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Vários (Amélia Muge + Nill Cruz + Pãodemónio + José Mário Branco + Verdadeiro Académica Música) – “Festa Anti-Racista – O Trabalho Dá Liberdade” (concertos / festivais / comuna)

cultura >> terça-feira, 23.03.1993


Festa Anti-Racista
O Trabalho Dá Liberdade


“O ESTADO, não só enquanto soberano de populações semi-bárbaras mas também enquanto depositário da autoridade social, não deveria ter nenhum escrúpulo de obrigar e, se necessário, forçar estes negros da África, esses párias ignorantes da Ásia, a trabalhar, quer dizer, a aperfeiçoar-se pelo trabalho, a adquirir melhores meios de existência pelo trabalho, a civilizarem-se pelo trabalho”. Rezava assim um texto publicado pelo Comissário Real da África portuguesa, em 1898, afixado em exposição numa galeria do Teatro da Comuna. A escravatura em Portugal acabara 19 anos antes, em 1869, no papel. Em seu lugar, surgira o trabalho forçado, de modo a garantir a mão-de-obra barata necessária à sobrevivência da indústria em Portugal, incapaz de responder ao desafio tecnológico lançado pela Inglaterra no princípio do século. “O trabalho dá liberdade”, “arbeit macht frei”, anunciava-se à entrada dos campos de concentração na Alemanha, durante a II Guerra Mundial.
Fruto de preconceitos culturais e sociais, de mãos dadas com factores económicos, o racismo parte de uma asserção “filosófica” fundamental: de que o racionalismo (de Aristóteles a Descartes e ao idealismo alemão, e, como consequência, o materialismo) é a expressão mais elevada do espírito humano. Como este racionalismo nasceu historicamente confinado ao Ocidente, à Europa e à raça branca caucasiana, daqui se inferiu que todas as restantes cores, estruturas sociais e modos diferentes de pensar são inferiores.
É assim que, prestes a chegar ao final do século XX, a praga do racismo continua por eliminar e, pior do que isso, a fazer vítimas. Como aconteceu em Sharpville, neste mesmo dia, a 21 de Março de 1960, em que dezenas de manifestantes negros foram chacinados por protestarem contra a discriminação racial – prova de que a demência humana é infinita.
Domingo de tarde, dia mundial de luta contra o racismo, no Teatro da Comuna, um punhado de gente voltou a rebelar-se contra este estado de coisas. Haveria música no programa, comes e bebes, e exposições alusivas ao tema. Os lucros da iniciativa (se os houve: os bilhetes custavam 1000 escudos, as despesas foram muitas) reverteram a favor das entidades organizadoras, o MAR-Movimento Anti-Racista, a Survie e o Comité Palestina. O pequeno recinto da Praça de Espanha encheu-se de pessoas que preferiram dizer não à indiferença, em plena tarde de mais um Benfica-Sporting.
Os meios eram poucos mas a vontade muita. Apertados sobre o palco minúsculo, os músicos amadores angolanos do Verdadeiro Académica Música actuaram em primeiro lugar, trazendo consigo os ritmos e o calor de África. Amélia Muge e o brasileiro Nill Cruz vieram em seguida, lado a lado, alternando vozes e alertas. A autora de “Múgicas” apresentou o inédito “Império das fomes” e uma adaptação “tropical” de “Barro negro”, de José Afonso. O brasileiro pôs toda a gente a cantar a única cor que importa, a “cor da alma”. Depois, tempo de farsa, com o grupo Pãodemónio na apresentação do “sketch” “Apoio à vítima”. Polícias de ventre saliente e gesto boçal, metidos a ridículo, numa crítica mordaz ao autoritarismo e ao servilismo burocrático, mais importantes que o sofrimento e as queixas da vítima, o negro Possidónio. Por fim, José Mário Branco – “podem contar sempre comigo para este género de iniciativas” – cantou, emocionado-se e amocionando, com a “Queixa das jovens almas censuradas”, de Natália Correia, e a “Inquietação” que procura a ideia certa e a acção que modelam o futuro. Despediu-se de punho erguido.
A seguir ao jantar, com os Verdadeiro Académica Música de novo sobre o palco, o baile durou até às tantas.

