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Vários (Talking Heads, R.E.M., Nick Cave, Lou Reed, U2, Elvis Costello, Depeche Mode, …) – “Banda Sonora Antecipa Novo Filme De Wim Wenders – Enquanto O Fim Do Mundo Não Chega”

Secção Cultura Sexta-Feira, 13.12.1991


Banda Sonora Antecipa Novo Filme De Wim Wenders
Enquanto O Fim Do Mundo Não Chega


Em “Until the End of the World”, o realizador alemão rodeou-se de nomes sonantes da música actual, entre eles os Talking Heads, R.E.M., Nick Cave, Lou Reed, U2, Elvis Costello e Depeche Mode. Sob a aparência sombria, as canções – como o cinema de Wenders – perseguem a luz.



Conhece-se, viajando. Mas conhece-se apenas enquanto esse movimento de deslocação corresponder a uma dupla transformação: do sujeito que evolui e, como consequência, do território percorrido, já que a visão da realidade está condicionada pelo “lugar de onde se olha”. Uma questão de perspectiva. O cinema de Wenders dá a ver as várias fases de um percurso, o que está “antes da curva da estrada”. Viagem iniciática, de procura e descoberta em espiral.
Cineasta da viagem, Wim Wenders, analisa-a nos seus múltiplos registos. “Alice nas Cidades”, “Ao Correr do Tempo” (obra-prima sobre os infinitos da comunicação, da permuta de sentidos, do silêncio para-gramatical que nos habita e, no limiar do território, nos transcende), “Paris, Texas” (demanda do amor e da linguagem, de certa forma inversa à de “Ao Correr do Tempo”) “Luz sobre a Água” (viagem terminal até ao derradeiro limite – ritual de transformação / decomposição do corpo e do cinema, e da redenção pela voz dos personagens que à deriva sobre as águas, dissertam sobre o que é, ou foi, a vida e o cinema, tema recorrente em “O Estado das Coisas”) e o novo “Until the End of the World” perseguem a transfiguração, a luz (da luz e dos jogos de iluminação nos fala ainda Wenders em “As Asas do Desejo”), o real nas suas duas vertentes: a das imagens cinematográficas e aquela que julgamos mais consistente, do “mundo material”. Em qualquer dos casos, projecções.

A Lei Do Movimento

Para compreender o que o termo “road movie” significa na economia do autor, é preciso compreender primeiro o preceito Zen (caro ao cineasta), segundo o qual o sujeito que observa e a realidade “observável” constituem uma realidade única, decorrendo a pseudo separação da subjectividade da razão analítica.
Pode definir-se o cinema de Wim Wenders em termos de geografia: humana, planetária e metafísica. Mesmo quando o movimento, circular, anti-iniciático e luciferino (como entende Abellio), não leva a lado nenhum – “Movimento em Falso”, presente apenas no alinhamento temporal das palavras, da fala destituída de sentido (isto é de direcção) por forma a permitir a ilusão. O “realismo” confunde-se aqui com o não-movimento existencial de “Para Além do Paraíso”, de Jim Jarmusch). David Byrne define na perfeição esse lugar de morte: “O paraíso é um lugar onde nunca acontece nada.”
“Until the End of the World” almeja a totalidade, a visão global do planeta. Viagem culminante, de síntese apocalíptica que, a partir da Europa e seu lastro cultural, acaba por fixar-se e centrar-se nessa terra de ninguém que é o continente australiano, lugar paralelo, alternativo, de início, que se presume ser o único capaz de sobreviver à catástrofe nuclear.

