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José Mário Branco, Amélia Muge, João Afonso, José Martins, Rui Júnior, José Afonso – “José Mário Branco, Amélia Muge, João Afonso, José Martins E Rui Júnior Ontem Em Lisboa – Iluminaram As Canções De José Afonso”

cultura >> quinta-feira >> 15.12.1994


José Mário Branco, Amélia Muge, João Afonso, José Martins E Rui Júnior Ontem Em Lisboa
Iluminaram As Canções De José Afonso



UMA GRANDE claridade banhou as canções de José Afonso. José Mário Branco, Amélia Muge e João Afonso deram novas vozes à voz do mestre. Limparam o pó ao passado, afirmaram novas vias, mandaram dizer que há uma dinastia afonsina paralela à dos filhos da madrugada. Aconteceu no S. Luiz, em Lisboa, no primeiro dos três espectáculos “Maio Maduro Maio”.
Faz bem ouvir música assim. Desintoxicarmo-nos das toxinas da moda. Participar, no verdadeiro sentido do termo, na essência musical de um dos maiores criadores da música portuguesa de sempre, José Afonso, e, ao mesmo tempo, reescutá-la, vibrante, nas vozes distintas de três artistas para quem é importante a manutenção de um elo da música portuguesa que importa não quebrar. Quem se deslocou nas noites de terça e quarta-feira ao Teatro S. Luiz em Lisboa teve a oportunidade de assistir a um dos melhores concertos de música portuguesa do ano. No espectáculo “Maio Maduro Maio”, centrado nas canções de José Afonso, apresentado anteriormente em diversas localidades portuguesas, revisto, aumentado e enriquecido nesta nova ocasião com novas canções. Com a edição de um disco em mira. Amanhã será o derradeiro encontro. A não perder.
A versão instrumental de “Maio Maduro Maio” deu o mote para uma noite inesquecível. A solo ou em harmonizações a duas ou três vozes entrelaçadas em arquitecturas atentas ao pormenor, os três cantores mergulharam no oceano musical e poético de José Afonso. João Afonso, sobrinho de Zeca, cantou com uma naturalidade e uma facilidade notáveis. A música do tio corre-lhe nas veias. Na sensibilidade com que se entrega ao balanço das canções e na agilidade com que se baloiça nas suas redes rítmicas, a sua voz flutua com a arte de um trapezista. “Utopia”, “Sodoma e Gomorra” (música original sua) “Já o tempo se habitua”, “Lá no Xenparaga” (onde imitou tonalidades vocais africanas), “Se voares mais ao perto” (com os restantes músicos a fazerem o acompanhamento em adufes), “Ali está o rio” e “Fura fura” revelaram um cantor de grande futuro. Amélia Muge mergulhou nas “nuances” mais poéticas da música, deixando-se seduzir pelas melodias, pesquisando a divisão mínima dos sons, deslizando por glissandos entre o suspiro e os registos de maior extroversão. Em “Que amor não me engana”, “Canção de embalar”, “Cigano maltês”, “Nem sempre os dias são dias passados”, uma composição sua com texto de Zeca Afonso, e “A cidade”, instante mágico em que a sua voz bailou no silêncio com as cordas de uma guitarra em estado de graça, de José Mário Branco. Os duos com João Afonso, em “Canção de embalar”, “O homem voltou” e “Benditos”, puseram em relevo o casamento perfeito dos timbres. Duas vozes irmãs.
