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Né Ladeiras “Né Ladeiras Traz Os Montes A Belém – A Cidade E As Serras”

cultura >> sábado, 25.02.1995


Né Ladeiras Traz Os Montes A Belém
A Cidade E As Serras

Ponto de encontro da tradição com um cosmopolitismo reaprendido, a música de Né Ladeiras acorda memórias esquecidas e abre novas portas para a renovação da música popular portuguesa. Em Belém, Trás-Os-Montes foi berço de uma terra com futuro.



“São cantos de nascimento e morte, embalo de meninos e brado de folia, ajudantes no trabalho e no lazer, confissões d’amores proibidos, hinos de crenças cristãs e das pagãs. Vozes de tempos recuados foram ensinando outras vozes e chegam-nos hoje sob a forma de cantos ‘bizarros’ que o cidadão português comum não reconhece como seus.” O texto, escrito à laia de prefácio no mais recente álbum de Né Ladeiras, “Traz os Montes”, ilustra bem a história de magia que ao vivo se contou na noite de quinta-feira no grande auditório do Centro Cultural de Belém. Outro texto, vulgo programa – com chancela da Fundação das Descobertas e do CCB -, menos poético, é certo, mas bastante mais didáctico, alertava em grossos caracteres para as “percurssões”, com “r”, para dar mais ênfase, ao mesmo tempo que promove o encenador Ricardo Pais a director musical e autor dos arranjos, deixando Ricardo Dias, o verdadeiro responsável, a chuchar no dedo. Só faltava mesmo que alguém com responsabilidades no centro declarasse com entusiasmo a sua admiração pelos “paliteiros de Miranda”, assim como se falasse entre dentes, num espírito de criatividade linguística sempre de saudar. Adiante…
Cerca de uma hora e dez de música bastaram a Né Ladeiras e ao seu grupo Galandum para ter a seus pés uma plateia no final rendida aos sons e atitude “bizarros” desta mulher, misto de virgem e feiticeira, vinda de “Alhures” em “Trás-os-Montes”, sua pátria espiritual. Né veio vestida de prata lunar, contra um fundo simulando fragas transmontanas. Teve início o ritual com “Fonte do salgueirinho”, ao som da voz gravada da anciã Adélia Garcia. “Çarandilheira”, “Roro”, “Anda duermete nino” e “La molinera” revelaram as duas principais vozes instrumentais, de Ricardo Dias, no piano e sintetizador, e Manuel Rocha, no violino, ambos da Brigada Victor Jara, recordada no tema seguinte, “Marião”. Depois as notas aceleraram até à velocidade do rock, em “Ai se a luzia”, um tema da Banda do Casaco, onde se destacaram Ricardo Dias, na sonoridade arcaica de uma ponteira, o baixo de Vítor Milhanas e as vozes de apoio de Isabel Bernardo e Genoveva Faísca.
Com “Pingacho” o oceano da tradição invadiu as montanhas. Amadeu Magalhães (natural do Barrosão e elemento dos Realejo) iniciou o seu “tour de force” na gaita-de-foles, ao mesmo tempo que um careto cabriolava no estrado e os oito dançarinos do grupo G. E. F. A. C. derreteram de vez o gelo do auditório. “Ora assi que te quiero morena, ora assi que te quiero salada, por beilar lo pingacho!”. Um diálogo de bateria e percussões, mais em força do que em jeito, de André Sousa Machado e Joaquim Teles, desaguou numa batida transmontana, tornada berço de “Cirigoça”, uma das notáveis interpretações vocais de Né Ladeiras, com bons apontamentos de Amadeu no “tin whistle” (ou flauta de lata…). As serranias soltaram espectros carnavalescos num lhaço animado pela dança guerreira dos paliteiros, perdão, pauliteiros, de novo com Amadeu Magalhães endiabrado na gaota-de-foles. À ventania sucedeu a ternura de uma canção de embalo, “Perlimpinchim”, entre o sussurro do piano e os sobressaltos da guitarra de António Pinto. Em “En tu puerta” a voz da cantotra escalou os montes mais latos, pairando à altura das vozes búlgaras, as tais que falam com Deus. “Indo por la sierra” antecedeu “Beijai o menino”, no louvor das gaitas-de-foles, por Amadeu e Ricardo Dias, com Manuel Rocha notável de subtileza e doçura no violino. “Ó que estriga tenho na roca” fechou o ciclo. Né trocou as voltas ao tempo, banhando-se namesma água-régia da anciã cantora do tema inicial. A serpente mordeu a sua cauda.
Três “encores”, com repetição de “Çarandilheira”, “Ai se a Luzia” e “Beijai o menino”, constituíram o justo prémio para um espectáculo onde tudo pareceu encaixar no lugar certo. Um reparo final, apenas, para o som, que se cumpriu em termos de clareza, terá pecado por alguma dureza. Mas aí terá que haver, na mesa de mistura, alguém com coração e ouvido para este tipo de música. A de Né Ladeiras, se é verdade que tem a força do granito, pede igualmente pétalas de rosa.
Um espectáculo de música portuguesa como há muito não se via nem ouvia.

