécie de manta esfarrapada e que tem o condão de provocar no ouvinte um estado de relaxação. Ou de sono, nos casos de maior sensibilidade. O vagabundo já morreu entretanto. Paz à sua alma. (5)

Balanescu Quartet – “Balanescu Quartet Hoje À Noite Em Belém – Sempre Em Pé”

cultura >> sexta-feira, 05.11.1993


Balanescu Quartet Hoje À Noite Em Belém
Sempre Em Pé



ENTRE as proezas de vulto que se atribuem aos Balanescu Quartet destacam-se duas: terem sido aplaudidos de pé por 10 mil pessoas, em 1990, no estádio de Wembley, num concerto com os Pet Shop Boys e, em 1992, a reprodução, em instrumentos de corda, da orgia de sons electrónicos dos Kraftwerk, num álbum magnífico chamado “Possessed”. Tocam hoje em Lisboa, pelas 22h00, no auditório principal do Centro Cultural de Belém.
O grupo tornou-se uma lenda viva, um fenómeno que ombreia em popularidade com os rivais Kronos Quartet. Em “Possessed”, custa a acreditar no que se está a ouvir, de tal forma Alexander Balanescu (violino), Clare Connors (violino), Bill Hawkes (viola de arco) e Nick Cooper (violoncelo) transfiguram os seus instrumentos, obrigando-os a suar e a soar como maquinismos de ficção – automáticos, pulsantes, mas com um coração a bater. No que respeita à ovação em pé por 20 mil pessoas, não estivemos lá para as contar, além de que não vemos com bons olhos um agrupamento de gente séria, da “erudita”, ser aplaudido de pé, de mais a mais num estádio.
Mas quem são afinal estes paladinos da corda que, desde 1987, ano da sua formação, têm trazido (ou levado, consoante a posição em que se está) a música de câmara aos auditórios populares, numa operação de miscigenação, na sua área, sem precedentes?
O principal dos quatro é Alexander Balanescu, romeno de nascimento e solista em quase todos os discos de Michael Nyman. Fez parte dos Arditti Quartet, gente fina, que não deixou que a aplaudissem de pé (o entusiasmo é o pai de todos os excessos). Faz o que quer do violino. Em “Possessed”, o álbum dos disfarces (em que, no meio do golpe de génio que foi pegar de caras a cibernética dos Kraftwerk, quase passa despercebido um tema de David Byrne, “Hanging upside down”), obrigou-o a parecer-se com um sintetizador. Clare Connors fez os arranjos de transposição da linguagem “techno” da banda alemã para as cordas. De Andy Parker, o violista, não há nada de particularmente importante a destacar (ou, se há, ninguém nos disse nada). Já em relação a Nick Cooper, é de bom tom fazer-lhe a vénia e acenos de apreciação, pois tocou na London Symphony Orchestra.
Os quatro juntos dedicam-se a reinventar obras de artistas dos mais diversos quadrantes musicais, provando com isso que as cordas são pau para toda a obra. Estratégia que tem a vantagem de empurrar certas camadas específicas de público para incursões no território do “inimigo”.
Em disco, o grupo assinou obras de grande mérito, como são as versões de algumas peças antigas de Michael Nyman, o já citado “Possessed” e o posterior “Music for String Quartet”, com a repescagem de temas de David Byrne, John Lurie, Michael Torke e Michael Moran.
Ao vivo, os Balanescu vão a todas. Aos estádios, onde já foram aplaudidos de pé por mais de 50 mil pessoas, mas também ao Queen Elizabeth Hall, à Knitting Factory – sede das múltiplas vanguardas nova-iorquinas – ou, como esta noite, ao Centro Cultural de Belém.
Actuaram, entre outros, com Keith Tippett, Andy Sheppard, Jack de Johnette e Johyn Surman, mas não se importaram nada de fazer o mesmo com os Pet Shop Bpys (o que lhes mereceu – é espantoso – uma ovação em pé de 100 mil pessoas) e os Miranda Sex Garden (que, por acaso cantam numa das faixas de “Possessed”). Também não se fazem caros quando se trata de aceitar convites para colaborações em discos alheios. Que o digam Sam Brown, no seu segundo álbum, e Kate Bush, em “The Sensual World”, no tema “Reaching Out”.
Assim sendo, vamos hoje à noite todos a Belém, aplaudi-los. De pé, claro. Eles merecem.

