cultura >> sábado >> 17.12.2022
Kronos Quartet Em Lisboa
O Violino De Elvis
OS QUARTETOS de corda já não são o que eram. Andam doidos. Embora nem tanto como seria de desejar. Os Kronos Quartet, ilustres intépretes de peças contemporâneas que toda a gente com nome faz questão de lhes oferecer, apresentaram-se em boa forma quinta à noite no Grande Auditório do edifício sede da Caixa Geral de Depósitos, em Lisboa.
Uma assistência chique, constituída em grande número pelos titulares das cadernetas para a temporada inteira, encheu de elegância o Grande Auditório. Alguns aproveitaram mesmo essa titularidade para retemperarem forças de um estafante dia de trabalho, ressonando alto e bom som durante o espectáculo, numa tónica de experimentalismo e manifestação óbvia de apreço pela boa música dos Kronos Quartet. Menos felizes, alguns apreciadores de facto da música do grupo ficaram à porta a chuchar no dedo. Lotação esgotada.
“Mugam sayagi”, de Franghiz Ali-Zadeh deu início ao concerto. Peça clássica na sua estrutura – em comparação com algumas das loucuras que se seguiram – teve a grande virtude de nos deliciar, na exposição inicial, com uma extraordinária prestação a solo da violoncelista Joan Jeanrenaud. Intimista, nos limites do silêncio, a intérprete loura de calças prateadas fez brotar do violoncelo um jardim de harmónicos de cores e tempos de grande nitidez. “Dinner music for a pack of hungry cannibals”, de Raymond Scott, introduziu uma nota de humor burlesco, nas suas cadências sincopadas e piscadelas de olho ao jazz. “Mach”, de John Oswald, construiu-se no embate das cordas contra uma orgia de elctrónica agressiva em fira pré-gravada, pondo em evidência as técnicas de justaposição e colagem típicas do criador do “Mystery laboratory”. Os músicos correram atrás dos “bits” e, pelo meio, houve uma pausa em que apeas mimaram os gestos de execução, sem extraírem qualquer som dos instrumentos. Teatro puro da imaginação. Cage, claro, ou Maurice Kagel, sorriram da primeira fila.
Seguiu-se um tema naturalista, “Mtukwekok naxkomao” (“os bosques que cantam”), de Brent Michael Davis, com os dois violinistas, John Sherba e David Harrington, o violista Hank Dutt e a já citada Joan Jeanrenaud a substituírem os arcos por barras de metal e a agitarem no ar, em movimentos circulares, cordéis cuja vibração imitava sons de pássaros. Utilizaram ainda um toro de madeira, por sinal bem afinado. O bosque cantou. A primeira parte fechou com o “Quarteto nº 4” de Sofia Gubaidolina, dez minutos de “pizzicatos” insistentes e alguns exercícios de ginástica que puxaram ao bocejo.
A segunda parte foi ocupada na íntegra por mais de meia hora de “The book of alleged dances”, dividida em dez partes, de John Adams. Música de câmara minimalista, com esporádicos suportes de “loops” rítmicos samplados. A correcção formal não fez esquecer a ausência de emoção.
O melhor, porque mais vibrante, ficou guardado para o fim. No primeiro “encore”, “A roda de água”, retirado do álbum do grupo “Pieces of Africa”, o pano de fundo do palco abriu, de maneira a poder ver-se por detrás dos músicos um dos repuxos de água do jardim do auditório. As inflexões arabizantes da música afinaram com as águas no mesmo ritmo de hipnose. Depois, a loucura final, no segundo e último “encore”, em “Elvis everywhere”, uma paródia sobre samplagens de canções de Elvis Presley e excertos de vozes gravadas das múltiplas convenções que nos Estados Unidos procuram manter vivo o mito de “The King”. O “rock ‘n’ roll” derrotou uma vez mais o academismo. Ou teria sido o contrário?

