Canções De Luz E Desespero

A banda sonora chegou até nós primeiro do que as imagens. É-nos concedido algum tempo de prazer antes do “juízo final”. Muito do sortilégio que anima o cinema de Wim Wenders vive do contraponto sonoro. “Until the end of the world” não foge à regra. O realizador escolheu a dedo os músicos e estes corresponderam de forma exemplar, dando às respectivas composições a toada sombria, derradeira, que o ambiente das imagens sugere. Não por acaso, o papel de “pivot” do projecto foi entregue a Graeme Revell, compositor e teórico australiano, fundador dos SPK, dado a obscuras manipulações sonoras, entre o classicismo gótico, a música industrial e as experimentações electrónicas com computadores.
“Opening Titles”, “Claire’s Theme”, “Love Theme” e “Finale” são peças instrumentais de recorte clássico, parasitadas por sons samplados e acrescidas do violoncelo solo de David Darling, escolhidas para enquadrar as canções propriamente ditas, à excepção da dos U2, compostas de propósito para a banda sonora. O CD não integra os temas de Peter Gabriel e Robbie Robertson que constam do duplo álbum.
“Sax and Violins”, dos Talking Heads, introduz o registo “down” que prevalece ao longo do disco, dando a ouvir um David Byrne menos frenético mas mais desolado do que é costume. Julee Cruise traz consigo resíduos das trevas fluorescentes de David Lynch e Angelo Badalamenti, no pesadelo cor-de-rosa “Summer Kisses, Winter Tears”, de Elvis Presley. De base rítmica hipnótica, os temas dos Can (que já haviam colaborado em “Alice nas Cidades”) e, em versão “dub”, de Neneh Cherry, adensam o mistério. Não soam menos fantasmagóricos o minimalismo poético de Patti e Fred Smith, a “country” etérea de Jane Siberry com K. D. Laing e de Daniel Lanois, e os “blues” espectrais de T-Bone Burnett. Os Crime & The City Solution e Nick Cave, amigos de Berlim, transitam das “Asas do Desejo” com a mesma força e negritude. Cave cada vez mais empenhado em tornar-se uma espécie de Leonard Cohen cavernoso. Lou Reed sinuoso como sempre sobre uma guitarra saturada de electricidade, Elvis Costello com uma versão de “Days”, dos Kinks, os Depeche Mode e os R.E.M. apresentam canções tristes de acordo com o tom de desespero do enredo.
É preciso esperar até ao título-tema dos U2, extraído de “Achtung Baby” e editado em versão especial para a banda sonora, para que o fogo se reacenda. Enquanto o fim não chega.

Wim Wenders – “Banda Sonora Antecipa Novo Filme De Wim Wenders – Enquanto O Fim Do Mundo Não Chega”

Secção Cultura Sexta-Feira, 13.12.1991


Banda Sonora Antecipa Novo Filme De Wim Wenders
Enquanto O Fim Do Mundo Não Chega


Em “Until the End of the World”, o realizador alemão rodeou-se de nomes sonantes da música actual, entre eles os Talking Heads, R.E.M., Nick Cave, Lou Reed, U2, Elvis Costello e Depeche Mode. Sob a aparência sombria, as canções – como o cinema de Wenders – perseguem a luz.



Conhece-se, viajando. Mas conhece-se apenas enquanto esse movimento de deslocação corresponder a uma dupla transformação: do sujeito que evolui e, como consequência, do território percorrido, já que a visão da realidade está condicionada pelo “lugar de onde se olha”. Uma questão de perspectiva. O cinema de Wenders dá a ver as várias fases de um percurso, o que está “antes da curva da estrada”. Viagem iniciática, de procura e descoberta em espiral.
Cineasta da viagem, Wim Wenders, analisa-a nos seus múltiplos registos. “Alice nas Cidades”, “Ao Correr do Tempo” (obra-prima sobre os infinitos da comunicação, da permuta de sentidos, do silêncio para-gramatical que nos habita e, no limiar do território, nos transcende), “Paris, Texas” (demanda do amor e da linguagem, de certa forma inversa à de “Ao Correr do Tempo”) “Luz sobre a Água” (viagem terminal até ao derradeiro limite – ritual de transformação / decomposição do corpo e do cinema, e da redenção pela voz dos personagens que à deriva sobre as águas, dissertam sobre o que é, ou foi, a vida e o cinema, tema recorrente em “O Estado das Coisas”) e o novo “Until the End of the World” perseguem a transfiguração, a luz (da luz e dos jogos de iluminação nos fala ainda Wenders em “As Asas do Desejo”), o real nas suas duas vertentes: a das imagens cinematográficas e aquela que julgamos mais consistente, do “mundo material”. Em qualquer dos casos, projecções.