Wim Mertens – “Wim Mertens Em Lisboa – Brancura Wim” (crítica a concerto)

cultura >> domingo, 31.10.1993


Wim Mertens Em Lisboa
Brancura Wim


OS PASSARINHOS, tão pequenos, fazem os ninhos com mil cuidados, já dizia o poeta. Wim Mertens, qual ave canora de penugem delicada, fez o seu ninho nos nossos corações. E pôs lá dentro ovinhos brancos, com melodias lá dentro, tão brancas como os ovos, tão frágeis como a voz do cantor. Foi um concerto mimoso, o de Wim Mertens na noite de sexta-feira – repetiu no sábado -, no Teatro S. Luiz, em Lisboa.
Sentado ao piano, o pé esquerdo pendurado num balanço constante para a frente e para trás a marcar o ritmo dos sentimentos, o compositor belga que os deuses acolheram no seu regaço (di-lo ele próprio, por outras palavras) e que um dia escreveu “minimalismo” em europeu, deslizou pela parte mais romântica e instrospectiva do seu reportório, cativando os presentes (muitos, deram para quase encher a sala) com formosas melodias, muito do agrado de todos.
A voz fez-se notar sobremaneira. Aquela voz lisa, branca, macia e aguda que parece sair de um disco de 33 rotações tocado a 45. Uma espécie já não de “bel canto” mas de “gel canto”, tal é o brilho e a lisura. Diga-se que Wim Mertens não se fez rogado, usando com parcimónia os cordéis vocais que Deus lhe deu. Para nossa alegria e, passados alguns minutos, nosso constrangimento.
Claro que existe uma complexidade quase indecifrável neste canto dos anjos, não fazendo sequer sentido referir que, na aparência, a voz se limitou a uma pontuação timidamente contrapontística do fraseado do piano, o qual, por seu lado, se refugiou, com uma regularidade metronómica, na sobreposição de “clusters”, que esboçavam, mais do que desenhavam a traço firme, o esqueleto melódico dos temas.
Aos poucos, e nos melhores momentos (aqueles, poucos, em que Mertens dispensou os floreados da voz), instalou-se na sala um ambiente demelancolia que, nas notas mais húmidas (e já agora, mais humildes, como aconteceu em “Humility”, do álbum “After Virtue”) e nevoentas, evocou os universos oníricos de dois outros artistas belgas contemporâneos: Jean Ray, com a tristeza ameaçadora dos portos, casas e águas-furtadas pardacentas que matizam os seus contos (reunidos nas duas únicas e bizarras antologias do autor: “As 25 Melhores Histórias Negras e Fantásticas”, ed. Arcádia, e “Bestiário Fantástico”, ed. Morais); e Harry Kumel, cineasta de cuja imaginação doentia brotou essa obra-prima do cinema fantástico chamada “Malpertuis”, baseada não por coincidência, num romance de Jean Ray.
O pior é que mal Wim Mertens voltava a abrir a boca o sortilégio quebrava-se. Não causou assim espanto que, a meio do concerto, já o “hall” e o bar do S. Luiz se encontrassem pejados de gente, mais interessada em beber um copo do que em adormecer no embalo das vocalizações. Coisa aborrecida para alguém tão importante como Mertens que um dia compôs o excelente “Maximizing the Audience”…
Depois de o ouvirmos agora, e a tanta doçura e brancura, apetece ir a correr para casa ouvir os discos de Tom Waits. Ou ver “Garganta Funda”…