Né Ladeiras – “A LUA SOBRE OS MONTES – NÉ LADEIRAS – C. C. Belém – Lisboa – Quinta – 23 – 22h”

pop rock >> quarta-feira >> 01.02.1995


A LUA SOBRE OS MONTES
NÉ LADEIRAS
C. C. Belém – Lisboa – Quinta – 23 – 22h


“traz os Montes” vem até Belém. O novo disco de Né Ladeiras tem a sua apresentação ao vivo marcada para o Centro Cultural de Belém (CCB), no Grande Auditório, a 23 de Fevereiro, numa co-produção da Fundação das Descobertas / CCB e Encore. O espectáculo terá cerca de hora e meia de duração e contará, como convidados, com o músico transmontano Amadeu Magalhães, membro dos Realejo, e um grupo de pauliteiros da Associação Académica de Coimbra, que “tem feito recolha em termos de dança em Trás-os-Montes”. “Vão dançar llaços [dança típica transmontana] e trazer adereços típicos da região, como os caretos ou os gigantones, utilizados nas festas populares”, explica a cantora. Está ainda planeada uma coreografia, pelos pauliteiros, de “Pingacho”, um tema de “Traz os Montes”, o único dançado por homens e mulheres, já que “normalmente os llaços são só dançados por oito ou 16 homens”.
Além da totalidade dos temas de “Traz os Montes”, Né Ladeiras incluirá outros que não constam do disco, como “Morgadinha dos canibais” e “Ai se a Luzia”, ambos da Banda do Casaco, de que fez parte, e “Marião”, da Brigada Victor Jara, grupo de música portuguesa de raiz tradicional com o qual a cantora gravou, em 1976, o primeiro álbum da banda, “Eito Fora”. Os arranjos vão diferir pouco dos do disco, estando os acompanhamentos vocais – alguns em mirandês -, de cariz tradicional, entregues a um coro formado por Isabel Bernardo e Genoveva Faísca. “Cantar os temas sozinha, não iria ter piada nenhuma.” As diferenças mais significativas terão lugar, por exemplo, em temas como “Argila de luz”, com um arranjo “totalmente diferente, mais moderno do que aquele que foi gravado em 1976”, e “Ai se a Luzia”, “mais próximo da cor musical que os músicos do concerto representam”. Os acompanhantes de Né Ladeiras no CCB serão, além dos já citados, Manuel Rocha (Brigada Victor Jara e Realejo), no violino, Victor Milhanas, baixo, André Sousa Machado, bateria, Joaquim Teles (Quiné), percussões, Ricardo Dias, piano, outros teclados e voz, e António Pinto, guitarra. A direcção musical e os arranjos estão a cargo de Ricardo Dias e Galandum.
Considerado unanimemente pela crítica um dos melhores álbuns de música portuguesa editados no anos passado, “Traz os Montes” não está, estranhamente, a obter em termos de vendas, resultados correspondentes. Exceptuando a primeira edição, lançada em Novembro, “que esgotou logo”, depois do Natal, diz a cantora, “deixou de haver [discos à venda]”. “É uma coisa que me está a espantar imenso, porque não consigo encontrar discos em lado nenhum. No Norte, já me dei ao cuidado de verificar que o álbum não está a ser bem distribuído. A partir daqui, estamos a começar a ter problemas. Já me vieram perguntar na rua o que é que se passa. Perguntam-me onde é que podem comprar o disco e fico sem resposta.” Para a cantora, o problema não está nas discotecas, “que têm feito pedidos ininterruptamente para os CD serem recolocados”, mas na distribuição, uma vez que tais pedidos “têm demorado muito a ser atendidos ou então simplesmente não são respondidos”. Luís Pedro Fonseca, da Alma Lusa, responsável pela supervisão artística do próximo concerto no CCB, já teve uma reunião com responsáveis da distribuidora, a EMI – Valentim de Carvalho, e a própria cantora tenciona fazer o mesmo, no sentido de “ser esclarecida” do que se passa.
Enquanto o disco não regressa aos escaparates, vale a pena encontrar ao vivo os caminhos da Tradição, à luz da voz e da música mágicas de Né Ladeiras. Depois do concerto do CCB, nada será como dantes. Para a navegante lunar das montanhas enfeitiçadas do Norte, a intenção é “não ficar por aqui e continuar”, embora “Traz os Montes”, como diz, “tenha acabado de nascer”: “É um bebé que temos de alimentar e fazer crescer.” Um bebé que, inclusive, poderá crescer no estrangeiro, uma vez que existem já “vários contactos feitos pela produtora, a Encore, com festivais de música tradicional”, além de que foram enviadas, pela Alma Lusa, para diversas editoras europeias, amostras do disco que têm sido “muito bem recebidas”. “Estão a ficar muito entusiasmados com este som português.” Né Ladeiras planeia ainda, num futuro próximo, ver editada num compacto duplo a sua discografia anterior a “Traz os Montes”: “Sonho Azul”, “Alhur”, “Corsária” e “Ana e as suas irmãs”.