A Lei Do Movimento

Para compreender o que o termo “road movie” significa na economia do autor, é preciso compreender primeiro o preceito Zen (caro ao cineasta), segundo o qual o sujeito que observa e a realidade “observável” constituem uma realidade única, decorrendo a pseudo separação da subjectividade da razão analítica.
Pode definir-se o cinema de Wim Wenders em termos de geografia: humana, planetária e metafísica. Mesmo quando o movimento, circular, anti-iniciático e luciferino (como entende Abellio), não leva a lado nenhum – “Movimento em Falso”, presente apenas no alinhamento temporal das palavras, da fala destituída de sentido (isto é de direcção) por forma a permitir a ilusão. O “realismo” confunde-se aqui com o não-movimento existencial de “Para Além do Paraíso”, de Jim Jarmusch). David Byrne define na perfeição esse lugar de morte: “O paraíso é um lugar onde nunca acontece nada.”
“Until the End of the World” almeja a totalidade, a visão global do planeta. Viagem culminante, de síntese apocalíptica que, a partir da Europa e seu lastro cultural, acaba por fixar-se e centrar-se nessa terra de ninguém que é o continente australiano, lugar paralelo, alternativo, de início, que se presume ser o único capaz de sobreviver à catástrofe nuclear.

Canções De Luz E Desespero

A banda sonora chegou até nós primeiro do que as imagens. É-nos concedido algum tempo de prazer antes do “juízo final”. Muito do sortilégio que anima o cinema de Wim Wenders vive do contraponto sonoro. “Until the end of the world” não foge à regra. O realizador escolheu a dedo os músicos e estes corresponderam de forma exemplar, dando às respectivas composições a toada sombria, derradeira, que o ambiente das imagens sugere. Não por acaso, o papel de “pivot” do projecto foi entregue a Graeme Revell, compositor e teórico australiano, fundador dos SPK, dado a obscuras manipulações sonoras, entre o classicismo gótico, a música industrial e as experimentações electrónicas com computadores.
“Opening Titles”, “Claire’s Theme”, “Love Theme” e “Finale” são peças instrumentais de recorte clássico, parasitadas por sons samplados e acrescidas do violoncelo solo de David Darling, escolhidas para enquadrar as canções propriamente ditas, à excepção da dos U2, compostas de propósito para a banda sonora. O CD não integra os temas de Peter Gabriel e Robbie Robertson que constam do duplo álbum.
“Sax and Violins”, dos Talking Heads, introduz o registo “down” que prevalece ao longo do disco, dando a ouvir um David Byrne menos frenético mas mais desolado do que é costume. Julee Cruise traz consigo resíduos das trevas fluorescentes de David Lynch e Angelo Badalamenti, no pesadelo cor-de-rosa “Summer Kisses, Winter Tears”, de Elvis Presley. De base rítmica hipnótica, os temas dos Can (que já haviam colaborado em “Alice nas Cidades”) e, em versão “dub”, de Neneh Cherry, adensam o mistério. Não soam menos fantasmagóricos o minimalismo poético de Patti e Fred Smith, a “country” etérea de Jane Siberry com K. D. Laing e de Daniel Lanois, e os “blues” espectrais de T-Bone Burnett. Os Crime & The City Solution e Nick Cave, amigos de Berlim, transitam das “Asas do Desejo” com a mesma força e negritude. Cave cada vez mais empenhado em tornar-se uma espécie de Leonard Cohen cavernoso. Lou Reed sinuoso como sempre sobre uma guitarra saturada de electricidade, Elvis Costello com uma versão de “Days”, dos Kinks, os Depeche Mode e os R.E.M. apresentam canções tristes de acordo com o tom de desespero do enredo.
É preciso esperar até ao título-tema dos U2, extraído de “Achtung Baby” e editado em versão especial para a banda sonora, para que o fogo se reacenda. Enquanto o fim não chega.

Nick Cave – “I’m On Fire” (artigo de opinião)

(público >> y >> pop/rock >> artigo de opinião)
10 Janeiro 2003
neon


Nick Cave
I’m on fire


Baladas criminosas, ternura e rock’n’roll. A noite e o fogo, no regresso em força do melhor Nick Cave de há muitos anos. Respirem fundo e vistam fatos de amianto antes de ouvirem “Nocturama”. Sai no princípio de Fevereiro.

