Né Ladeiras e Vini Reilly – “Ser Maior (Uma História Sobrenatural)” (artigo de opinião) + Durutti Column “Sex And Death” (crítica de discos)

pop rock >> quarta-feira >> 23.11.1994


Ser Maior (Uma História Sobrenatural)

Existirá uma ligação entre o misticismo e a depressão? E o que é que isso tem a ver com o sentido português lançamento simultâneo de novos álbuns de Né Ladeiras e Vini Reilly vem repor a questão.



Procurar no sobrenatural uma explicação para certas idiossincrasias do próprio acto criativo tem sido desde sempre uma constante de nomes importantes da música popular. Em Hendrix como em Dylan, em John McLaughlin como em Carlos Santana, em Jim Morrison como em Julian Cope, em Sun Ra como nos Earth, Wind And Fire, em Cat Stevens como Venâncio Castro, “o outro lado” tem servido de justificativa para divagações existenciais e musicais que escapam a classificações mais taxativas.
Os OVNI, a magia (branca e negra), deuses com bom ou mau feitio provenientes de todos os mitos e religiões – com uma certa preponderância, nos anos 70, de “Krishna”, com quem os Beatles, entre outros, aprenderam a maneira de atingir o nirvana ou, pelo menos, onde comprar incenso ou uma “sitar” a preços mais em conta -, o próprio diabo (seria fastidioso enumerar a horda de bandas “heavy metal” ou da corrente negra tecno-satanista seguidoras do demónio), as formas cósmicas em geral e todas as formas de espiritualismo disponíveis contam-se entre as fontes esotéricas onde quem quiser, e a tais práticas for dado, pode ir buscar alguma inspiração e uns quantos adereços, sempre úteis no caso de se querer causar boa impressão.
Claro que boas leituras, uma estada num mosteiro qualquer (em Portugal, Sintra será sempre uma opção preferível à Ladeira do Pinheiro) e a ingestão de drogas, bastantes drogas, sobretudo as alucinogénias, contribuem para fazer aparecer com maior facilidade as portas de acesso aos outros mundos. Mesmo aos de onde não se regressa.
Né Ladeiras é um bom exemplo lusitano desta tendência, ou não fossem os portugueses muito dados ao misticismo. No seu caso, é uma espiritualidade suave, feminina, com raízes na d´erva, do ácido e dos cogumelos. Aquela questão dos signos, das linhas da mão, das boas ou más vibrações, do Yin e do Yang, das entidades protectoras, neste caso as Mães de Santo e os orixás, estes últimos divindades protectoras muito requisitadas no Brasil. Não há mal nenhum nisto desde que contribua para o equilíbrio interior do indivíduo ou, noutro âmbito, para melhorar as suas “performances” musicais, como parece ser o caso da autora do recente “Traz os Montes”.
Já o caso de Vini Reilly não se poderá incluir com a mesma certeza no cabaz dos místicos. No passado correram rumores, é certo, que davam conta do seu interesse pelos cemitérios, lugares que, bem vistas as coisas, e caso não se aprofunde muito, sobretudo debaixo da terra, serão tão inspiradores como quaisquer outros. Boato ou não, certo é que o guitarrista e mentor dos Durutti Column não é o que se pode chamar uma pessoa certinha, daquelas que dobram o pijaminha e dividem a conta pelos dois. O seu caso, porém, tem mais a ver com uma depressão crónica, de um tipo provavelmente idêntico àquele de que padecia gente tão diferente como Fernando Pessoa ou Ian Curtis, e que o leva a compor uma música invariavelmente triste e a refugiar-se num mundo de imagens e referências localizadas na margem mais desolada da personalidade e dos sons.
Vini Reilly, que se saiba, não invoca deuses nem demónios, não entrou para nenhum “ashram” nem alguma vez foi visto vestido com uma túnica branca e o cabelo rapado. Até porque não ligaria bem com a sua figura franzina de rapaz enfezado que se entregou de corpo inteiro à sua arte. É evidente que o título do seu novo álbum, “Sex and Death”, não pressagia nada de bom, na medida em que vem escarafunchar num assunto tão incómodo como é o desta relação entre duas realidades que de facto se entrelaçam como o dia e a noite.
Pulsação de vida contra pulsação de morte, eis a dialéctica de guerra, nunca santa entre duas tendências na aparência contrárias, o que de imediato convida a buscar na transcendência uma maneira, o mais possível cómoda e indolor, para a ultrapassar. Vini lá vai conseguindo, gravando discos e tocando guitarra como quem se despede em cada uma das vezes.
Né Ladeiras sabe que não há necessidade de tanto dramatismo e que, sexo por sexo, antes o seguro – até para evitar surpresas desagradáveis – e aquele que não necessita de varinhas de condão. Há o tantrismo, é verdade, que basicamente procura reter e reconduzir a energia do orgasmo para áreas não genitais, pela coluna acima até se acender uma claridade na nuca, embora segundo cremos, nem Né nem Vini sejam adeptos desta técnica.
Concluindo, para os não iniciados nos mistérios dos orixás nem nas delícias do auto-supliciamento voluntário, a música é que conta. Tanto no caso de Né Ladeiras como no de Vini Reilly, os seus novos discos merecem ser ouvidos e o espírito bem abertos. E, afinal de contas, é um facto que tocar música é em primeiro lugar ser-se tocado.


