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Vários – “A Rapariga Com Olhos De Caleidoscópio” (lsd / destaque | dossier)

cultura >> sexta-feira >> 16.04.1993
DESTAQUE


A Rapariga Com Olhos De Caleidoscópio

“Imagine-se no interior de um barco, num rio, entre árvores de tangerina e céus de marmelada.” É assim que começa a canção dos Beatles, “Lucy in the sky with diamonds”, LSD, se a reduzirmos às iniciais do título. É do lado solar, caleidoscópico, do psicadelismo e da experiência com o ácido que marcaram os sonhos da geração de 60. A “trip” chegou ao fim em 1969. Na espiral de violência desencadeada pelos anjos do inferno, em Altmont. A viagem do submarino amarelo terminava em tragédia. Os Rolling Stones tinham-se apropriado dos comandos.



“Lucy in the sky with diamonds” do monumento “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band” fazia a apologia subliminar do ácido lisérgico, mais conhecido pela designação cabalística de LSD-25. Um filme de desenhos animados deu a conhecer, de forma bem mais explícita, a estrutura e lógica internas da viagem proporcionada pelo ácido – “Yellow Submarine”. O submarino amarelo, (o comprimido ou a minúscula “fita” que se engolia) veículo por excelência da viagem através das profundezas aquáticas, da água, que por sua vez é a imagem metafórica do Inconsciente. O filme de Richard Lester, protagonizado pelos bonecos animados dos “fabulous four” de Liverpool é a descrição ilustrada de uma (boa) viagem de LSD. Como o era, de resto, outra canção de “Sgt. Peppers”, “A Day in the life”, que remete para um “flashback” da mesma substância.
Mas se os Beatles personalizaram a “trip” em classe turística, os Rolling Stones não hesitaram em assumir o outro lado da viagem, a “bad trip”, descida aos infernos da mente, no álbum “Their Satanic Majesties Request”, reverso, não menos colorido, de “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”.

A Grande Alucinação

Tudo começou na margem ocidental do Atlântico, na Califórnia, sob a jurisdição do guru e teórico do LSD, Timothy Leary e a influência das leituras do argonauta do Inconsciente colectivo (ultraconsciente, durante o “passeio”…), Carl Jung, e dos papas da antipsiquiatria, Ronald Young e David Cooper, ou dos poetas da “beat generation”, Jack Kerouac e Allen Ginsberg.
Grupos que então despontavam na área de São Francisco – Grateful Dead, Jefferson Airplane, Quicksilver Messenger Service, Youngbloods -, embarcaram na viagem do psicadelismo e inventaram um nome novo para o Rock, o “acid rock”. Movimento que, entre outras facetas, se caracterizava por uma concepção alargada do tempo. A regra dos três minutos que era quanto bastava a Presley para derreter os corações dos adolescentes de uma América ainda combalida do pós-guerra, foi trocada por longas “jam sessions” de trinta e tal minutos com solos intermináveis que exploravam ao máximo a panóplia de efeitos electrónicos que, em paralelo, foram sendo deenvolvidos pela indústria. Viajava-se por dentro do cérebro e pelo interior dos sons. Os longos solos carregados de “feedback”, “wah-wah”, “fuzz” e reverberações eram insuportáveis para os “straight” e o paraíso para os “freaks” que se deixavam ficar pela relva, entre flores, incenso e odor a “patchouli”, num dos muitos “free festivals” de “acid rock” que então se realizavam. Eram os “hippies”, tão coloridos quanto inofensivos.
Se a viagem implicava os seus perigos para quem ousasse empreendê-la, o poder – após o assassinato de Kennedy, nas mãos da administração de Lyndon Johnson – via nela um perigo de outra ordem, a subversão. A ameaça vinha de jovens malditos que tibveram a ousadia de trazer a experiência alucinogénica para um contexto político. Os verdadeiros arautos da revolução, fruto da nova tomada de consciência. Jim Morrison, Jimi Hendrix e Janis Joplin, enquanto não sobreveio a “overdose”, puseram com ferocidade o dedo nas chagas de uma nação mal sarada do pesadelo chamado Coreia e nessa época de novo perdida nas selvas asiáticas, desta feita no Vietname.
Durante o mítico festival de Woodstock, Country Joe McDonald perguntava a uma multidão de centenas de milhar de jovens “porque é que estamos a combater? Estou-me nas tintas, vamos parar com o Vietname” e Jimi Hendrix despedaçava o hino americano nas notas torturadas da sua Fender Stratocaster, em “Star spangled banner”. Jim Morrison tomava-se por um xamã portador de uma mensagem sobrenatural. Em “The End” proclamava o assassinato parental e o incesto. Janis Joplin gritava como um anjo possesso e deixava-se morrer. Ainda por cima, a esquizofrenia, dissera-o Laing, deixara de ser considerada uma doença, passando a ser sinónimo de diferença. O LSD-25 abria as portas, todas as portas, da percepção, mostrando de igual modo o rosto luminoso, nirvânico, e a máscara sombria, luciferina, da mente humana. No mesmo ano de Woodstock, no tristemente célebre Festival de Altamont, um grupo de “hell’s angels” assassinou uma rapariga durante a actuação dos Rollng Stones. O sonho “hippie” caiu por terra nesse momento.
A experiência do LSD foi sem dúvida importante na descoberta de novas estéticas e formas de enunciação da música “rock”. À pesquisa interior correspondeu a procura de sonoridades e exotismos de várias proveniências. O Oriente, como não podia deixar de ser, invadiu as cabeças abertas pelo ácido, trazendo consigo as suas “drones” indutoras de estados hipnóticos ou de transe e as suas escalas micro-tonais, mais facilmente perceptíveis debaixo do efeito das drogas alucinogénicas. Não havia um álbum de música psicadélica digna desse nome que não ostentasse na ficha técnica a referência a uma “sitar” indiana. O próprio Ravi Shankar dava lições aos Beatles e assinava em Woodstock uma actuação memorável. Fenómeno de universalização que, em paralelo, permitiu a emerg~encia, nos moldes da época, da corrente “folk” que de algum modo fez figura de acessório naturalista do psicadelismo. Os Byrds voavam “8 miles high”, a 8 milhas de altura.

