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José Mário Branco, Amélia Muge, João Afonso, José Martins, Rui Júnior, José Afonso – “José Mário Branco, Amélia Muge, João Afonso, José Martins E Rui Júnior Ontem Em Lisboa – Iluminaram As Canções De José Afonso”

cultura >> quinta-feira >> 15.12.1994


José Mário Branco, Amélia Muge, João Afonso, José Martins E Rui Júnior Ontem Em Lisboa
Iluminaram As Canções De José Afonso



UMA GRANDE claridade banhou as canções de José Afonso. José Mário Branco, Amélia Muge e João Afonso deram novas vozes à voz do mestre. Limparam o pó ao passado, afirmaram novas vias, mandaram dizer que há uma dinastia afonsina paralela à dos filhos da madrugada. Aconteceu no S. Luiz, em Lisboa, no primeiro dos três espectáculos “Maio Maduro Maio”.
Faz bem ouvir música assim. Desintoxicarmo-nos das toxinas da moda. Participar, no verdadeiro sentido do termo, na essência musical de um dos maiores criadores da música portuguesa de sempre, José Afonso, e, ao mesmo tempo, reescutá-la, vibrante, nas vozes distintas de três artistas para quem é importante a manutenção de um elo da música portuguesa que importa não quebrar. Quem se deslocou nas noites de terça e quarta-feira ao Teatro S. Luiz em Lisboa teve a oportunidade de assistir a um dos melhores concertos de música portuguesa do ano. No espectáculo “Maio Maduro Maio”, centrado nas canções de José Afonso, apresentado anteriormente em diversas localidades portuguesas, revisto, aumentado e enriquecido nesta nova ocasião com novas canções. Com a edição de um disco em mira. Amanhã será o derradeiro encontro. A não perder.
A versão instrumental de “Maio Maduro Maio” deu o mote para uma noite inesquecível. A solo ou em harmonizações a duas ou três vozes entrelaçadas em arquitecturas atentas ao pormenor, os três cantores mergulharam no oceano musical e poético de José Afonso. João Afonso, sobrinho de Zeca, cantou com uma naturalidade e uma facilidade notáveis. A música do tio corre-lhe nas veias. Na sensibilidade com que se entrega ao balanço das canções e na agilidade com que se baloiça nas suas redes rítmicas, a sua voz flutua com a arte de um trapezista. “Utopia”, “Sodoma e Gomorra” (música original sua) “Já o tempo se habitua”, “Lá no Xenparaga” (onde imitou tonalidades vocais africanas), “Se voares mais ao perto” (com os restantes músicos a fazerem o acompanhamento em adufes), “Ali está o rio” e “Fura fura” revelaram um cantor de grande futuro. Amélia Muge mergulhou nas “nuances” mais poéticas da música, deixando-se seduzir pelas melodias, pesquisando a divisão mínima dos sons, deslizando por glissandos entre o suspiro e os registos de maior extroversão. Em “Que amor não me engana”, “Canção de embalar”, “Cigano maltês”, “Nem sempre os dias são dias passados”, uma composição sua com texto de Zeca Afonso, e “A cidade”, instante mágico em que a sua voz bailou no silêncio com as cordas de uma guitarra em estado de graça, de José Mário Branco. Os duos com João Afonso, em “Canção de embalar”, “O homem voltou” e “Benditos”, puseram em relevo o casamento perfeito dos timbres. Duas vozes irmãs.
José Mário Branco, há muitos anos que não o ouvíamos em forma tão apurada. Maestro subtil, função que desempenhou com tacto e sentido de humor, foi dos três o que mergulhou mais fundo nas canções de José Afonso. Na sua voz as palavras de Zeca foram o mesmo e outro lume. Uma voz iluminando a outra, ausente, e ao mesmo tempo misteriosamente presente. Os sentidos – das palavras e do corpo – ressuscitaram numa ressonância grave, a contar-nos, a seu modo, coisas fortes, que hão-de continuar a tocar-nos por muito que alguns se esforcem em obscurecê-las ou esvaziá-las das suas intenções. José Mário Branco rubricou no S. Luiz interpretações de antologia: “Pastor de Bensafrim”, “Canção da paciência”, “De sal de linguagem feita”, autênticos actos de paixão. Mas também na guitarra José Mário Branco impressionou. Jogou com a afinação das cordas durante “A cidade”, brincou com as melodias, provocou, acentuou cadências, soltou queixas e sarcasmos. E depois sustentou o tempo do espectáculo, com deixas e apontamentos sempre a propósito. Enquanto José Martins afinava a braguesa cantou um excerto de “Eu tenho dois amores”, de Marco Paulo, naquela versão que faz rimar “amores” com “tractores”. A ironia passou, a anteceder “O país vai de carrinho”: “tenho aqui uma força de bloqueio” e logo a seguir, cáustico, em comentário aos aplausos da assistência: “pois, mas depois chegam lá e votam todos nele outra vez!”. Quando alguém gritou da plateia, a pedir que cantassem “Grândola”, respondeu “é sempre em frente, logo a seguir a Alcácer!…”. Brincalhão, antes de se lançar no segundo “encore” – um “medley” de canções interpretadas ao longo do espectáculo – outra vez para o público: “São uns insaciáveis!”.
Uma palavra para José Martins e para Rui Júnior, artífices inspirados nas teias da percussão, o segundo também na guitarra e na braguesa. Das suas mãos saíram pequenos apontamentos que valeram ouro. Rui Júnior fez passar em “Maio Maduro Maio” um rio de gotas de pedra, com o seu pau-de-chuva. Nas tablas ou nas congas foi sempre de uma serenidade matemática. José Martins, sempre em cima da emoção, contrapôs às guitarras de Mário Branco e Amélia Muge as suas próprias articulações harmónicas.
Os três juntaram as vozes a um sentimento comum, em “Venham mais cinco”, “Cantar galego”, “Maio maduro Maio”, “Nefertite não tinha papeira”, “Fura fura”, “O que faz falta” e na carta final incendiada, “Zeca”, da autoria de José Mário Branco.
As canções de José Afonso estão e continuarão vivas enquanto vivas permanecerem as vozes e a memória de quem lhe compreendeu a obra e a vida. Ficaram as palavras de Mário Branco, enamorado da música, fazendo eco: “é tão bonito! as canções cantam-se sozinhas!”