Foi um emocional, um gritador, um sofredor, um mal-encarado e um mal-amado do rock na época dos The Birthday Party. Depois, já com os Bad Seeds, Nick Cave virou-se aos poucos para “o outro lado”, descobrindo formas no silêncio onde antes se enredava no torvelinho do ruído. Há quem diga que se voltou (aparentemente) para cima, numa inquietação surda onde alguns descobrem devoção. A verdade é que a partir dos anos 90 e de “The Good Son”, gravado em São Paulo, Brasil, o “crooner” maldito estabeleceu um compromisso com uma religiosidade expressa em tipologias como o “gospel”, os espirituais, de acordo com uma forma dolorosa de dilaceração interior, queimada como caramelo venenoso nos “blues”.
Cave tornou-se o asceta noturno, o pregador perdido nas caves (nunca um apelido terá soado tão apropriado…) da perdição que interroga a eternidade no fundo de um copo de “whisky” ou no mais profundo gemido de uma prostituta sagrada. Álbuns como “Henry’s Dream” (1992), “Let Love in” (1994), “The Boatman’s Call” (1997) e “No More Shall we Part” (2001), bem como o livro “And the Ass Saw the Angel” e o exercício sangrento “Murder Ballads” (espécie de “Do Assassínio como uma das Belas-Artes”, de Thomas de Quincey, em canções, que inclui “Death is not the end”, de Dylan) são interrogações dirigidas a uma força oculta que o músico australiano localiza dentro de si: “Ao escrever tento, de algum modo, compreender-me a mim próprio. É a única maneira que tenho para compreender o que penso e o que sinto sobre as coisas.
fauna lunar. “Nocturama”, o novo álbum, com data de edição em Portugal marcada para 3 de Fevereiro, é mais uma etapa no caminho da crucificação. Que é seguir por dentro em todas as direções, ser-se simultaneamente santo e pecador, misturar a pureza com a escória e saber distingui-los. Ou então descobrir que não existe maior dilaceração que a do amor. “Nocturama” é, segundo o australiano, “um local onde vivem animais noturnos”. Precisamente – o amor. O seu lado escuro, selvagem e lunar.
Formalmente, os Bad Seeds alcançam aqui maior protagonismo do que nos álbuns anteriores. Cave explica as diferenças de um método em relação ao qual foi determinante o trabalho do produtor Nick Launay – com quem já colaborara no single de 1981 dos The Birthday Party, “Release the bats” – ao permitir a gravação de todas as sessões e deste modo criar em estúdio uma atmosfera de empatia e descontração entre os músicos.
Mas o semeador do mal também mudou: “A ideia foi anular alguns preciosismos e regressar a um tipo de disco mais parecido com os antigos, mais rápido e espontâneo. Neste disco optei por estabelecer uma ideia musical, encontrar uma letra, pô-los de lado para gravar e começar logo outro tema. Não procedi a qualquer tipo de reflexão posterior ou voltei a tocar cada canção. Uma vez escritas, ficaram prontas, ao passo que em ‘No More Shall we Part’ tinha arranjado tudo antes o que, provavelmente, terá inibido um pouco a banda. Se já está tudo completo e a única coisa que eles têm que fazer é reproduzir o que está feito, isso não lhes deixa muito espaço para respirar. Neste novo disco, pelo contrário, ficaram com bastante mais liberdade.” O que faz de “Nocturama” um disco de rock ‘n’roll, soprado pelos fantasmas poéticos de W. H. Auden, Thomas Hardy e Dylan, com insuspeitas ligações a rockers como John Cale e David Bowie. Ou tratar-se-á, ainda e sempre, de ilusões?
santos e pecadores. “Nocturama” abre com “Wonderful life”, “pastiche” em tons de sarcasmo, do verso da canção com o mesmo título, para amansar os corações, de Black. “Sometimes our secrets are all we’ve got”. O resto do álbum vai-os desvelando, um a um.
“He wants you” é hino com ecos de John Cale. Sinistro. O papão que se esconde nas profundezas, pronto a atacar. “Under the bridge and into your dreams he soars/While you lie alone in that idea-free sleep of yours/That you’ve been sleeping now for years.