Um Ácido No Chá

A resposta dos ingleses às visões lisérgicas foi dada de forma civilizada. Tomaram a pastilha de LSD mas, de preferência, à hora do chá. Fizeram-no com mais método e cuidado do que os seus vizinhos americanos. Por este motivo dispensaram-se de afixar uma lista de mártires e conseguiram melhores aplicações da substância, no campo musical.
O psicadelismo em Inglaterra foi liderado por duas bandas principais: Pink Floyd e Soft Machine. Nos segundos militou um “freak”, que por acaso era australiano, Daevid Allen, ao qual se deve, já no seio de outro grupo (os Gong) a criação da mitologia, menos acídula e mais alimentada a erva, dos “por head pixies”, onde se misturavam bules voadores, a filosofia oriental, retretes públicas e a cidade do centro do mundo, Shamballah.
Quanto aos Pink Floyd podem orgulhar-se de ter dado guarida ao maior consumidor de ácido de todos os tempos, Syd Barrett. Nos escassos anos em que conseguiu manter a cabeça à tona de água, Barrett assinou uma das obras-primas da música psicadélica, “The Piper at the Gates of Dawn”. Depois passou-se, começou a ver insectos, fez o circuito dos hospitais psiquiátricos e finalmente correu para debaixo das saias da mãe. O ácido tem destes efeitos secundários… Nunca há a certeza de se ter adquirido o bilhete de ida e volta.
Houve outra gente armada em viajante. Mais para se dar ares, sem arriscar a descida às profundidades, do que para forçar as portas da percepção de que falava Aldous Huxley. A descoberta do sintetizador, por Robert Moog, permitia todo o tipo de explorações musicais sem o recurso aos químicos. Os Moody Blues eram mais LSO (London Symphony Orchestra) que LSD. Os Hawkwind, influenciados pelo autor de ficção científica Micahel Moorcock, rabiscaram a “trip” electro-cósmica em “In Search of Space”, levada às últimas consequências no início da década de 70 pelos alemães planantes do “Cosmic Rock”: Tangerine Dream, Klaus Schulze, Ash Ra Tempel.
David Bowie, entre o retoque da maquilhagem e uma troca de bestido, homenageava Timothy Leary na faixa do mesmo nome incluída em “Hunky Dory”. Tina Turner encarnava uma “acid queen” na mixórdia “Tommy”, realizada por Ken Russell (mais tarde o mesmo realizador apresentaria a sua “trip” de pacotilha: “Altered States”). Há também quem veja na estrutura de “The Lamb Lies Down On Broadway”, dos Genesis, uma bem camuflada viagem de ácido (como o era, sem subterfúgios, o tema “Supper’s ready”, de Foxtrot”). Os Incredible String Band misturavam culturas e instrumentos do mundo numa síntese particular de psicadelismo “folk” de ressonâncias célticas.