José Mário Branco, há muitos anos que não o ouvíamos em forma tão apurada. Maestro subtil, função que desempenhou com tacto e sentido de humor, foi dos três o que mergulhou mais fundo nas canções de José Afonso. Na sua voz as palavras de Zeca foram o mesmo e outro lume. Uma voz iluminando a outra, ausente, e ao mesmo tempo misteriosamente presente. Os sentidos – das palavras e do corpo – ressuscitaram numa ressonância grave, a contar-nos, a seu modo, coisas fortes, que hão-de continuar a tocar-nos por muito que alguns se esforcem em obscurecê-las ou esvaziá-las das suas intenções. José Mário Branco rubricou no S. Luiz interpretações de antologia: “Pastor de Bensafrim”, “Canção da paciência”, “De sal de linguagem feita”, autênticos actos de paixão. Mas também na guitarra José Mário Branco impressionou. Jogou com a afinação das cordas durante “A cidade”, brincou com as melodias, provocou, acentuou cadências, soltou queixas e sarcasmos. E depois sustentou o tempo do espectáculo, com deixas e apontamentos sempre a propósito. Enquanto José Martins afinava a braguesa cantou um excerto de “Eu tenho dois amores”, de Marco Paulo, naquela versão que faz rimar “amores” com “tractores”. A ironia passou, a anteceder “O país vai de carrinho”: “tenho aqui uma força de bloqueio” e logo a seguir, cáustico, em comentário aos aplausos da assistência: “pois, mas depois chegam lá e votam todos nele outra vez!”. Quando alguém gritou da plateia, a pedir que cantassem “Grândola”, respondeu “é sempre em frente, logo a seguir a Alcácer!…”. Brincalhão, antes de se lançar no segundo “encore” – um “medley” de canções interpretadas ao longo do espectáculo – outra vez para o público: “São uns insaciáveis!”.
Uma palavra para José Martins e para Rui Júnior, artífices inspirados nas teias da percussão, o segundo também na guitarra e na braguesa. Das suas mãos saíram pequenos apontamentos que valeram ouro. Rui Júnior fez passar em “Maio Maduro Maio” um rio de gotas de pedra, com o seu pau-de-chuva. Nas tablas ou nas congas foi sempre de uma serenidade matemática. José Martins, sempre em cima da emoção, contrapôs às guitarras de Mário Branco e Amélia Muge as suas próprias articulações harmónicas.
Os três juntaram as vozes a um sentimento comum, em “Venham mais cinco”, “Cantar galego”, “Maio maduro Maio”, “Nefertite não tinha papeira”, “Fura fura”, “O que faz falta” e na carta final incendiada, “Zeca”, da autoria de José Mário Branco.
As canções de José Afonso estão e continuarão vivas enquanto vivas permanecerem as vozes e a memória de quem lhe compreendeu a obra e a vida. Ficaram as palavras de Mário Branco, enamorado da música, fazendo eco: “é tão bonito! as canções cantam-se sozinhas!”