Durutti Column
Sex And Death (6)
Factory Too, distri. Polygram


A ligação do sexo com a morte pode ser encarada neste álbum de duas formas distintas. Por um lado, em relação directa com a sida. Por outro, com uma conexão mais literária, aquela dos artistas românticos para quem a morte era o corolário natural da paixão. Refira-se a propósito uma canção de Mary Coughlan onde esta cantora irlandesa refere os orgasmos como “Little deaths”.
Depois há o azul, na falsa pintura a óleo da capa e em “Blue period”, faixa que encerra o disco, curiosamente um “blues” à maneira de Vini Reilly, mas também um possível jogo com o “período azul” de Picasso, numa referência à pintura que nos Durutti Column remonta a “Without Mercy”. Ou ainda o azul que Derek Jarman associou à sida no terrível libelo que deixou em filme e em disco antes de morrer, vítima desta doença.
“Sex and Death” tem a mesma tristeza e o mesmo som de fundo dos discos anteriores de Reilly. Canções em forma de dedicatória a amigos, a utilização de escalas chinesas, ecos de vozes que nascem e morrem, vestígios de lugares e personagens desaparecidos, citações de música de câmara a quebrarem o ascetismo da guitarra refractada de Vini, ainda e sempre apoiada na carne percussiva do baterista Bruce Mitchell.
Dando mostras de não ter esquecido os seus amigos de Portugal, o computador chamou “Fado” a uma das suas canções, mas, mesmo com esforço e muita imaginação, é difícil descortinar nela qualquer semelhança com o fado português. Só de for pelo estado de epírito, porque, mesmo a letra – “falo contigo por imagens, tu respondes-me com histórias…” -, nem com a maior das boas vontades poderá alguma vez ser cantada na Mouraria ou em Alfama. Nada de novo, portanto, neste vale de lágrimas.

Penguin Café Orchestra – “PINGUIN CAFÉ ORCHESTRA Dia 26 Aula Magna, Lisboa” (concerto | antevisão)