Pain Killer / Painkiller – “Uma Dor Sem Remédio” (concertos)

pop rock >> quarta-feira, 31.03.1993


UMA DOR SEM REMÉDIO




Iconoclasta do jazz, instigador dos piores instintos do saxofone alto e agotador-mor das ondas sonoras do final do século, John Zorn regressa na sexta-feira a Portugal. Bem acompanhado.
Pain Killer, o seu projecto mais recente, trará a Portugal o baixista Bill Laswell e o percussionista dos Napalm Death, Mike Harris. “Guts of a Virgin” é um álbum assinado por esta banda cujo título é significativo da temática escalpelizada pelo saxofonista ao longo dos últimos anos.
O ambiente e a simbologia do “thriller”, com todo o seu cortejo de crimes, detectives perdidos e personagens nocturnas, é uma das obsessões de John Zorn. O cinema, projectado em tons de negro. Em “Spillane”, inspirado no escritor policial Mickey Spillane, é todo um género que o músico transforma em fonte inesgotável de nostalgia e paranoia. “The Big Gundown”, com arranjos de temas de filmes compostos por Ennio Morricone, “Filmworks 1986-90” e “Godard”, longa faixa incluída no álbum de homenagem a Jean-Luc Godard, “Godard, ça vous Chante?”, são exemplos significativos da relação que mantém com a sétima arte.
Adepto confesso da velocidade e sobreposição de registos musicais na aparência incompatíveis (daí a referência à música de desenhos animados, influência que de resto Zorn assumiu, via Carl Stalling, autor de bandas sonoras dos “cartoons” animados de Tex Avery para a Warner Bros, durante os anos 30, 40 e 50), John Zorn carregou a fundo no acelerador em álbuns como “Naked City” e “Torture Garden”. Submetida a um compressor monstruoso, a música de Zorn tende “para a morte”, como ele próprio admitia em entrevista ao PÚBLICO em 1991. Estética que leva ao paroxismo na fixa “Speed Freaks”, de “Naked City”, sequência de 32 géneros de música em menos de um minuto.
Faz deste modo sentido que John Zorn tenha encontrado no seu émulo saxofonista Ornette Coleman, e no “free jazz” em geral, a carne sonora ideal para dissecação estilística, operação que empreendeu de forma admirável no álbum “Spy vs. Spy”, sobre obras daquele compositor. Há todavia outra faceta sua, mais calma, devedora do “bebop”, exemplificada na obra-prima “Deadly Weapons”, com Steve Beresford, David Toop e Tonnie Marshall. Num dos seus éultimos trabalhos, “Elegy”, deparamos com um músico que soube ultrapassar a brutalidade dos Naked City, voltado para sonoridades menos frenéticas mas igualmente inovadoras.
Bill Laswell, na ocasião baixista dos Pain Killer, por seu lado, é um músico que só por si mereceria um tratado. A sua obra como compositor, instrumentista e produtor é imensa, apontando, desde há anos novos caminhos ao rock, blues, punk, funk, música industrial, dança, heavy metal, hip hop e cruzamentos “ethnno” de toda a ordem. A esta pluralidade de músicas Laswell emprestou o seu cunho visionário e o som vulcânico da sua viola baixo.
A lsita de músicos e projectos em que se viu envolvido é incomensurável. Com a experiência pioneira dos Material (“Memory Serves”, “Temporary Music”, “One Down” e, já em segunda vida, “Seven Souls”) na dianteira, lugar de múltiplas experiências por onde passarm os sons e as vozes de Henry Threadgill, George Lewis, Fred Frith, Sonny Sharrock, Whitney Houston, Archie Shepp, Nile Rodgers, William Burroughs, Shankar, Sly Dunbar, Fela, Daniel Ponce, Zakir Hussain, entre outros. Campo de batalha, de “collision music”, aí se traçaram sínteses que tiveram continuidade no futuro. Fundamentais são também os álbuns a solo, “Baselines”, “Hear No Evil”, e os projectos que liderou: Deadline, Last Exit e SXL. Como produtor, Bill Laswell trabalhou com Iggy Pop, Public Image Ltd., Peter Gabriel, Motorhead, Ramones, Mick Jagger, Laurie Anderson, Ryuichi Sakamoto, Ginger Baker, Swans, Sly & Robbie, James Blood Ulmer, Shango, Maceo, Yellowman, Manu Dibango, Toure Junda, Fela Kuti, Mandingo…
Depois, uma longa parada de notáveis com quem tocou ou de algum modo colaborou, na qualidade de simples convidado a orientador estético, fora ou no seio das editoras que ajudou a fundar, OAO e Axiom: Peter Brotzmann, Ronald Shannon Jackson, Toshinori Kondo, Sonny Sharrock, Brian Eno / David Byrne, Peter Gabriel, Golden Palominos, Massacre, Fred Frith, Curlew, Tom Verlaine, Kip Hanrahan, David Moss, Shankar, Afrika Babaataa, Bootsy Collins, Herbie Hancock, Nona Hendrix, Last Poets…
Entre “field recordings” recolhidos um pouco por todo o globo, da Ásia à Gâmbia e a Marraquexe, com uma lendária gravação dos “Masters musicians of Jajouka” em colaboração com Bachir Attar, pelo meio, Bill Laswell divide actualmente as suas actividades entre os Pain Killer e um trio com Ginger Baker e o tocador de kora Foday Musa Suso.
No Armazém 22 acontecerá uma explosão de criatividade e energia. Num cenário coincidente com as imagens e vibrações do sofrimento urbano.
Lisboa, 2 de Abril, Armazém 22