Amélia Muge – “Todos Os Dias Nasce Uma Pessoa (Com Chapéu)” (entrevista) + “Todos Os Dias… ” (crítica de discos)

pop rock >> quarta-feira >> 07.09.1994


Todos Os Dias Nasce Uma Pessoa (Com Chapéu)

“Todos os Dias”, segundo trabalho discográfico de Amélia Muge, rompe com algumas premissas estéticas do álbum estreia, “Múgica” – que revelava já uma voz no pleno domínio das suas potencialidades -, ao mesmo tempo que assinala a passagem da artista de uma independente para uma multinacional. Viagem à volta dos dias, do tempo e da eternidade que vive em cada instante, “Todos os Dias” permite percursos e aproximações várias, formas diferentes de lhe encontrar outros sentidos nos sons e nas palavras. Convidámos a cantora a escolher um. Amélia escolheu os véus e os chapéus, pelos quais nutre uma paixão secreta, para ilustrar cada canção. Chapéus há muitos, é verdade. A arte está na cabeça e na maneira de os usar.

1 – Nevoeiro
“Chapéu branco. O primeiro a ser fotografado (com a rede, enevoando um rosto ainda só promessa). O ‘Nevoeiro’ também é o primeiro momento do álbum. É a urgência da hora. O que há a cumprir (como este encontro). É o aqui e agora. É, claro está, o chapéu do público. É a Hora!”

2 – Ser Pessoa (prólogo)
“’Todos os dias nasce uma pessoa’ – um mote que atravessa todo o segundo momento do álbum e se vai desdobrando em posturas. Um lenço colorido que, no prólogo, começa a ser armado… uma lengalenga que, pulsando, vai revelando um alguém.”

3 – Quinto Império
“’Grécia, Roma, Cristandade, Europa / os quatro se vão / para onde vai toda a idade…’ Um passado pesando no momento em que se nasce… como um tecido que se vai enrolando, à volta, à volta… Um levante ‘perturbante’ com toda a sua carga histórica, cultural, musical… e técnica, pois claro. Um Próximo Oriente num eterno retorno ao Re-Nascimento?”

4 – O Cego Pedinte
2Nas histórias antigas, as meninas estão sempre em anáguas e toucados. Agora improvisa-se, dá-se o ar (até porque os toucados não se encontram por aí aos pontapés). O iniciar da caminhada no mundo fantasioso das relações amorosas. ‘Abre a porta, Ana’ – diz o afinal falso cego. “Tradição? Já não é o que era’?… Pois!”