Os Filhos Da Madrugada – “Até De Madrugada”

pop rock >> quarta-feira >> 29.06.1994


Até De Madrugada

Dezoito bandas, não, 19 – com a entrada, à última hora, dos Mão Morta no programa, menos os GNR que não podem – vão cantar aos quatro ventos as canções de José Afonso. São os Filhos da Madrugada, depois do disco, num megaconcerto em Alvalade. Acalmada a tempestade dos “cachets”, vem aí a “terra da fraternidade”.



Promete durar até às tantas o concerto, das 19 bandas nacionais que integram o duplo compacto “Os Filhos da Madrugada Cantam José Afonso”, no estádio do Sporting. É a primeira vez que a maior parte das principais bandas portuguesas da actualidade toca junta num projecto comum. A própria estrutura do espectáculo difere do habitual. Haverá uma continuidade musical, sem hiatos, com um elo musical a unir as diferentes actuações, evitando-se deste modo as sempre demoradas e indesejáveis pausas para mudança de PA.
Cada banda terá direito a tocar durante 15 minutos, aproximadamente. Este tempo inclui a interpretação do tema respectivo incluído no disco, sendo o resto completado com temas do seu próprio reportório. Sérgio Godinho, um dos “ideólogos” e dos maiores entusiastas em levar à prática os Filhos da Madrugada (embora a ideia original seja “pertença” de Tim, Manuel Faria e João Gil) – mas que não aparece no disco, uma vez que o critério escolhido levou à aceitação exclusiva de bandas, deixando de fora, nunca ninguém explicou bem porquê, os intérpretes individuais -, vai tocar na qualidade de convidado especial dos Sitiados.
Outra das preocupações da organização, a Regiespectáculo, é o aspecto cénico e visual do espectáculo. Assim, irão ser montados em Alvalade os habituais monitores de vídeo, que apanham os pormenores e ajudam a visão dos que ficam mais longe do palco. O palco será objecto de uma decoração especial, alusiva à figura de José Afonso, da autoria de Henrique Cayate.
E vamos a números. Descontando os 70 mil discos declarados vendidos de “Os Filhos da Madrugada Cantam José Afonso”, número que já deve estar desactualizado, temos que o concerto tem hora de início marcada para as 20h30, três horas depois da abertura dos portões, prevendo-se que durará cerca de quatro horas, terminando, portanto, depois da meia-noite, quiçá para fazer jus ao nome “Filhos da Madrugada”. O preço dos bilhetes (40 mil postos à venda) oscila entre os dois mil escudos, para o topo sul e relva, três mil escudos, para a bancada nova, e 3500 escudos, para a bancada central. O palco, embora sem bater nenhum recorde, tem dimensões generosas: 100 metros de frente por 14 de altura, com 20 bocas de cena. “Quarenta toneladas de equipamento em 25 camiões TIR vão dar trabalho a cerca de meio milhar de técnicos e profissionais, que contam com seis dias para… (bocejo) dotar Alvalade de condições para que este evento fique meszzzzzz, perdão, mesmo na História, não apenas da música, como da produção de espectáculos em Portugal.” Mais 600 metros quadrados de telões impressos, dois ecrãs de vídeo de sete metros. E claro, 800 biliões de litros (número não oficial) de cerveja, postos à disposição de todos por uma marca nacional, cujo nome, Sagres, não podemos divulgar, que se prontifica a matar a sede ao pessoal. Sim, estão reunidas todas as condições para que o espectáculo dos Filhos da Madrugada seja um êxito.
José Afonso? Qual José Afonso? Ah, sim, esse, o Zeca, grande companheiro de luta, referência da música popular portuguesa, também é importante, claro. Já morreu, coitado! Tinha um coração de ouro, canções giras e usava bóina, que nós bem vimos as fotografias. Pois, José Afonso, a sua memória e a sua música, também têm lugar neste super-ultra-hiper-megaconcerto cujo orçamento, como Lisboa 94 anunciou, com mal disfarçado orgulho, ronda o 130 milhões de escudos. Lá, onde está agora, ele, o da bóina, o das canções e das revoluções, deve sentir um misto de preocupação e orgulho. Os putos vão ouvir a sua música, o seu nome andará na ponta da língua de milhares, o disco venderá ainda mais alguns milhares. Depois virá aos poucos o olvido e de novo o esquecimento e a homenagem ao senhor que se segue.
Mas, por todos estes motivos e porque, a par de pequenas “traições”, há no disco versões à altura dos originais do autor do “Coro dos Tribunais”, vale a pena rumarmos todos a Alvalade. Vão estar presentes, se a memória não nos trai, todas (à excepção dos GNR, pelas razões já conhecidas de todos, de incompatibilidade de calendário) as bandas portuguesas mais importantes (comercialmente falando e em termos de exposição mediática, como é evidente).
30 DE JUNHO, ESTÁDIO DE ALVALADE, LISBOA, 20H30

Adolfo Luxúria Canibal – “Mão Morta Junta-se À Homenagem A Zeca Afonso – Filhos Desavindos” (artigo | polémica)