The Bothy Band – “Old Hag You Have Killed Me”

pop rock >> quarta-feira, 31.03.1993
WORLD

O FULGOR DO RELÂMPAGO


THE BOTHY BAND
Old Hag You Have Killed Me
CD Green Linnet, distri. Megamúsica



Há discos agradáveis, discos coerentes, discos importantes, discos que se deixam ouvir. Discos de que se gosta e discos de que se aprende a gostar. Mas há também uma espécie rara de discos que impressiona de maneira diferente. Discos que, além das qualidades passíveis de análise, têm algo que os distingue e os torna excepção. “Old Hag You Have Killed Me” é um desses discos. É o segundo álbum dos Bothy Band e permanece até hoje como um marco da música tradicional irlandesa.
De entre o quadrado mítico formado pelos Planxty, Chieftains, De Danann e Bothy Band, este últimos são um caso à parte. Enquanto qualquer daquelas bandas teve uma obra em continuidade, de onde sobressaíram inevotáveis obras-primas, os Bothy Band surgiram mais como um relâmpago, uma conjugação cósmica de talentos que viveu em permanente estado de graça. Nos três álbuns de estúdio que gravaram, concentraram doses maciças de talento, chispas de génio que revolucionaram por completo o modo de sentir e dizer a música irlandesa. “Old Hag You Have Killed Me” é o cume dos cumes desse génio. Era difícil encontrar reunida numa formação os nomes que no ano de 1976 se congregavam nos Bothy Band: Matt Molloy, Paddy Keenan, Kevin Burke, Triona Ní Dhomhnaill, Micheál Ó Dhomhnaill e Donal Lunny.
Os mesmos que incidiriam no posterior e igualmente magistral “Out Of The Wind Into The Sun”, já há bastante tempo editado em CD no nosso país. Impressionava então como continua a impressionar hoje, a violência e virtuosismo desmedidos das “uillean pipes” de Paddy Keenan, deste lote de músicos aquele que apresenta uma carreira mais discreta mas não menos importante (façam o favor de escutar o seu álbum a solo “Poirt Na Phiobaitre” e tirem conclusões…
Os arranjos inovadores, onde assumiam primordial relevo as cordas de Donal Lunny e a originalidade da espineta electrificada de Triona Ní Dhomhnaill (mais tarde viria a especializar-se no cravo), constituem outro pólo de originalidade. As proezas vocais de Triona ombreavam na altura com as de uma tal Dolores Keane dos De Danann. “16 come next Sunday, faixa que abria o segundo lado da velhinha rodela de vinil, brota com a frescura da água de uma fonte. Deleite absoluto. “Fionnghuala” é um exercício espantoso sobre a “mouth music” gaélica ao qual não falta o humor de palavras/fonemas totalmente inventadas.
Espantosas são igualmente todas as sequências instrumentais, com destaque para os vertiginosos “Farewell to Erin” e um “Michael Gorma’s” de antologia. A combinação da flauta de Matt Molloy com as “pipes de Paddy Keenan e o violino de Kevin Burke (álbum novo nos escaparates, “Open House”, objecto de crítica num dos próximos números deste suplemento) é perfeita. Fulgurante.
A conjunção de todos estes elementos num só disco acontece muito raramente. Como tal, a reedição, várias vezes adiada deste álbum é um acontecimento. Um objecto de culto. (10)