5 – O Mal-Lavado
“Chapéu de palha. Pois então? Que outro chapéu nos sairia ao caminho ao ‘sair das terras do milho’, ao ‘entrar nas terras da urze’? Uma toada de gaitas-de-foles desenha os contornos da estrada nos territórios das nossas descobertas. ‘Estar de amores não é maleita’ (uma paisagem mais bucólica que rural… a pedal).”

6 – Eu Hei-d’ir
“Aceitar o não como um desafio e um ‘charme’ discreto… ‘ se me mandares embora, muito eu hei-de aporfiar’. Uma boina que não se enterra na cabeça e que quase levanta voo p’ró ‘circo que leva a Lua’. Uma tomada de posição quase a sério. Um ‘hei-de m’ir assentar’ quase tradicional, prolongando cumplicidades e improvisos (é assim que se começa?).”

7 – Leões E Mais
“Ele há tecido que melhor evoque as selvas africanas que a capulana? Feita lenço à volta da cabeça evoca que selvas? E que cabeças? Um mundo de fábulas reforçando as duplicidades de qualquer moral… Ai os Lafontaines africanos que nem de capulana disfarçam as desconfianças… O Zé Martins a reinar nos simuladores, sintetizadores e outras bichezas… Servir reis? Muito chorareis! (ora tomem).”

8 – Estar Vivo É Estar À Morte
“Não tem um chapéu ou véu particular… na impossibilidade de os ter todos, cruza dois véus: o do Ser pessoa e a mantilha preta da Viúva do enforcado que vai chegar lá mais para a frente. Um refrão obsessivo… um Plim! Colorido onde um negro véu vai aprisionando tudo o que já não vamos poder ser. ‘Estar vivo é estar à morte / cativo de um Plim! Da sorte… no baralho da ideia / entre achado e perdido’… Todos os dias.”

9 – Vagarinho
“A boina preta ao lado evocando o método das almas – em que combate combater? Já fez uma caminhada reveladora no caminho das ideias. ‘Neste muro há duas pedras / sse se partirem ao meio / uma foi de dizer basta / outra foi de mal alheio’ – morrer pelas ideias? Sim… de morte lenta?”

10 – Terreiro Dos Passos
“Um chapelinho antiquíssimo… uma r… preta, sombra vinda da vida que encerra a da que passa… ‘e nessa sombra, outra sombra / mais escura que nenhuma / sonhando a.. que esvoaça’… O mim mais migo dos no… eus… o terreiro que os nossos passos criam cá dentro de nós…”

11 – Passarinho Da Charneca
“’Lindo vai o chapéu preto / e a azeitona também / já se pode armar aos tordos / e eles caem… (como tordos, como tordos)’ Mas o Dono não é Cantor!”

12 – Os Novos Anjos
“O único chapéu que não funciona na cabeça. Só imagem. Novos anjos? Estão cansados de voar! Só querem agenciar! ‘The show must go on’ (no meio do mar, o coração do sr. Arcanjo bóia – não é, Zézes?). Mas viva a alegria da nossa terra… ninguém é triste… passam-se os dias sem se dar por isso… uns vão para casa dormir…”

13 – Ser Pessoa (“Intermezzo”)
“As pontas do lenço divertem-se. Este ‘intermezzo’ fugiu a sete pés dos concursos e telenovelas (não se deve ter percebido muito bem, claro – mas até o sentido dos sentidos tem o seu ‘intermezzo’; não é Pavarotti?). Tirubi titirubi… ôdos us ias… hã hã hã hã…”

14 – Cantigas A Rosália
“Este chapéu veio lá das Galizas da Rosália. Acho que lhe teria ficado bem. À Uxia também. A pandeireta que se ouve, desdobrada pelo Zé Martins, chegou até nós por ela. Ai os veludos vermelhos que nos amaciam as memórias quentes do Intercéltico… ‘Por vales e por montanhas / pela água larga e fria / no berço do vento embalam’… as cantigas.”

15 – A Senhora Está Sentada
“Não sei lá porquê, mas os véus da santa e demais damas da corte celestial são quase sempre azuis. Nossa minha Senhora… que dizer-te nos dias de hoje? ‘A Senhora está sentada / sobre as suas próprias mãos / e baloiça no vazio / no céu de todos os chãos’.”

16 – A Viúva Do Enforcado
“Um véu negro cobrindo o fogo apagado, o cão aluado, o lamento de uma viúva nova. Adufes ressoam… guimbardas soluçam.. ai! É com a morte dos outros que rondamos a nossa.”