Os Diamantes Não São Eternos

Os anos 70 assistiram a uma tentativa fugaz de recuperação da atitude e das sonoridades psicadélicas mas o movimento teve o sabor de revivalismo. Aproveitaram-se a boa música dos Echo & The Bunnymen e sobretudo a loucura, um pouco passadista, dos Teardrop Explodes e do seu líder Julian Cope que até hoje tem aguentado estoicamente e com bons resultados musicais uma dieta bem fornecida de ácidos.
O resto da Europa apanhou as vibrações remanescentes da contra-cultura “hippie” do LSD. Os franceses, bem ao seu estilo, intelectualizaram o que por essência pertencia ao domínio das pulsões. Cyrille Verdeaux escreveu em 1975 uma “Clearlight Symphony”, (Clearlight designa uma variante do LSD, como Purple haze ou Endopan…), de colaboração com alguns foragidos dos Gong. Pierre Henry trouxe a experiência psicadélica electro-acústica, ligando os eléctrodos de um aparelho concebido para o efeito à sua própria cabeça, de modo a traduzir directamente para som os impulsos nervosos do cérebro, em “Cortical Art III”. O resultado sonoro fez, na altura, temer pela sua sanidade mental. Em Portugal, os heroicos cultores da alucinação lisérgica contam-se pelos dedos. Tivemos os desatinos de Frodo, aliás Manuel Cardoso, nos exercícios Tantra de “Mistérios e Maravilhas” e Jorge Palma com “Uma Viagem na Palma da Mão”.
Mas a última palavra sobre os efeitos do LSD na criação artística talvez tenha sido proferida pelo músico e poeta inglês que ao longo de três décadas mais profundamente viajou pelos círculos concêntricos da individualidade – Peter Hammill. No tema “Chemical world”, do álbum “The Quiet Zone, the Pleasure Dome” cantava: “Procuras o Santo Graal, mas não o vais encontrar no mundo químico. Desde o momento em que os acolhes, os diamantes transformam-se em imitações. Há-de explodir tudo na tua cara. É só o tempo, tão lento a passar. É só a droga, não vai durar.” Os mesmos diamantes de Lucy, “a rapariga com os olhos de caleidoscópio”.

Wim Wenders – “Banda Sonora Antecipa Novo Filme De Wim Wenders – Enquanto O Fim Do Mundo Não Chega”

Secção Cultura Sexta-Feira, 13.12.1991


Banda Sonora Antecipa Novo Filme De Wim Wenders
Enquanto O Fim Do Mundo Não Chega


Em “Until the End of the World”, o realizador alemão rodeou-se de nomes sonantes da música actual, entre eles os Talking Heads, R.E.M., Nick Cave, Lou Reed, U2, Elvis Costello e Depeche Mode. Sob a aparência sombria, as canções – como o cinema de Wenders – perseguem a luz.



Conhece-se, viajando. Mas conhece-se apenas enquanto esse movimento de deslocação corresponder a uma dupla transformação: do sujeito que evolui e, como consequência, do território percorrido, já que a visão da realidade está condicionada pelo “lugar de onde se olha”. Uma questão de perspectiva. O cinema de Wenders dá a ver as várias fases de um percurso, o que está “antes da curva da estrada”. Viagem iniciática, de procura e descoberta em espiral.
Cineasta da viagem, Wim Wenders, analisa-a nos seus múltiplos registos. “Alice nas Cidades”, “Ao Correr do Tempo” (obra-prima sobre os infinitos da comunicação, da permuta de sentidos, do silêncio para-gramatical que nos habita e, no limiar do território, nos transcende), “Paris, Texas” (demanda do amor e da linguagem, de certa forma inversa à de “Ao Correr do Tempo”) “Luz sobre a Água” (viagem terminal até ao derradeiro limite – ritual de transformação / decomposição do corpo e do cinema, e da redenção pela voz dos personagens que à deriva sobre as águas, dissertam sobre o que é, ou foi, a vida e o cinema, tema recorrente em “O Estado das Coisas”) e o novo “Until the End of the World” perseguem a transfiguração, a luz (da luz e dos jogos de iluminação nos fala ainda Wenders em “As Asas do Desejo”), o real nas suas duas vertentes: a das imagens cinematográficas e aquela que julgamos mais consistente, do “mundo material”. Em qualquer dos casos, projecções.

