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Hector Zazou – “À Medida Do Génio” (a discoteca)

PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 16 MAIO 1990 >> Videodiscos >> Pop
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A DISCOTECA

À MEDIDA DO GÉNIO

O argelino Hector Zazou, natural de Sidi Bel Abbés e marselhês nas horas vagas, apresenta, no próximo sábado em Lisboa, a sua mais recente bizarria, “Les Nouvelles Polyphonies Corses”, fusão eletrónica neobarroca das polifonias vocais daquela região com classicismo subversivo e manipulações digitais.



Zazou começou por tornar-se notado pelo tamanho um pouco exagerado dos apêndices auditivos, também conhecidos por “orelhas”. Para disfarçar tal exagero, dedicou-se à música, diga-se desde já que com ótimos resultados, sendo hoje considerado um dos expoentes da nova música europeia, aliando um conhecimento profundo da tradição clássica a uma visão descentrada e pluralista das correntes atuais. Não é fácil encontrar nos anais recentes da história dos sons alguém que se movimente com tamanha mestria e à-vontade em terrenos tão díspares como a música africana, o “funky”, a eletrónica planante ou “pastiches” sintéticos do romantismo ocidental. A sua obra reflete na perfeição um percurso acidentado mas sempre coerente, de constante pesquisa e derrube de tabus estéticos mais renitentes.

Barricadas

“Barricades” designa a formação de perto de vinte músicos com que se iniciou nas lides musicais e, simultaneamente, o primeiro longa-duração do duo ZNR, juntamente com Joseph Racaille. “Barricades 3”, o disco, é uma misteriosa congregação de silêncios e rendilhados pianísticos, homenagem a Satie, Poulenc, Debussy e Ravel, mestres do piano longínquo e lunar, estilhaçados por solos convulsivos de saxofone e sintetizadores humorísticos e circenses. Os ZNR gravaram um segundo álbum, “Traité de Mécanique Populaire” (1977), ironicamente uma recolha de pequenas peças de música de câmara, subtis miniaturas na veia mais esotérica e subliminarmente esquizofrénica de Erik Satie.
De subliminar nada há no álbum “La Perversita”, este sim declaradamente esquizóide, fruto do contacto americano com as experiências demenciais dos Suicide e os repetitivismos obsessivos de Philip Glass. O álbum, produzido pelos lunáticos da “Bazooka”, é um repositório de sons “disco” minimalistas e textos pornográficos.

Preto e Branco

O ritmo passa a ser uma constante na fase seguinte, através de uma associação com o cantor zairense Boni Bikaye. “Noir Et Blanc”, de 1983, é o fruto primeiro desta associação, síntese magistral do batuque e do canto africanos, filtrados e tratados pelo computador, dançável e inteligente. Fred Frith e Marc Hollander deixaram-se contagiar, trocando o intelectualismo conceptual pela alegria primitiva e exaltante do transe rítmico. O mini “Mr. Manager” e o recente “Guilty” apontam mais descaradamente para as pistas de dança, sem no entanto perder de vista uma complexidade formal que faz parecer simples o que é complicado, apoiada em notáveis e arrojadas técnicas de gravação.
Mas é com a entrada para a editora belga Made To Measure que Zazou integra definitivamente a elite dos novos compositores europeus. “Reivax Au Bongo”, feito à medida para uma fotonovela imaginária, é a obra máxima da dupla Zazou-Bikaye. O primeiro lado parodia e recria aquilo que poderíamos definir como uma espécie de psicadelismo pop africano, com Boni na pele de “popstar” e Hector divertidíssimo a trocar as voltas à lógica e truques do género. Ainda mais inesperado é o segundo lado: quatro peças de cântico gregoriano hereticamente feminino e eletronicamente sintetizado.

