pop rock >> quarta-feira >> 22.06.1994
EM PÚBLICO
MANUEL ROCHA *
Qual foi o seu percurso como músico?
Comecei a estudar violino em Coimbra, como todos os miúdos, em escolas particulares. Mais tarde, entrei na Brigada, era ainda pequenito, tinha 14 anos. Estive aí até aos 20 anos, altura em que consegui uma bolsa na União Soviética para uma escola de ensino de violino. Estive em Moscovo seis anos, entre 1982 e 1988, a estudar pedagogia do violino. Após esse período, ainda tentei entrar numa orquestra mas acabei por ficar em Coimbra, no Conservatório de Música. Entretanto, reencontrei-me com a malta da Brigada e fiquei por lá, onde estou há 18 anos.
Enquanto violinista de formação clássica, como se processou a sua aproximação às técnicas de execução tradicionais?
De início, tocava violino de ouvido, na Brigada. Mas não existe um grande reportório de música para violino em Portugal. Não é como na Irlanda ou na Inglaterra. As coisas vão-se apanhando. Aconteceu-me um episódio engraçado: na Brigada, como na música tradicional portuguesa em geral, não existe uma grande exigência ao nível da técnica e da sonoridade. A tradição oral é, em si mesma, especializada. Um homem que é um bom ponto num cantar alentejano nunca será capaz de cantar provavelmente uma daquelas cantigas de ritmos arrevezados de Trás-os-Montes. Em Portugal, existe sobretudo uma tradição do canto. E de gaiteiros. Há tocadores de gaita-de-foles que têm a chamada “onda” no seu instrumento. No último disco que saiu de recolhas de Giacometti, há uma música em violino que eu ando a tirar, mas é difícil, porque o homem consegue, de facto, ao nível da frase musical, certos artifícios que eu não consigo tirar. Tenho uma escola muito mais clássica, enquanto a técnica popular é empírica e muito mais ornamentada. Aquilo que ele não consegue ir buscar à riqueza do timbre vai buscar ao ornamento.
Ainda faz sentido falar, hoje, no chamado trabalho de recolha?
Esta história dos grupos de recolha é uma mentirinha. Mesmo em relação à Brigada, alguns elementos do grupo fizeram realmente algum trabalho de recolha no início da formação – integrados, muitas vezes, em jornadas de trabalho com o Giacometti. O que se fez daí para a frente foi, sobretudo, ir buscar aos arquivos do Giacometti espécimes que nos pareciam interessantes. Hoje, vai-se buscar material aos cancioneiros, a pautas escritas, o que retira alguma autenticidade à recolha. Por exemplo, o caso do violino que referi há pouco: um tipo ler aquilo na pauta deve ser diabólico. E não lhe agarra a onda.
Em termos gerais, como se processa a sua relação com a música tradicional?
Tenho sobretudo interesse pela música tradicional, naquilo que esta é em termos de base de um universo sonoro a que nós pertencemos. Sou também um curioso em relação à música tradicional de outros países. Há outra questão: um músico de escola, normalmente, tem alguma dificuldade em improvisar. Na música tradicional, uma pessoa aprende a funcionar com os tons, a improvisar. Embora um improviso nunca muito arrojado do ponto de vista temático ou harmónico. Isso já vem depois com os músicos de jazz. É interessante verificar como um músico de outra área, como o Júlio Pereira, é dos melhores executantes de instrumentos tradicionais em Portugal. No nosso país, falta sobretudo escola – um problema que nunca foi equacionado em Portugal. Vemos os chamados grupos de raiz tradicional a utilizarem todos os instrumentos possíveis, acabando por agregar bateristas e baixistas, mas o que eles não fazem, de facto – e deveriam fazer -, era pegar em músicos que fossem capazes de dominar os instrumentos tradicionais. Quando nós, Brigada, vamos a Inglaterra tocar nos festivais de música tradicional, as pessoas gostam sobretudo é das músicas que estão mais agarradas à nossa raiz, não daquelas em que nós mostramos algum arrojo no domínio, por exemplo, de uma guitarra. Eles querem ouvir é uma braguesa bem tocada, guitarras têm eles lá com fartura.
O que falta, nesta área, aos músicos portugueses?