A Lei Do Movimento

Para compreender o que o termo “road movie” significa na economia do autor, é preciso compreender primeiro o preceito Zen (caro ao cineasta), segundo o qual o sujeito que observa e a realidade “observável” constituem uma realidade única, decorrendo a pseudo separação da subjectividade da razão analítica.
Pode definir-se o cinema de Wim Wenders em termos de geografia: humana, planetária e metafísica. Mesmo quando o movimento, circular, anti-iniciático e luciferino (como entende Abellio), não leva a lado nenhum – “Movimento em Falso”, presente apenas no alinhamento temporal das palavras, da fala destituída de sentido (isto é de direcção) por forma a permitir a ilusão. O “realismo” confunde-se aqui com o não-movimento existencial de “Para Além do Paraíso”, de Jim Jarmusch). David Byrne define na perfeição esse lugar de morte: “O paraíso é um lugar onde nunca acontece nada.”
“Until the End of the World” almeja a totalidade, a visão global do planeta. Viagem culminante, de síntese apocalíptica que, a partir da Europa e seu lastro cultural, acaba por fixar-se e centrar-se nessa terra de ninguém que é o continente australiano, lugar paralelo, alternativo, de início, que se presume ser o único capaz de sobreviver à catástrofe nuclear.

Canções De Luz E Desespero

A banda sonora chegou até nós primeiro do que as imagens. É-nos concedido algum tempo de prazer antes do “juízo final”. Muito do sortilégio que anima o cinema de Wim Wenders vive do contraponto sonoro. “Until the end of the world” não foge à regra. O realizador escolheu a dedo os músicos e estes corresponderam de forma exemplar, dando às respectivas composições a toada sombria, derradeira, que o ambiente das imagens sugere. Não por acaso, o papel de “pivot” do projecto foi entregue a Graeme Revell, compositor e teórico australiano, fundador dos SPK, dado a obscuras manipulações sonoras, entre o classicismo gótico, a música industrial e as experimentações electrónicas com computadores.
“Opening Titles”, “Claire’s Theme”, “Love Theme” e “Finale” são peças instrumentais de recorte clássico, parasitadas por sons samplados e acrescidas do violoncelo solo de David Darling, escolhidas para enquadrar as canções propriamente ditas, à excepção da dos U2, compostas de propósito para a banda sonora. O CD não integra os temas de Peter Gabriel e Robbie Robertson que constam do duplo álbum.
“Sax and Violins”, dos Talking Heads, introduz o registo “down” que prevalece ao longo do disco, dando a ouvir um David Byrne menos frenético mas mais desolado do que é costume. Julee Cruise traz consigo resíduos das trevas fluorescentes de David Lynch e Angelo Badalamenti, no pesadelo cor-de-rosa “Summer Kisses, Winter Tears”, de Elvis Presley. De base rítmica hipnótica, os temas dos Can (que já haviam colaborado em “Alice nas Cidades”) e, em versão “dub”, de Neneh Cherry, adensam o mistério. Não soam menos fantasmagóricos o minimalismo poético de Patti e Fred Smith, a “country” etérea de Jane Siberry com K. D. Laing e de Daniel Lanois, e os “blues” espectrais de T-Bone Burnett. Os Crime & The City Solution e Nick Cave, amigos de Berlim, transitam das “Asas do Desejo” com a mesma força e negritude. Cave cada vez mais empenhado em tornar-se uma espécie de Leonard Cohen cavernoso. Lou Reed sinuoso como sempre sobre uma guitarra saturada de electricidade, Elvis Costello com uma versão de “Days”, dos Kinks, os Depeche Mode e os R.E.M. apresentam canções tristes de acordo com o tom de desespero do enredo.
É preciso esperar até ao título-tema dos U2, extraído de “Achtung Baby” e editado em versão especial para a banda sonora, para que o fogo se reacenda. Enquanto o fim não chega.

Lou Reed – “United States Of Lou Reed” (artigo de opinião)

(público >> y >> pop/rock >> artigo de opinião)
4 Julho 2003

capa


United States of Lou Reed

Traz a Coimbra “NYC Man” e “The Raven”, peças do “puzzle” da vida de um homem do tamanho de Nova Iorque.