Geografias

“Géographies”, de 84, é mais sério na forma aparente mas totalmente subversor dos códigos habituais. Música híbrida e ambígua, falsamente clássica, flutuando num universo lírico movediço e rico de sugestões oníricas (títulos de faixas como “Motel du Sud” ou “Denise à Venise” são todo um programa de férias na região dos sonhos), permeável a todos os parasitismos, à beira da dissolução e de difícil mas com compensadora audição.
“Géologies” (89) culmina este processo, sendo, por força da habituação e continuação dos pressupostos anteriores, mais facilmente apreensível. A fascinação que Zazou nutre pela voz humana atinge o auge nestes dois discos, paradoxalmente, no tema final, com a utilização da voz “samplada” de Bikaye, e cujo resultado se aproxima muito da perfeição. Com as novas polifonias corsas, teremos oportunidade de verificar em que ponto se encontra esta aproximação.

Vários – “‘Printemps de Bourges’ começa hoje em Lisboa – De França ao Sul de Portugal”

PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 9 MAIO 1990 >> Cultura


“Printemps de Bourges” começa hoje em Lisboa

De França ao Sul de Portugal


As companhias de Bernard Lubat e Philippe Genty, os Satellites e as novas polifonais corsas de Hector Zazou são os quatro espetáculos agendados para o 5º Printemps de Bourges de Lisboa. A pluralidade sintetizada em quatro propostas irrecusáveis.



Hoje às 21h30, na sala do grupo recreativo do BESCL, Bernard Lubat e a sua companhai de jazz farsante e fascinante apresentam “La Comedie Del Jazz”, “performance” que mistura virtuosismo e loucura sem pedir licença à academia. A “grande música negra” ganha o colorido do imprevisto e do improviso seriamente encenado, mero pretexto para a feérica exibição de liberdade criativa.
Bernard Lubat é colega de outros franceses da mesma escola em que o humor desempenha papel fundamental no discurso musical, como Michel Portal, Eddy Louiss, Bob Guérin, Louis Sclavis ou François Jeanneau, excêntricos, bem-humorados e nada preocupados em arrumar a sua música nos cacifos mortuários da catalogação precoce.
Bernard Lubat canta e toca teclas, acordeão, melódica e percussão. Acompanham-no cinco músicos, incluindo dois trombonistas e três percussionistas, empenhados em provar que a fanfarra pode ser farra libertária.
Com Philippe Genty e o ato de pura magia que é “Dérives”, passamos decididamente para o lado de lá da banalidade subsidiada e burocrática do funcionalismo “artístico”. O Universo de formas transitórias desta fantasmagoria materializada à custa de matemática minúcia e certamente das graças de todos os deuses do bom-gosto, confunde-se com a própria Arte, Movimento absoluto, Harmonia musical, incessante fluxo poético, Teatro da noite ancestral e primitiva iluminada feita dia.
Mulheres mundanas são devoradas por peixes e os peixes são devorados pelo mar que é o sangue da mulher. “Dérives” recria o ritual da morte e da vida, interligado na cruz do instante transformador. Metamorfose da Arte em Vida. Suspensão do tempo na eternidade da representação. No fim não acreditamos no que vimos.
“Dérives” tem genial coreografia de Mary Underwood, fabulosa música, indispensável à criação da atmosfera irreal da cerimónia, de René Aubry. Os atores são Pascal Blaison, Christian Carrignon, Kathy Deville, Gabriel Guimard, Eric de Sarria e uma infinidade de bonecos e outros seres menos facilmente identificáveis. Todos juntos lançarão o sortilégio amanhã, pelas 21h30, no Teatro Villaret. No sábado vão estar no Porto, no Teatro Carlos Alberto, integrados no Festival Internacional de Marionetas daquela cidade.
Os Satellites merecem um destaque relativo. Rock, Soul e Rhythm’n’blues, dançáveis, divertidos e destinados a fazer as delícias dos jovens menos preocupados com os labirintos existenciais que dão à vida um ar de respeitabilidade. Dança e festa estão programadas para a discoteca “Loucuras”, dia 18, de novo às 21h30.
Finalmente, a 19 no cinema Tivoli e ainda à mesma hora, Hector Zazou apresentará as suas polifonias corsas, aliando o canto tradicionalmente masculino desta região, aqui permeável à invasão vocálica do belo sexo, a um sinfonismo híbrido e eletrónico caro a toda a obra deste heterodoxo francês. Sintetizadores, violoncelo, sopros, percussão de orquestra e intrincados jogos vocais resultam numa música estranha como aquela registada em discos do compositor como “Géographies” ou “Géologies”. Hector Zazou produz música, segundo afirma, “para acabar de vez com a teoria do pós-modernismo”. Para já consegue acabar com perniciosos preconceitos estéticos, eufemismo encobridor da surdez.
Na 2ª parte tocam os Lua Extravagante que integram Janita Salomé, Vitorino, Pedro Caldeira Cabral, Filipa Pais e Carlos Salomé. De França até ao Sul de Portugal.