Existe pouco profissionalismo no desempenho do músico: falta de ensaios mas também falta de escola. Pode encontrar-se, em Portugal, bons guitarristas, bons baixistas, bons bateristas, mas não se encontra bons braguesistas, grandes tocadores de gaita-de-foles, a sanfona só agora reapareceu. Deveria ser feita uma aposta na formação em escola, em que se integrasse o músico na técnica do instrumento e numa noção da música em geral, para que pudesse evoluir. Já lá vai o tempo em que funcionávamos na base da relação tónica/dominante. Considerava-se a música portuguesa aquilo da concertina para dentro e para fora. Não é. A música portuguesa é predominantemente modal. É muito difícil, hoje, abordar-se a música tradicional portuguesa sem essa parte do modalismo. E, para isso, é preciso conhecer harmonia. Aliás, estou agora a participar na gravação de um novo disco da Né Ladeiras, sobre música de Trás-os-Montes, em que a maior parte dos músicos é de jazz. É notável, ao nível das soluções harmónicas, aquilo que se tem arranjado. Músicos que nunca tiveram qualquer relação com a música tradicional acabam por achar nela um campo de trabalho onde é possível ir mais ao fundo.
Não havendo escolas, no meio de tantas limitações, como consegue evoluir como músico?
O facto de dar aulas acaba por ensinar muito. Ter que resolver problemas técnicos e musicais, e debruçar-se sobre obras de diversas maneiras faz desenvolver a própria escola pessoal. Por outro lado, o reportório clássico oferece pistas brutais no campo da música tradicional. O Villa-Lobos era, se não me engano, quem dizia que o Bach era o músico que acabou por centrar na sua música a música dos povos do mundo. E vou também evoluindo através daquilo que vou ouvindo.
Ouvindo o quê?
Por exemplo, um catálogo interessantíssimo, que é o da ECM, os discos da Silex; muita chamada música clássica, por causa da minha profissão; e, claro, música étnica, que hoje está na moda. Em Moscovo, habituei-me a ouvir coisas de muitos lados, sobretudo da América Latina e da Ásia, música vietnamita, coreana, chinesa. Havia coisas curiosas. Por exemplo, os vietnamitas eram tipos com uma dificuldade tremenda para perceber a tal questão da dominante/tónica, por que é que uma dominante ia para a tónica. O que se explica, porque o sistema musical deles não tem nada a ver com o sistema ocidental. Isto abriu-me uma janela. A nossa música não é “a verdade” mas apenas um caminho sonoro.
Em relação aos violinistas, a escola irlandesa poderá ensinar alguma coisa aos músicos portugueses?
Penso que se pode aprender. Se nós copiarmos os “standards” dos irlandeses, acabamos por ganhar muito em rapidez, por exemplo. Em termos de desenvencilhamento melódico, eles arranjam soluções extremamente interessantes, em termos inclusivamente de manejo das escalas.
Será, então, mais uma questão de “ginástica”, não é assim, e nunca uma cópia da música em si?
Sim, todos os grupos da música portuguesa, incluindo a Brigada, passaram pela fase da celtização. Penso que a celtização é uma coisa tão má como a moda dos ranchos folclóricos, do sol-e-dó. Ao fim e ao cabo, é importar algo que exerce sobre nós um certo fascínio e transportá-lo mecanicamente para a nossa música. Isto decorre de uma certa falta de ideias dos músicos portugueses – falta de ideias que, por sua vez, decorre de um baixo profissionalismo do seu desempenho. Um homem, um músico, só pode criar quando tem a cabeça cheia de informação. Há músicos extremamente mal formados na música portuguesa, alguns deles, inclusivamente, não sabem ler música, o que, às vezes, chega a ser dito com certo orgulho. Um músico popular pode não saber ler mas um músico da cidade e da sua arena musical tem que saber ler – ler e estudar. Já não se compreende que haja músicos à molhada a fazerem todos a mesma coisa. E isso faz-se. Na Brigada, também se faz. Quando se fica amarrado a fazer algo cinzentinho, para sair limpinho, isso não aponta caminho nenhum. É por isso que, nos discos de música tradicional que chagam dos países em que está mais desenvolvida, se encontra músicos com recursos brutais. O que encanta nesses discos é a manipulação, o desempenho.
Enquanto professor de violino, procura despertar nos seus alunos o interesse pela música tradicional?
Utilizo, nas aulas, alguns temas tradicionais portugueses, infantis, por exemplo. Os alunos mais novos, que movimentam ainda muito debilmente os dedos, podem tocar essas músicas. Utilizo também algum reportório estrangeiro. Trouxe, há pouco tempo, livros de Inglaterra, com escalas e harpejos, formas simples de tocar que são para os alunos extremamente estimulantes. Eles sentem-se logo a fazer música, até porque o seu universo sonoro inclui esses tipos de música, a irlandesa e a portuguesa. Toda a escola devia fazer isso e não faz.
* Violinista da Brigada Victor Jara e músico convidado dos Realejo. Professor de violino no Conservatório de Música de Coimbra. Encontra actualmente a gravar, com Né Ladeiras, um álbum desta cantora centrado na música tradicional de Trás-os-Montes.