“Duas guitarras, baixo, bateria. Qualquer banda os pode tocar. É disto que gosto nas minhas canções: Pode-se ter o QI de uma tartaruga e tocar-se uma canção de Lou Reed. É também o que aprecio no rock ‘n’ roll. Qualquer um consegue tocar rock‘n’roll, incluindo eu. Três acordes chegam-me perfeitamente. Não me interessa aprender mais nenhum. Prefiro dominar estes três. Se são suficientemente bons para John Lee Hooker, também são bons para mim”.
É deste modo que Lou Reed comenta “Heroin”, uma das canções emblemáticas da sua carreira, incluída na antologia “NYC Man”, que serve de base ao alinhamento do duplo concerto em Coimbra, hoje e amanhã, pelas 22h, no Jardim da Sereia. Atitude de modéstia que, de certa forma, é contrariada pela grandiloquência de “The Raven”, o seu mais recente álbum, com as suas orquestrações e uma complexidade, musical e poética, que desmente a teoria dos três acordes. Já nos estávamos a esquecer: Lou Reed também é capaz de contar uma boa anedota.
Claro que a voz é monocórdica e que a estrutura das canções permanece, regra geral, fiel aos mandamentos do rock‘n’roll, o que não obsta a que a obra gravada de Lou Reed possa ser considerada um dos blocos de apontamentos – onde este nova-iorquino de 59 anos anotou de tudo um pouco – mais ricos da música popular dos nossos dias. Entre as exceções, contam-se a descarga de ruído elétrico em bruto de “Metal Machine Music” (cuidadosamente remasterizado numa edição recente, Lou Reed dá muita importância à qualidade de som), “The Bells”, que o próprio define como uma “mini sinfonia rock” (cuidado, António Manuel Ribeiro!), com a participação do trompetista oriundo do “free jazz” Don Cherry, e o novo “The Raven”, obra conceptual inspirada na literatura fantástica de Edgar Allan Poe.
É igualmente claro, ou escuro, que discos como “Berlin”, uma daquelas obras que nos faz provar o sangue e a noite por um cálice do mais puro cristal, “Transformer”, que alguns arrumaram rapidamente na gaveta do “glam rock”, ou “Magic and Loss”, requiem, de uma beleza dolorosa, por um amigo morto, estão longe de se confinar à constelação do rock‘n’roll e que aquela asserção de Reed deverá ser entendida à luz da ironia. Ou, melhor dizendo, do sarcasmo.

auto-retrato. O que Lou Reed apresentará ao vivo em Coimbra, depois do concerto semifalhado que constituiu a sua anterior apresentação em Portugal, no encerramento da Expo-98, foge às regras de funcionamento habituais dos concertos “antológicos”. À semelhança de “NYC Man”, não se trata tanto de um “best of” de propaganda dos “maiores êxitos”, mas de uma espécie de filme (ou documentário, Reed chama-lhe um auto-retrato) em que cada canção se relaciona com as que lhe estão próximas, segundo um encadeamento onde prevalecem as conotações subterrâneas, as afinidades psicológicas ou geográficas (em que Nova Iorque aparece, obviamente, como uma das personagens em destaque) ou inusitadas coincidências da matéria sonora propriamente dita (o “riff” de guitarra de “Ecstasy”, de 2000, remete e é o prolongamento natural de um outro “riff” de guitarra, de “Sweet Jane”, dos VU de 1970).
Funcionar de acordo com estes parâmetros até às suas últimas consequências, no disco e em concerto, requer a consciência de um vigilante e um pulso de ferro. Assim se compreende que tenha sido o próprio Lou Reed a determinar um alinhamento onde as evidências são passagens através de buracos negros, ligando mundos que a olho nu parecem tão afastados entre si como o sonho da rotina do quotidiano.
De que outra forma se poderá explicar que, na compilação, “Who am I?”, de “The Raven” (2002), desemboque em “Sweet Jane”, dos Velvet, ou que “Kill your sons” (gravação ao vivo de 1984) se interponha entre “Walk on the wild side” e “Vicious”, ambas de “Transformer”, embora neste caso, a própria sequência de títulos atire já a imaginação para um enredo perturbante? Ou que a evocação termine nos recônditos, mas tão atuais, sons de “Pale blue eyes”, dos Velvet do álbum homónimo de 1969 (ao vivo será “Candy says”)?
Ainda o comentário mordaz: “Quando se faz uma compilação, a última pessoa com quem se fala é o artista. Geralmente até se espera que ele já esteja morto de maneira a não incomodar com as suas sugestões.” Em “NYC Man”, pelo contrário, Lou Reed foi contactado e foi ele quem selecionou e sequenciou esta história de 25 anos na qual se interligam e justapõem – numa imagem de aparente caos que será, afinal, uma ordem, a mesma ordem babilónica sobre a qual se constroem os múltiplos ritmos e existências de Nova Iorque –, como se diz no disco, o melodrama e a tragicomédia, rock visceral e música ambiental austera. Tudo isto que nos concertos de Coimbra estará representado através do mítico “The Velvet Underground & Nico” – com a inclusão no alinhamento de “Sunday morning”, “Venus in furs” e “All tomorrow parties” (Laurie Anderson suportará a presença do fantasma de Nico?) – e da obra-prima de 1973, com “Men of good fortune” e a desolação de “The bed”.