Hector Zazou – “Sahara Blue”

Pop Rock >> Quarta-Feira, 04.11.1992


PREGAR NO DESERTO

HECTOR ZAZOU
Sahara Blue
CD Made to Measure, distri. Contraverso


Muita parra e pouca uva. “Sahara Blue” está longe de ser um deserto de ideias, mas essas ideias surgem dispersas, faltando a cola que transforma o agregado num todo. “Sahara Blue” não é sintético, é sincrético. Os textos do poeta simbolista francês Arthur Rimbaud são o fio da meada e pau para toda a obra. É esse o universo poético que Hector Zazou e o seu séquito impressionante de estrelas procuram recriar. Neste aspecto, a lista de participantes é de tirar o fôlego, sendo ainda mais extensa que a do anterior “Les Nouvelles Polyphonies Corses”: John Cale, Gérard Dépardieu (sim, o actor) Cheb Khaled, Anneli Drecker, Bill Laswell, Tim Simenon (Bomb the Bass), Barbara Gogan (dos Passions, há alguém que se lembre?), Ryuchi Sakamoto, Sammy Birnbach e Malka Spigel (Minimal Compact), Sussan Deihim, Lightwave, Steve Shehan, Keith LeBlanc, Ketema Mekonn e David Sylvian (que aparece referido como Mr. X, por razões contratuais), entre outros…
“Sahara Blue” explode em múltiplas direcções, deixando estilhaços por todo o lado. A unidade que preside aos anteriores trabalhos deste músico argelino radicado em França desapareceu, substituída por um caleidoscópio de referências e estilos. Recordem-se os passos prévios. “Noir et Blanc”, que alguém definiu como o “encontro imaginário de Fela Kuti com os Kraftwerk”, é a electrónica e o étnico em harmonia perfeita, em ritmo de locomotiva. “Reivax au Bongo” consegue a improvável junção da tradição romântica com a África, em recipientes de canção pop, versão anos 60. “Géographies” e “Géologies” são estranhos objectos pós-modernistas que recuperam as formas do classicismo para lhes conferir a dimensão de mutantes deformados. “Mr. Manager” e “Guilty” orientam os carris de “Noir et Blanc” na direcção das pistas de dança.
Em “Sahara Blue” sobressai uma impressão de novo-riquismo, traduzido num excesso de meios e de músicos que se acotovelam entre si, acabando por não haver espaço suficiente para cada um se exprimir convenientemente. O disco começa em ritmo de dança, com um recitativo de Dépardieu, para de seguida irradiar sem quaisquer preocupações de unidade formal. Há ambientalismos étnicos escondidos a cada canto, o piano satiano de Sakamoto lutando contra as vagas digitais, a pop inocente de Barbara Gogan, cruzamentos culturais de passagem e vocalizações exóticas que são o melhor que o disco tem para apresentar. E algumas canções verdadeiramente boas: “Hunger”, cantado por um John Cale ameaçador, entre um órgão Hammond e arranjos que vão do “filme negro” de Barry Adamson a uma falsa “brass band” na boa tradição de New Orleans. Cheb Khaled e Malka Spigel swingam de forma brilhante no deserto, em “Amdyaz”, Richard Bihringer e Sussan Deihim lêemem diagonal uma carta do poeta. Ketema Mekonn inventa novas formas de diálogo com o saxofone. É assim: “Sahara Blue” vale pelas partes em separado, histórias que se contam a si próprias, reivindicando regras exclusivas. Síncrese de sons, sob o comando das palavras. (7)