PÚBLICO SEXTA-FEIRA, 30 MARÇO 1990 >> Cultura
John Zorn hoje em Lisboa: “Gosto de fado, blues e punk”
John Zorn e os Naked City dão hoje à noite no Forum Picoas, em Lisboa, um concerto único. Os Naked City integram, além de Zorn, Fred Frith (baixo), Bill Frisell (guitarra), Wayne Horvitz (piano e eletrónica) e Joey Baron, todos eles nomes importantes da música alternativa nova-iorquina. O PÚBLICO entrevistou Zorn para, entre outras coisas, o ouvir dizer que gosta de fado e punk em doses iguais.
PÚBLICO- Qual o papel desempenhado pela Knitting Factory, na divulgação da nova música americana?
John Zorn- Ajudou uma série de novos músicos, dando-lhes uma oportunidade e um lugar onde pudessem tocar. Não iria tão longe, afirmando que foi importante para a música americana em geral, mas apenas para a cena musical nova-iorquina.
P.- Será lícito considerar a sua música uma espécie de banda sonora da cidade de Nova Iorque, como que filtrando a sua atmosfera?
R.- O coração daquilo que faço localiza-se indubitavelmente em Nova Iorque.
P.- O que pensa do trabalho de John Lurie com os Lounge Lizards, também eles nomes emblemáticos da música nova-iorquina?
R.- Bem, sou amigo de John Lurie e gosto da sua música mas não me compete julgar o seu trabalho. Deixo isso aos críticos.
P.- As gravuras que aparecem na capa do disco, especialmente as do CD são deveras doentias.
R.- Sem dúvida. A editora quis proibi-las mas ameacei que a abandonaria caso isso acontecesse por isso acabaram por ceder.
P.- Sei que é apreciador de filmes de terror. Estará a tentar criar como que uma música de terror?
R. – De modo nenhum. O que acontece é que procuro sempre relacionar as temáticas dos discos como todo o tipo de imagens a elas associadas. Foi aliás o que fiz em álbuns anteriores. “The Big Gundown”, por exemplo trata de “Westerns”, daí a escolha do título. “Spillane” narra a vida de um detetive e é um detetive que aparece retratado na capa. Em “Naked City” procuro uma aproximação ao “Filme Negro” através do “Hardcore” e da “Thrash music”. Qualquer destas referências está conotada com diversas formas de violência. A música, os títulos das faixas e a capa refletem naturalmente essa mesma violência.
P.- O que significa o “Extreme Noise Terror” e “The Japanese-US-UK Hard Core Triangle” mencionados na contracapa do disco?
R.- Extreme Noise Terror é apenas o nome de uma banda londrina. Quanto ao tal triângulo penso que é nestes três lugares que se produz atualmente a melhor música Punk “Hardcore”.
P.- Por alturas de “Spillane” afirmava que “a era do compositor considerado como uma entidade autónoma tinha terminado”. Pode especificar essa afirmação?
R.- Estava errado! Disse isso há quatro anos atrás e atualmente estou em completo desacordo. De resto estou sempre em desacordo comigo mesmo.
P.- Costuma utilizar na sua música linguagens como o Jazz tradicional, o “Free Jazz” ou os “Blues”…
R.- Não me considero de modo algum um músico de Jazz. Convirá aqui esclarecer um ponto que julgo ser importante. Costumo ouvir toda a espécie de músicas: Jazz, clássica ou étnica. Conheço e aprecio o Fado, tal como os “Blues” ou o Punk “Hardcore”. Todos estes géneros influenciam de algum modo a minha música. O que se passa é que não consigo optar por qualquer deles em particular. Neste aspeto pode dizer-se que a minha música não tem raízes específicas, englobando-os a todos. Creio ser um caso único e sem precedentes no séc. XX.
P.- Como consegue juntar tantos nomes importantes como Frith, Lindsay, Marclay, Fier, Previte, Quine e por aí fora, num único disco?
R.- São todos meus amigos. A gravação de um disco é sempre uma ocasião especial e tenho tido a sorte de conseguir interessá-los pelos meus projetos.
P.- Fred Frith, um dos maiores guitarristas atuais, como baixista, não deixa de ser estranho…
R.- Precisava de um baixista e Frith, para além de grande amigo toca baixo excelentemente, imprimindo um cunho Rock à nossa música. Com outro baixista haveria talvez a tentação fácil de desatarmos todos a tocar Jazz. Frith impede que tal aconteça. Também consegue tocar bem e depressa os compassos e tempos esquisitos que costumo utilizar, sem nunca perder o balanço rítmico, o que é ótimo para a coesão da banda.
P.- A maior parte da sua obra consiste numa contínua desconstrução/reestruturação das formas musicais tradicionais. Qual a finalidade deste processo?
R.- Criar uma nova linguagem, um universo próprio. Agarrar em todas as minhas influências e trabalhá-las de um modo pessoal.
P.- Em que consiste esse trabalho?
R.- Uso métodos semelhantes às técnicas de corte e colagem utilizadas por William Burroughs. Começo por pegar numa determinada peça à qual junto progressivamente outras, formando como que um “puzzle”, com uma lógica linear própria.
P.- Um “puzzle” complexo que os membros da banda tocam ao vivo…
R.- Ainda ontem, numa sessão de estúdio, os Naked City tocaram uma nova composição, “Piece Bricks”, na qual cada compasso corresponde a um diferente estilo de música. Um compasso de “Thrash”, outro de “Country and Western”, outro de “Rhythm’n’blues”, Jazz, “fusion”, Funk, num total de 45 (!) géneros diferentes, tocados no espaço de UM minuto (!!!).
P.- Poderá aplicar-se a designação de “Micromúsica de câmara” à generalidade da sua obra?
R.- O termo sugere-me Anton Webern. De qualquer modo não imagino a minha música tocada em “câmaras”…
P.- Qual será a sua etapa derradeira? O silêncio ou o Caos?
R.- A morte.
P.- Como situa o álbum “Naked City”?
R.- É o culminar de tudo o que tenho feito até agora. Encaro cada disco como se fosse o último da minha vida. Agora que gravei “Naked City”, já posso morrer feliz. Digo sempre o mesmo em relação a todos os meus discos. É uma espécie de apoteose. Como se fosse o fim do mundo.