o artista está “alto”. Há quem diga que o estranho da história é o facto de Lou Reed ainda estar vivo. Que o “anjo do bizarro”, parafraseando o título de um conto de Edgar Allan Poe, sorria ainda ao explicar que o “lado negro” e o “lado claro” não são mais do que os dois lados de uma mesma moeda a que chama a “vida real” e que é impossível sermos sempre infelizes ou felizes (embora uma canção como “Perfect day” mostre que é possível ser-se ambas as coisas ao mesmo tempo), ou que canções que nos habituámos a associar a um estado de depressão crónica do artista sejam afinal, como “Vicious”, o resultado de bons momentos e de “great fun” vividos no estúdio na companhia de amigos como Mick Ronson ou Bowie.
Sobrevivente dos tempos em que a sua única amiga era a heroína ou diletante hedonista, cronista pop da fauna da “Big Apple” ou poeta iluminado que ousa comparar as palavras de “Street hassle” a um monólogo de Tennesse Williams, Lou Reed é o puto sem grande voz que queria ser o artista que matou a arte, no circo dada antipsicadélico com o cartaz Velvet Underground, mas que acabaria por se tornar o grande edifício urbano, tão “alto” como o “empire state human” de que falavam os Human League. Lou Reed, o escarro, e Lou Reed, o esteta. Lou Reed, que se atrapalhou quando, em 1972, na gravação do álbum de estreia, “Lou Reed”, lhe puseram pela frente dois dinossauros do rock progressivo, Rick Wakeman e Steve Howe (ambos dos Yes!), e, anos mais tarde, viria a casar-se com a avatar da arte de vanguarda chamada Laurie Anderson. Um corpo, dois rostos. Laurie Anderson, a autora do megadocumento multimédia “United States of America”, Lou Reed, capaz de injetar na veia de uma canção de três minutos o reservatório completo de ADN (ácido desoxirribonucleico, embora o autor de “Heroin” tivesse especial predileção pelo pó branco) do rock & roll. Cada um deles alter-ego do outro. Ambos representantes dos estados unidos da música popular. Mais especificamente: estados alterados.

metal e magia. Lou Reed, que se pode gabar de, por sugestão da heroína, ter gravado o álbum mais inaudível da música popular, o atrás citado “Metal Machine Music”, cuja audição, na íntegra (coisa que, diz-se à laia de anedota, até ao presente ninguém logrou aguentar), equivalente a uma radiografia sonora do cérebro de um condenado à cadeira eléctrica no momento da execução. Lou Reed, o contador de histórias ternas, das tardes que assassinam o tempo, a ver “the animals in the zoo”. Lou Reed das fantasmagorias, nas asas do corvo alimentado com os poemas putrefactos, o álcool e o ópio de Poe, em “The Raven”. Lou Reed, sem receio de empunhar o escalpelo de Édipo em “Rock minuet”. Lou Reed, a fazer soar os sinos subliminares da loucura, em “The Bells”. Lou Reed, a dançar nos mais datados “nightclubs” de “disco sound” de NYC, em “Sally Can´t Dance”. Lou Reed da grande perda, que em vez de se abandonar ao abraço uterino da morte, e correr para a porta de saída, optou por seguir a seta a indicar a (re)entrada na vida, em “Magic and Loss”. E, no entanto, a sua voz continua a ser monocórdica. Quantas histórias cabem numa só corda da garganta?
Lou Reed virá a Coimbra acompanhado por Fernando Saunders (baixo), Mike Rathke (guitarra), Jane Scarpantoni (violoncelo) e Antony (o “crooner” do momento, com voz de “castratto”, que atuou recentemente em Portugal ao lado dos Current 93). Sentado algures no palco estará o mestre Guang Yi Ren, professor de artes marciais e terapeuta. Terapia por terapia, antes ouvir “Metal Machine Music” de ponta a ponta.


os discos do concerto

Na atual digressão, o “NYC Man” recuou aos primórdios da sua obra, dela tirando a percentagem maior de canções para o alinhamento dos concertos. Com o corvo a sobrevoar.