“Ainda mais parecida com o registo baladeiro de Cale (basta substituir o “L” por um “V”, apetece dizer…) e a doce indolência de quem se abandona, “Right out of your hand” fala dos equívocos do amor. “Please forgive me/If I appear unkind/But any fool can tell you/It’s all in your mind.” Convém não esquecer.
Um violino e o andamento inicial de “reggae” introduzem “Bring it on”, parceria vocal com Chris Bailey, da pioneira banda punk australiana The Saints, que Cave considera “uns deuses”: “uma banda anárquica e violenta mas com um cantor que sabia mesmo cantar!”. “Bring it on/Every neglected dream/Bring it on/Every little scheme/Bring it on/Every little fear/And I’ll make them disappear”. Sonhos traídos. Na rádio poderia resultar bastante bem.
“It’s only rock ‘n’ roll, but I like it” seria legenda apropriada para “Dead man in my bed”, onde a guitarra de Mick Harvey explode em gloriosa e maníaca cavalgada. “He used to be so good to me, now he smells so fucking bad/There is a dead man in my bed.” Metáfora ou algo de mais frio, é outra história sem final feliz.
“The cops are hanging around the house/The cars outside look like they’ve got the blues [belo verso!]/The moon don’t know if it’s day or night.” Crime! – Disse ela. Numa balada das mais tristes e mais belas de “Nocturama”. E um piano – de Cave – a chorar.
“There is a town” é uma viagem “under a dark sky”, através dos sonhos, até aos lugares da infância que não existem senão no que com elas faz a imaginação. “That God lives only in our dreams” já é outra questão, mas impossível deixar de notar que “God” vem escrito com maiúscula. O violino de Warren Ellis parece, de facto, vir do céu.
Outra declaração de amor, outra travessia da noite, mais uma viagem pelo mar: “Rock of Gibraltar”. Épica. “And together we’d be/That great, steady Rock of Gibraltar”. Substitua-se a letra por “We’d be heroes”, ouça-se o som e as notas – praticamente iguais – da guitarra por detrás do refrão e, não há que enganar, Cave travou-se de razões com os “Heroes” de David Bowie.
O violino retorna, cheio de ternura, a “She passed by my window”, outra das baladas de “Nocturama”. Clássica, lenta, invernal. “You gotta sanctify my love.” É preciso dizer mais?
A fúria maior faz-se esperar mas quando chega é para matar. Em “Babe, I’m on fire”, também disponível em vídeo, em versão ao vivo. Os Bad Seeds soltam neste tema, absolutamente espantoso, de 15 minutos, todo o rock e energia contidos antes, antes do dilúvio. Tocada apenas uma vez antes de ser gravada é, nas palavras de Cave, “o género de canção que se escreve quando não se está a escrever uma canção”.
Um órgão Hammond em groove contínuo de R&B com as guitarras de Harvey e Blixa Bargeld a dançar em volta como “banshees” alucinadas suportam como possessos um extenso poema (houve, mesmo assim, versos que ficaram de fora…) que finalmente dispara as palavras sem as cobrir de sombras. O pai, a mãe, a irmã, o irmão, o cavalo, o porco, o juiz, a freira, o Papa, o general, o soldado, o toxicodependente, o bêbedo, o budista, o “rastafari”, o cristão, o beatnik, o cego, o polícia, o chulo, o estripador, o cantor country, o comentador desportivo, o viking, o cowboy no rodeo, o velho esquimó, o contorcionista chinês, o astronauta perdido, Picasso e o seu “Guernica”, Walt Whitman, Bill Gates, o Presidente dos EUA [a lista é interminável], todos, absolutamente todos, gritam: “Babe, I’m on fire!”
“And the decomposing lover says”: “Babe, I’m on fire.” A fogueira alastrou num incêndio. “Babe, I’m on fire” espanta todas as criaturas noturnas e evasivas que rondavam pela floresta à espreita de um momento de fraqueza. Não há. E “Nocturama” ilumina-se num clarão.