pop rock >> quarta-feira >> 23.11.1994


Os Pinguins Vestem Fraque

PINGUIN CAFÉ ORCHESTRA
Dia 26
Aula Magna, Lisboa



“O que existe de realmente belo na criatividade humana reside no inesperado, que nasce do coração sem modificar o nosso ego.” Julgamos que sim, que a frase, da autoria de Simon Jeffes, líder da Penguin Café Orchestra, que na próxima sexta-feira vem de novo em visita a Portugal, é verdadeira. Quando a pronunciou, Simon Jeffes pensava decerto no seu grupo. E aqui já temos algumas reservas, relativamente ao item “inesperado”. É que já há algum tempo que a música dos Penguin Café perdeu essa capacidade de surpreender, mantida intacta durante os três primeiros álbuns, “Music from the Penguin Café”, “Penguin Café Orchestra” e “Broadcasting from Home”.
A partir daí, o som e a atitude cristalizaram-se e os lugares-comuns instalaram-se insidiosamente. Cada novo disco passou a ostentar o rótulo “som Penguin Café”, fixação de um estilo que, sobretudo no primeiro álbum, radicava na surpresa e na absoluta impossibilidade de classificação. Não significa isto que a música do grupo não tenha continuado a manter uma qualidade bastante acima da média, e tão-pouco que o prazer da sua audição tivesse descido de forma drástica, mas apenas que desapareceu essa expectativa que antecipava a audição dos primeiros discos.
Sabe-se hoje com o que podemos contar: um conjunto de influências recolhidas de diversas músicas étnica do globo, principalmente africanas e sul-americanas, submetidas em doses iguais ao crivo minimalista e à dulcificação do classicismo romântico. O humor perdeu-se pelo caminho, como ficou demonstrado no último trabalho da banda, “Union Café”, substituído pela redescoberta do prazer da citação e da sua descontextualização.
Simon Jeffes deixou, como é óbvio, de ser o iconoclasta excêntrico do passado. Alguém que inventou o nome da banda a partir de um sonho, que se apaixonou por um órgão a pedais antigo e que escreveu arranjos para cordas para pessoas tão diferentes como Mort Schumann, Caravan, David Sylvian e os Sex Pistols (pois, a ele se devem os arranjos de “My way”, de Sid Vivious…), além de ter colaborado, entre outros, com Twyla Tharp, Malcolm McLaren e Ryuichi Sakamoto.
Tornado pessoa séria, Jeffes compôs a música para um bailado de David Bintley, “Still Life at the Penguin Café”, com posterior gravação em compacto. Ou seja, passou a ter uma reputação a defender. “Union Cafe” é um álbum sério, onde os pinguins vestem fraque e uma ou outra brincadeira não escondem a preocupação com o rigor da interpretação e a projecção de uma imagem de erudição por músicos perfeitamente integrados no sistema. Mas como a esperança é a última coisa a morrer, fica sempre a hipótese de um descuido ou de uma escorregadela em palco, de um súbito reencontro com a alegria juvenil e o tal inesperado que outrora fizeram do café Pinguim ponto de encontro dos sonhadores.

Mike Oldfield – “The Songs Of Distant Earth”

pop rock >> quarta-feira >> 23.11.1994


Mike Oldfield
The Songs Of Distant Earth
WEA, distri. Warner Music



Confesso que tinha esperança. Depois de “Tubular Bells, parte 2: “A golpada”, esperava que o velho Mike emendasse a mão e mostrasse ser capaz, pelo menos, de igualar a qualidade, sem recuar aos primeiros álbuns, de “Amarok”. Puro engano. Apoiado numa ideia ambiciosa – pôr em música a obra do escritor de ficção científica Arthur C. Clarke, “The Songs of Distant Earth” – e em meios técnicos de grande envergadura, que incluem a edição em CD-ROM, este novo trabalho do autor de “Tubular Bells” jamais ultrapassa a ostentação desses mesmos meios, revelando uma confrangedora falta de inspiração e uma total incapacidade para evitar os “clichés” que fizeram a imagem de marca do autor. “The Songs of Distant Earth” é uma colagem de lugares-comuns electrónicos, vertente “new age” cósmico-ecológica, feitos em computador, que se perdem na repetição dos mesmos esquemas gastos de sempre. As presenças de um percussionista indiano bem como a utilização de cantos “saami” e outros “gadgets” – há mesmo uma secção intitulada “Tubular World” – destinados unicamente a valorizaro produto do ponto de vista do “marketing”, não ultrapassam a anedota. Como anedóticas são igualmente a participação de Molly Oldfield (a filha, a prima, a tia, a mulher?) ou do agrupamento de música antiga Tallis Scholars, nivelados pela bitola da inutilidade e irrelevância gerais deste novo acesso de megalomania do compositor Arthur C. Clarke, na capa luxuosamente enfeitada com grafismos de computador, diz ao músico o seguinte: “Welcome back into space, Mike: There’s still lots of room here”. É o melhor que ele tem a fazer. Vai, Mike, vai para o espaço! Vai e não voltes! (3)