cultura >> sexta-feira >> 17.06.1994


Mão Morta Junta-se À Homenagem A Zeca Afonso
Filhos Desavindos



ERA PARA ser uma coisa pacífica. Quase uma reunião de amigos. Com copos e palmadinhas nas costas. Afinal, a conferência de imprensa dada antontem de tarde no Hotel Tivoli, em Lisboa, pela organização do espectáculo de homenagem a José Afonso pelos Filhos da Madrugada, agendado para dia 30 em Alvalade, acabou por provocar celeuma.
Ruben de Carvalho, elemento de Lisboa 94, e Manuel Faria, director artístico do projecto, divulgaram números e percentagens. O espectáculo começa às 20h30 e está previsto durar quatro horas. As dezanove bandas (incluindo os Mão Morta que, após posterior reunião do seu empresário, Vítor Silva, com Ruben de Carvalho, decidiram participar) reunidas sob a bandeira Filhos da Madrugada vão actuar sem interrupções segundo um alinhamento que não é o mesmo do disco. Sérgio Godinho, o único dos nomes presentes que não consta do álbum, vai actuar com os Sitiados. Cada banda interpretará o respectivo tema de José Afonso que tocou no disco mais composições próprias num total, flexível, de quinze minutos por actuação. O orçamento final, calculado já depois de confirmada a impossibilidade dos GNR actuarem em Alvalade, ronda os 12 mil contos, “incluindo a chamada margem de caçago” como referiu Ruben de Carvalho que classificou o espectáculo como “uma média-grande produção”.
Surgiu então a questão dos “cachets”. A edição da passada quarta-feira do suplemento PopRock do PÚBLICO alertara já para a existência de problemas. Adolfo Luxúria Canibal, vocalista dos Mão Morta, afirmou que a sua banda esteve sempre disponível para tocar com os Filhos da Madrugada: “Após uma votação interna decidimos fazer o espectáculo. O Mário Dimas [agente dos Mão Morta] comunicou-nos o ‘cachet’ que a organização nos propusera. Respondemos eu esse não era o nosso ‘cachet’ habitual para este tipo de espectáculos. O Mário Dimas disse-nos que a organização era perfeitamente intransigente nesse ponto.” Luxúria Canibal critica o critério de atribuição de “cachets” que, segundo ele, peca por “ausência total de objectividade” – exemplificando com o facto de haver “bandas” que tocam muito e recebem pouco e bandas que costumam receber ‘cachet’ alto e vão receber ‘cachet’ baixo, nada fazendo acreditar nos escalões propostos”. Escusando-se a divulgar os nomes das bandas incluídas no tal “primeiro escalão” com a justificação da “deontologia do meio e do trabalho”, Ruben de Carvalho salientou, porém, que o critério escolhido de atribuição de “cachets” obedece a uma evidência ditada por ninguém ou nenhuma entidade em especial mas pelas próprias leis de mercado”.
Mais grave foi a acusação de Luxúria Canibal de que “face à envergadura do investimento de Lisboa 94 e, sendo o espectáculo dos Filhos da Madrugada feito com dinheiros públicos, deveria ter havido um concurso público como manda a lei”. “Uma pessoa olha para o escalão de ‘cachets’ das bandas que vão tocar, diz o elemento dos Mão Morta, “e verifica que a Regiespectáculo, que organiza o concerto, faz também a representação de bandas. E que a maior parte das bandas da Regiespectáculo está incluída nos escalões superiores de atribuição de ‘cachets’.”
Ruben de Carvalho reagiu com violência ao que considerou como “insinuações graves”, referindo que sendo Lisboa 94 “uma entidade de direito privado de capitais públicos, nada a obriga a fazer concursos públicos. Mesmo a administração pública não é obrigada a fazer qualquer opção de compra de serviços de mercadoria exclusivamente por concurso público. Poderá fazê-lo de outras formas. Assim o entendeu Lisboa 94”.
Quanto aos Sitiados e aos Censurados, outras duas bandas “dissidentes”, os primeiros resolveram oferecer o seu “cachet” À Fundação José Afonso, enquanto os segundos, bem ora não concordando com os critérios de atribuição de “cachets”, vão tocar, segundo a sua representante, Ana Moitinho, apenas “porque vai ser a oportunidade de se despedirem do seu público, uma vez que a banda acabou”.
No meio de toda esta polémica ficou a sugestão feita por Ruben de Carvalho, para “as bandas todas se reunirem e dividirem o total dos ‘cachets’ equitativamente entre si”.