VELVET UNDERGROUND & NICO (1967)

O álbum da banana é o álbum que jamais teria existido sem o patrocínio de Andy Warhol, o homem-banana. Geralmente considerado como um marco e das obras mais seminais do rock contemporâneo (seria fastidioso enumerar as bandas para quem os VU são a fundação), “The Velvet Underground & Nico” desvia-se apenas por esse pequeno senão de não ser um álbum rock. O tribalismo rítmico deriva antes dos mantras minimalistas de La Monte Young e do monolitismo hipnótico de Tony Conrad, outro frequentador do “Teatro da Música Eterna”, do qual John Cale fizera parte, aliada ao dadaísmo do circo Exploding Plastic Inevitable (Warhol, hidra de muitas cabeças). Só que “VU&N” desce à praça pública da música popular, servida com uma violência inaudita. E uma voz sem fundo refletida nas águas do poço. Sem Nico, a música deste disco teria sido raiva e pedregulhos. Com ela, a passagem do veludo pela pele deixa a sensação da cobra. Fria. Porém, tão pura como a noite.

TRANSFORMER (1972)

A ideia era fazer de Lou Reed uma estrela de rock. Missão cumprida. “Transformer” entrou nos tops rodeado de uma aura de vício e “glamour”, tudo o que Warhol lhe ensinara mas que só a produção e os arranjos da dupla David Bowie (também ele fascinado por Warhol) e Mick Ronson conseguiram transformar num objeto apelativamente pop. O inesquecível solo de guitarra de Ronson em “Vicious”, os coros de “Andy’s chest”, de construção ostensivamente bowieana, a inexorabilidade melódica de “Perfect Day” e “Walk on the wild side”, clássicos eternos, polos apenas aparentemente contrários de uma única vivência no fio da navalha, não fazem esquece ro “vaudeville” ressacado de “Goodnight ladies”, o martelo-pilão dos Velvets, “Hangin’ round”, ou o “flash” que daria capa de revista, “New York telephone conversation”. “Transformer” poderia ter sido um disco de Bowie. Elegância e teatro. Reed imprimiu-lhe algo mais: a crueldade.

BERLIN (1973)

Não é um disco para se ouvir muitas vezes. Faz-nos sentir como neve. Quando o gravou, Lou Reed nunca tinha estado nesta cidade. Que importa, se o resultado é fiel? Álbum da solidão e decadência, começa com a recordação impossível de uma última valsa do pós-guerra dançada num cabaré de espectros, mas logo um eco isola a voz numa cápsula de vazio e ausência. Eis a Berlim onde cada um desce quando nada resta, pátria dos isolados, seringa de sonhos sem cor. Desprende-se de “Berlin” uma atmosfera de desolação grandiosa, de perda da inocência. “Man of good fortune” é um estalo desferido por quem diz “I don’t care at all”. E quando o corpo se deixa cair em “The bed”, sentimo-nos deslizar para o interior de um caixão. Escutando-se ainda a voz de uma mulher que já lá não está. “This is the place where we used to live…”. Adeus. “What a feeling”. O que sobra desta obra-prima intemporal é dito como se não pudese ser de outra forma: “Sad song”. Com orquestra, bandeiras e foguetes a disfarçar a dor.

THE RAVEN (2002)

Em Poe viu Lou Reed uma alma gémea. Às mesmas perguntas: “Quem sou eu?”, “Porque é que amamos aquilo que não podemos ter?”, “Porque nos apaixonamos pelas coisas erradas?” responderam ambos com o excesso. “The Raven” reúne material composto por Reed para um projeto mais vasto, “POE-Try”, com encenação de Robert Wilson. Duas edições distintas divergem no conteúdo. Versão simples composta maioritariamente por canções. Versão dupla com texto declamado, passagens instrumentais e uma visão mais lata do universo de Poe onde cabem o sexo e as drogas. Duas canções antigas, “Perfect day” e “The bed”, foram objeto de novos arranjos e a lista de músicos inclui Laurie Anderson, David Bowie, Kate & Anna McGarrigle e a lenda do “free jazz”, Ornette Coleman.