Né Ladeiras e Vini Reilly – “Ser Maior (Uma História Sobrenatural)” (artigo de opinião) + Durutti Column “Sex And Death” (crítica de discos)

pop rock >> quarta-feira >> 23.11.1994


Ser Maior (Uma História Sobrenatural)

Existirá uma ligação entre o misticismo e a depressão? E o que é que isso tem a ver com o sentido português lançamento simultâneo de novos álbuns de Né Ladeiras e Vini Reilly vem repor a questão.



Procurar no sobrenatural uma explicação para certas idiossincrasias do próprio acto criativo tem sido desde sempre uma constante de nomes importantes da música popular. Em Hendrix como em Dylan, em John McLaughlin como em Carlos Santana, em Jim Morrison como em Julian Cope, em Sun Ra como nos Earth, Wind And Fire, em Cat Stevens como Venâncio Castro, “o outro lado” tem servido de justificativa para divagações existenciais e musicais que escapam a classificações mais taxativas.
Os OVNI, a magia (branca e negra), deuses com bom ou mau feitio provenientes de todos os mitos e religiões – com uma certa preponderância, nos anos 70, de “Krishna”, com quem os Beatles, entre outros, aprenderam a maneira de atingir o nirvana ou, pelo menos, onde comprar incenso ou uma “sitar” a preços mais em conta -, o próprio diabo (seria fastidioso enumerar a horda de bandas “heavy metal” ou da corrente negra tecno-satanista seguidoras do demónio), as formas cósmicas em geral e todas as formas de espiritualismo disponíveis contam-se entre as fontes esotéricas onde quem quiser, e a tais práticas for dado, pode ir buscar alguma inspiração e uns quantos adereços, sempre úteis no caso de se querer causar boa impressão.
Claro que boas leituras, uma estada num mosteiro qualquer (em Portugal, Sintra será sempre uma opção preferível à Ladeira do Pinheiro) e a ingestão de drogas, bastantes drogas, sobretudo as alucinogénias, contribuem para fazer aparecer com maior facilidade as portas de acesso aos outros mundos. Mesmo aos de onde não se regressa.
Né Ladeiras é um bom exemplo lusitano desta tendência, ou não fossem os portugueses muito dados ao misticismo. No seu caso, é uma espiritualidade suave, feminina, com raízes na d´erva, do ácido e dos cogumelos. Aquela questão dos signos, das linhas da mão, das boas ou más vibrações, do Yin e do Yang, das entidades protectoras, neste caso as Mães de Santo e os orixás, estes últimos divindades protectoras muito requisitadas no Brasil. Não há mal nenhum nisto desde que contribua para o equilíbrio interior do indivíduo ou, noutro âmbito, para melhorar as suas “performances” musicais, como parece ser o caso da autora do recente “Traz os Montes”.
Já o caso de Vini Reilly não se poderá incluir com a mesma certeza no cabaz dos místicos. No passado correram rumores, é certo, que davam conta do seu interesse pelos cemitérios, lugares que, bem vistas as coisas, e caso não se aprofunde muito, sobretudo debaixo da terra, serão tão inspiradores como quaisquer outros. Boato ou não, certo é que o guitarrista e mentor dos Durutti Column não é o que se pode chamar uma pessoa certinha, daquelas que dobram o pijaminha e dividem a conta pelos dois. O seu caso, porém, tem mais a ver com uma depressão crónica, de um tipo provavelmente idêntico àquele de que padecia gente tão diferente como Fernando Pessoa ou Ian Curtis, e que o leva a compor uma música invariavelmente triste e a refugiar-se num mundo de imagens e referências localizadas na margem mais desolada da personalidade e dos sons.