17 – O Pastorinho
“O boné também nasceu para vivermos a preguiça como uns príncipes… abaixamos a pala e prontos… descansamos o espanto todos arrumadinhos e tudo. Ai o descanso… a antecâmara do último sono? Será que por lá continuará a haver vozes às riscas como a da Teresa-mana que comigo canta este tema? Que há nuvens-abelhas, não duvido… e bonés com palas, também!!!”

18 – Ser Pessoa (Fuga)
“Vai-se-nos o rosto, ficam-nos os véus e os chapéus. E o riso mais lúcido da criança que nos habitou (a Voz?).”

Amélia Muge
Todos Os Dias… (8)
Columbia, distri. Sony Music
A Invenção Dos Dias



Houvesse discos com a qualidade deste todos os dias e a música popular feita em Portugal seria sem sombra de dúvida a melhor do mundo. Com o segundo trabalho de Amélia Muge não estamos, é evidente, perante um fenómeno semelhante ao de Pedro Abrunhosa, construído sobre uma moda e o aproveitamento de um momento, ou dos Madredeus e o seu “Espírito da Paz”, que navega noutro tipo de momento, na aparência mais vasto e bastante mais tranquilo. Amélia Muge está longe deste e doutros “momentos” que duram enquanto a direcção do vento não muda. “Todos os Dias…”, como as pilhas Duracel, dura e dura e dura e vai tão fundo quanto pode nos caminhos abertos pelo anterior “Múgica”. Uma voz, de Amélia, rompe as amarras do tempo e procura, por vezes bem próxima, sem dúvida bem dentro, nascer e viver a cada instante. “Todos os Dias” é cada dia e a totalidade dos dias. Uma vida.
José Mário Branco investiu e investiu-se neste disco, assegurando a direcção artística, ficando a produção, como em “Múgica”, entregue a António José Martins. As diferenças são perceptíveis na maneira como a música soube libertar-se dos simples efeitos que, no passado, nada lhes acrescentavam. O “ouvido clínico” da velha raposa da MPP a fazer das suas, José Martins, por seu lado, ficou com tempo livre para explorar outro tipo de horizontes com o seu arsenal de sintetizadores, “samplers” (ou “simuladores”, como ele próprio diz, em bom português, no livrete ilustrado que acompanha o CD), guitarras e percussões.
“Todos os Dias…” é uma viagem circular. Para sermos mais precisos, em espiral. Ciclo da voz que nasce, cresce e não morre. A imagem do berço com um bebé está presente em ada etapa da viagem, em cada história, nos silêncio que intercalam essas histórias. O canto surge das brumas do “Nevoeiro”, de Pessoa, para de imediato se jogar o primeiro jogo, na passagem para “Ser pessoa”, prelúdio e movimento da onomatopeia e do sussurro para a fala. “Ser pessoa” que volta no meio do disco, num “intermezzo” em forma de polifonia brincalhona onde as vozes dos homens provocam e convidam ao riso de Amélia e, no final, numa “fuga” em que as palavras regressam ao berço a à matriz da vibração primordial.
Há grandes canções em “Todos os Dias…”: “O cego pedinte”, em que a poesia do romanceiro algarvio se teatraliza na plasticidade da voz de Amélia Muge, “O mal-lavado”, atravessado por sobressaltos contraditórios de uma gaita-de-foles (Paulo Marinho) e um bendir (Rui Júnior). “Terreiro dos passos”, dedicada a José Mário Branco, revela o lugar central da música de Amélia Muge, igreja e camarim, onde a cantora veste “o espaço do centro” de “uma casa onde nunca entra”. O violoncelo de Luís Sá Pessoa traz negrume e dramatismo à música (“A senhora está sentada”, imagem do feminino velado, que chora e cura, “matéria sem nome transformada numa estátua que não tem sono nem fome”). Amélia Muge guarda espaço para mais. Para o sorriso e o escárnio subtil. Em “Os novos anjos”, onde José Afonso desce à terra para se confrontar sabe-se lá com que filhos da madrugada que “chegam aos magotes”, ou em “Leões e mais”, selva onde os reis são animais de brinquedo e a voz da cantora parece mimar os trejeitos infantis de Lena d’Água. E há outros portos de abrigo e cais de partida: na Galiza, nas “Cantigas a Rosália” escritas por Emílio Pita em homenagem a Rosália de Castro. Ou nas vozes das duas irmãs, Amélia e Teresa, unidas numa mulher só, em “O pastorinho”.
Um dos álbuns portugueses do ano. Para ouvir e desfrutar “todos os dias”. De todas as vidas. “É a hora!”