O corvo ou a pop nas asas do horror

Reed não foi o único, na pop, a perder-se nos horrores de Poe. Também Peter Hammill e Diamanda Galas traduziram a decadência e a morte que ensombram os seus contos.

“The Raven”, o corvo que Lou Reed arrancou do túmulo de Edgar Allan Poe para sobre ele construir uma sinfonia lúgrube que é como um manto de sombras tombado sobre uma Nova Iorque crepuscular, de símbolos e entes decaídos, inscreve-se numa linha de “rock fantástico”, que deve a sua inspiração sobretudo, aos escritores simbolistas do séc. XIX. Entre estes, o novelista e poeta norte-americano Edgar Allan Poe (1809-1849) exerce um poderoso fascínio sobre a cultura pop, enquanto transdutor de mitologias em que o medo, o mistério e o sobrenatural assumem papel de relevo.
Poe (como H. P. Lovecraft, outro construtor de horrores, no limite da racionalidade mais alucinada, que poucos se atreveram a assumir como brasão da pop, ainda que um grupo psicadélico americano, dos anos 60 se tenha apropriado do seu nome), fornece, através da sua obra, maioritariamente composta por narrativas curtas, todo um imaginário em que o sobrenatural surge não tanto como uma emanação da transcendência, mas como uma deformação do real – o monstro da irracionalidade que se infiltra por uma brecha no cérebro e provoca a alteração das perceções. O corvo que traz as más novas do Inferno e amaldiçoa a normalidade. A apropriação deste imaginário por Lou Reed seria então mais do que uma fuga para mundos idealizados ou a queda nos abismos infernais, a fixação/sublimação do hiper-realismo que desde sempre pautou a sua produção discográfica. As alucinações de ópio do autor de “O anjo do bizarro”, “Berenice”, “O poço e o pêndulo” e “O barril de amontillado” vivem em paralelo com as mutações e aberrações da Nova Iorque das mil e uma taras, da heroína e da paranóia, das criaturas marginais, “freaks” perdidos nessa outra alucinação que advém da alienação, da separação e, em última instância, da esquizofrenia que corta em absoluto as amarras que ligam o indivíduo ao tecido social.
Outros exemplos se podem apontar da relação entre o universo literário fantástico de Poe e a pop. O músico e poeta Peter Hammill, ex-líder dos Van Der Graaf Generator, preparou durante mais de 20 anos aquele que poderia ter sido – mas não foi – o seu “opus” máximo, uma ópera inteiramente baseada em “A Queda da Casa de Usher”, escrita pelo escritor natural de Baltimore em 1839. Duas versões diferentes deste trabalho comprovam a inadequação entre duas personalidades demasiado próximas ou mesmo irmãs. Hammill, considerado por alguns um dos grandes poetas ingleses vivos, quebrou a sua imagem contra a reflexão que o espelho de Poe lhe devolveu. O seu “In Camera”, álbum de 1974, é uma obra tão aterradora como os piores pesadelos do escritor simbolista e, de igual forma, uma prova de génio. Deste álbum, a passagem dos demónios “Gog” e “Magog” pelo espírito deixa marcas difíceis de apagar. Hammill é o Poe dos tempos atuais. Igualmente capaz de gelar não o espírito, mas o sangue é a maneira como a cantora e compositora Diamanda Galas ajustou uma das metáforas de Poe sobre a peste, a morte e a punição divina, “A Máscara da Morte Vermelha”, à sua própria trilogia sobre a maldição e a sida, “Mask of the Red Death”, obra sanguinolenta, no sentido infetado, tanto literal como metafísico do termo.
Considere-se ainda, como “fait-divers”, o álbum “Tales of Mystery and Imagination”, de Alan Parsons Project, inspirado em contos sortidos de Poe, que, apesar de provocar tantos arrepios como uma viagem de comboio-fantasma na feira popular, consegue, mesmo assim, ser o melhor álbum entre a fraca discografia do engenheiro de som de “Dark Side of the Moon”, dos Pink Floyd.
E se, no campo do minimalismo, Philip Galss baseou uma das suas óperas-a-vapor também em “A Queda da Casa de Usher”, registe-se, como final tenebroso, que os Dark Runner aspiraram os miasmas da obra de Poe para regurgitar a sua eletro-tecno-industrial nos álbuns “Master Save Us” e “Gentle Sin…”. O corvo exulta com a putrefação.