Vini Reilly, que se saiba, não invoca deuses nem demónios, não entrou para nenhum “ashram” nem alguma vez foi visto vestido com uma túnica branca e o cabelo rapado. Até porque não ligaria bem com a sua figura franzina de rapaz enfezado que se entregou de corpo inteiro à sua arte. É evidente que o título do seu novo álbum, “Sex and Death”, não pressagia nada de bom, na medida em que vem escarafunchar num assunto tão incómodo como é o desta relação entre duas realidades que de facto se entrelaçam como o dia e a noite.
Pulsação de vida contra pulsação de morte, eis a dialéctica de guerra, nunca santa entre duas tendências na aparência contrárias, o que de imediato convida a buscar na transcendência uma maneira, o mais possível cómoda e indolor, para a ultrapassar. Vini lá vai conseguindo, gravando discos e tocando guitarra como quem se despede em cada uma das vezes.
Né Ladeiras sabe que não há necessidade de tanto dramatismo e que, sexo por sexo, antes o seguro – até para evitar surpresas desagradáveis – e aquele que não necessita de varinhas de condão. Há o tantrismo, é verdade, que basicamente procura reter e reconduzir a energia do orgasmo para áreas não genitais, pela coluna acima até se acender uma claridade na nuca, embora segundo cremos, nem Né nem Vini sejam adeptos desta técnica.
Concluindo, para os não iniciados nos mistérios dos orixás nem nas delícias do auto-supliciamento voluntário, a música é que conta. Tanto no caso de Né Ladeiras como no de Vini Reilly, os seus novos discos merecem ser ouvidos e o espírito bem abertos. E, afinal de contas, é um facto que tocar música é em primeiro lugar ser-se tocado.


Durutti Column
Sex And Death (6)
Factory Too, distri. Polygram


A ligação do sexo com a morte pode ser encarada neste álbum de duas formas distintas. Por um lado, em relação directa com a sida. Por outro, com uma conexão mais literária, aquela dos artistas românticos para quem a morte era o corolário natural da paixão. Refira-se a propósito uma canção de Mary Coughlan onde esta cantora irlandesa refere os orgasmos como “Little deaths”.
Depois há o azul, na falsa pintura a óleo da capa e em “Blue period”, faixa que encerra o disco, curiosamente um “blues” à maneira de Vini Reilly, mas também um possível jogo com o “período azul” de Picasso, numa referência à pintura que nos Durutti Column remonta a “Without Mercy”. Ou ainda o azul que Derek Jarman associou à sida no terrível libelo que deixou em filme e em disco antes de morrer, vítima desta doença.
“Sex and Death” tem a mesma tristeza e o mesmo som de fundo dos discos anteriores de Reilly. Canções em forma de dedicatória a amigos, a utilização de escalas chinesas, ecos de vozes que nascem e morrem, vestígios de lugares e personagens desaparecidos, citações de música de câmara a quebrarem o ascetismo da guitarra refractada de Vini, ainda e sempre apoiada na carne percussiva do baterista Bruce Mitchell.
Dando mostras de não ter esquecido os seus amigos de Portugal, o computador chamou “Fado” a uma das suas canções, mas, mesmo com esforço e muita imaginação, é difícil descortinar nela qualquer semelhança com o fado português. Só de for pelo estado de epírito, porque, mesmo a letra – “falo contigo por imagens, tu respondes-me com histórias…” -, nem com a maior das boas vontades poderá alguma vez ser cantada na Mouraria ou em Alfama. Nada de novo, portanto, neste vale de lágrimas.