Amélia Muge – “Em Público” (entrevista)

pop rock >> quarta-feira >> 26.01.1994


AMÉLIA MUGE *
EM PÚBLICO



Aguarda-se com grande expectativa o seu próximo álbum. José Martins vai, como no anterior, tomar as rédeas do poder ou haverá, desta vez, maior controlo da sua parte?
Nunca tenho a sensação de que estou a dirigir as operações. Até mesmo quando componho, sinto sempre que há interferências, em concreto dos próprios materiais que estão em jogo. São eles que se impõem e me arrastam. O novo disco, é evidente, reflecte muito mais um diálogo e a evolução natural desse diálogo. Tenho muitas coisas que começaram por ser tocadas de uma certa maneira e que, neste momento, já estão a ser tocadas de outra. É um disco que reflecte uma caminhada, bastante mais do que o outro.

Quais são as etapas principais dessa caminhada?
O papel individual de cada um no colectivo que representa este disco [José Martins, Luís Sá-Pessoa] está mais bem definido, sentimo-nos os três melhores na nossa individualidade. O novo disco vai ter coisas compostas há muitos anos, em Moçambique, as coisas novas misturam-se com as antigas. Um dos grandes defeitos, mais do que virtudes, de uma pessoa como eu – é esta de dizer: “Será que vou conseguir meter nesta leva aquela e aquela canção que ficaram de fora e que eu gostava de aproveitar?” Estou sempre insatisfeita porque tenho imenso material e, muitas vezes, a selecção continua a não depender de mim. De repente, ponho qualquer coisa cá para fora e o interesse das pessoas é tão grande que a canção acaba por se impor, sem que haja uma selecção criteriosa minha. Mas isso é bom.

Em que estado se encontra a sua ligação com a música tradicional? Está já confirmada a sua participação no festival Intercéltico deste ano…
Não sei muito bem o que é a música tradicional. Sei que não tem a ver com formalismos mas mais com atitudes, com aproximações que ultrapassam as próprias morfologias musicais. Para mim, a importância do Intercéltico tem exactamente a ver com isto: por um lado, com esse espírito aberto que nós, ao longo da história, nos habituámos a encontrar nos celtas, embora depois existam certos povos, como a Irlanda, que acabaram por transformar essa música num símbolo de resistência e, aí, ela acaba por cristalizar em termos formais. Mas, regra geral, o espírito da música tradicional é de grande abertura e troca de experiências. Há muita coisa que as pessoas não se habituaram a ver dentro do tradicional, como sejam novos temas, novas sonoridades, novos métodos de se trabalhar, muita coisa que irá fazer parte, no futuro, do património tradicional.

Até que ponto o seu estilo vocal incorpora elementos e técnicas do canto tradicional?
Mais, se calhar, que o canto tradicional, o canto das pessoas que cantam. Por exemplo, nas Janeiras, em que se verifica a prática de cantar em conjunto, de estarmos ao lado a ouvir a voz do outro, sem ser através do disco nem da rádio. A ideia de coro é fundamental para o canto individual. Quando ouço a voz de um homem ou de uma mulher a cantar nas Janeiras, não poso deixar de ver, por trás, um avô que ensinou aquilo àquela pessoa, um passado que é familiar antes de ser social, do testemunho de estar vivo que passa pela canção.

É essa sua sensibilidade ao canto comunitário que está na base da formação do projecto de vozes femininas Agrupa?
Pois, que eu não queria que fosse o “meu” projecto. Acho que só pode haver um projecto quando há materiais, coisas concretas a partir das quais se pode trabalhar. Isso é uma coisa que eu já tinha. Tenho certas coisas que nunca cantarei sozinha, que têm a ver com um colectivo de vozes. Por outro lado, não sei se por estar há demasiado tempo deligada disso que é ouvir outras vozes a cantarem em conjunto, vozes atrás da porta como se ouvia em Moçambique, sinto muita falta desse lado. A primeira vez que voltei a sentir de novo isso foi quando estava em casa de uma amiga, na Graça, e ouvi pessoas a ensaiarem as marchas populares de Lisboa. Afinal, há gente que canta! Isto para mim é fundamental. Por outro lado, a própria prática de cantar a várias vozes, talvez porque componho muito com a voz, é que me permite chegar aos instrumentos de uma outra maneira. Há, pois, também questões de aprendizagem. Se os processos são ricos, dão produtos ricos.

Vão ser só a Amélia Muge, a Margarida Antunes e a Cristina Antunes?
Para já, somos o núcleo duro. Gostaríamos muito de encontrar outras pessoas na mesma onda. Por exemplo, pessoas como a Filipa Pais, a Minela, a Teresa Salgueiro ou a Maria João. Inclusive, já falámos. Na teoria, tanto a João como a Filipa disseram que sim. Só que têm surgido problemas de ordem prática… Enquanto eu, a Cristina e a Guida nos encontramos uma vez por semana, não só para cantarmos como para fazermos exercícios respiratórios, vocais… Para já, estamos as três a pensar propor um trabalho de conjunto para Lisboa, Capital da Cultura, que seria um espectáculo ao vivo. Já temos um reportório de seis canções, compostas por mim, com letras minhas e duas da Hélia Correia. Tencionamos também ir buscar coisas do Lopes Graça, do Zeca, não serão só originais.

Passemos a uma questão delicada, relativa à UPAV e ao modo como foi distribuído e promovido o seu álbum de estreia, “Múgica”, que desapareceu do mercado depois de uma primeira edição esgotada em poucos dias…
O disco, de que foi feita apenas uma primeira edição de 2000 exemplares, está esgotadíssimo, é verdade. Na altura em que se estava a pensar fazer uma segunda edição, surgiram os problemas da suspensão de toda a actividade editorial da UPAV. Os dois mil exemplares editados são, de facto, um número muito baixo, que teve a ver com contenção de despesas e com uma sondagem de mercado. Mas, a partir do momento em que o disco esgotou… E quem vendeu mais foram os armazéns, o Serafim, da Movieplay (ver página 4 deste suplemento); e, se vendeu, foi porque as discotecas o procuraram…

Não se sente frustrada por o disco ter chegado a tão poucas pessoas?
Há sempre a hipótese de nos tornarmos profissionais da frustração, o que, neste país, é muito comum. Às vezes penso até que as pessoas têm um certo gosto em estar frustradas, por acharem que ficam mais interessantes. Tudo aquilo que possa ter corrido menos bem em relação ao disco não elimina o facto de a UPAV ter apostado na gravação quando nenhuma editora quis pegar no disco; como não elimina a importância que tudo isso teve para mim no determinar de um certo tipo de opções que eu fui tomando, que me permitiram, no fundo, fazer aquilo que quero que é estar a trabalhar mais na música. Considero que o processo em si, da feitura do disco, foi extremamente positivo. Sobre o lado que tem mais a ver com a venda, fica, apesar de tudo, em aberto a hipótese, no caso de o próximo disco vender bem, de ser feita a reedição do primeiro. Vamos até imaginar que tinha sido feita uma edição de 10 mil exemplares e tivesse apenas vendido mil. Nesse caso, estaria muito pior do que estou neste momento, em que sei que não há um único disco cá fora.

Hoje, que o seu nome se tornou já mais conhecido, mudou alguma coisa na atitude das editoras em relação a si? O próximo disco já tem editora?
Em relação ao novo álbum, estou ainda na fase de selecção dos temas. Tenho um bocado de dificuldade em me situar em relação a isso. Para mim, as editoras não são um todo homogéneo. Estou a seguir com o maior interesse o actual movimento das pequenas editoras independentes. Gosto pouco da palavra coerência, se coerência tem a ver com qualquer coisa de muito certinho, isto assim porque liga com aquilo. Uma das coisas que me dá enorme gozo é encontrar ligações insuspeitadas. E até sou capaz de chegar à conclusão de que tenho muito a ver com uma multinacional…

Será que certas resistências postas pela indústria à sua música se prendem com a sua intransigência, com a exigência de imposição de regras próprias?
Mas se também a indústria é difícil para as pessoas! Aí estamos iguais! É preciso ter muita força para encontrar a voz interior que toda a gente deve ter. E se não tem é porque estamos numa época onde se entende a comunicação apenas pelo lado de fora. Temos de comunicar e de pactuar com tanta coisa que, a certa altura, fica pouco espaço para comunicar connosco mesmos. E isso eu considero essencial. Mas não acho que seja uma pessoa intransigente, pelo contrário. Considero sempre qualquer proposta, seja ela qual for, a mais maluca ou que aparentemente não tenha nada a ver comigo, como um desafio,

* Cantora e compositora. Prepara o lançamento do projecto de vozes femininas Agrupa e de um novo álbum a solo, cujo reportório será apresentado parcialmente nos três espectáculos ao vivo de amanhã, sexta e sábado no Instituto Franco-Português