Arquivo mensal: Maio 2025

Jackie Leven – “The Mystery Of Love Is Greater Than The Mystery Of Death”

pop rock >> quarta-feira >> 05.10.1994


Jackie Leven
The Mystery Of Love Is Greater Than The Mystery Of Death
Cooking Vinyl, distri. MVM



Os ingleses chamam “arty” a discos como este, em que as pretensões, a imagem e o estilo se sobrepõem a tudo o mais. O escocês Jackie Leven, então, exagera. Desde a capa, uma reprodução do célebre quadro “A Ilha Dos Mortos”, de Arnold Böcklin, às citações de Rainer Maria Rilke e Salman Rushdie, passando pela leitura e vocalização de textos de Kabir (poeta indiano do séc. XV), Osip Mandelstam (poeta russo do início do século) e António Machado (poeta simbolista espanhol, também deste século), “The Mystery of…” (só o título pede para o emoldurarem e pendurarem num museu) é uma obra inchada de vaidade, onde a espontaneidade não tem lugar. Nem o talento, diga-se em abono da verdade. A produção – laboratorial – projecta a voz de Leven para a dianteira, protegida por orquestrações pensadas até ao mais ínfimo pormenor. E afinal não passa de um disco de canções, onde os “blues” aparecem como referência longínqua e estilizada em temas como “Clay jug” e “Gylen gylen” e o resto é uma montagem artificial de sentimentos e “clichés”, retocados de maneira a passarem por ideias. Quatro canções fazem parte de um tal “Argyll cycle”, mas são tão vulgares como as restantes. O melhor do disco, e provavelmente o mais profundo, é a letra de “The Bars of Dundee” (não, não esperem fumo, nem gritos, nem alegria): “Mm mm mm / yeah / mm mm mm mm / mm mm mm / yeah / mm mm mm mm.”
Mas até isto Leven canta como se fossem versos de Yeats. Irritante! (5)

Hector Zazou – “Hector Zazou Apresenta Música Frágil Na Aula Magna – Berço De Sonhos”

cultura >> domingo >> 02.10.1994


Hector Zazou Apresenta Música Frágil Na Aula Magna
Berço De Sonhos


Depois das orquestrações “difíceis” do maestro Moura, foi a vez de Hector Zazou alertar para a “fragilidade” da sua música e a pedir cuidado, para não a partirem. Está certo que temos todos a sensibilidade musical de orangotango mas, caramba, podiam ter um bocadinho mais de confiança. Ele e Harold Budd embalaram e desejaram bons sonhos. Com classe.

Havia quem dormisse a bom dormir, sexta-feira à noite, na Aula Magna, em Lisboa, enquanto Hector Zazou, Harold Budd e Renault Pion aproximavam perigosamente a sua música do silêncio. O francês, autor de “Sahara Blue”, começou logo por avisar que ia ser uma coisa frágil, a exigir a atenção e disponibilidade de todos. E avisou: ou estavam com ela – a música – ou contra ela. No final se contariam as armas. Também aconselhou s pessoas a juntarem-se no centro da sala, onde a estereofonia era melhor. Ora bem, como a imprensa foi atirada para os lugares eufemisticamente designados “doutorais”, ou seja o mais de lado possível, a imprensa teve que se desenrascar para conseguir escutar o tal “som frágil” nas melhores condições.
Na primeira parte uma rapariga também de aspecto frágil, Barbara Gogan, no passado vocalista da banda pop The Passions cantou e tocou guitarra acústica temas intimistas, com a tristeza de uns Durutti Column e a pose baladeira dos anos 60. Zazou, na consola, alterava os timbres e introduzia reverberações cujo efeito prático foi enviar parte do público em viagem precoce para o mundo dos sonhos. Esses foram os que sem esforço permaneceram até ao fim, gozando daquela felicidade só ao alcance dos que atingem a total paz de espírito. Em contrapartida, os que se mantiveram acordados tiveram a oportunidade de apreciar as tonalidades melancólicas da voz da senhora, embora nos dois últimos temas, retirados de “Sahara Blue” – “Lines” e o título-tema – andasse um bocado à deriva, em busca do lugar certo entre os teclados de Budd e Zazou e o clarinete baixo de Pion.
A seguir ao intervalo, a Sahara Blue Band mostrou que a fragilidade anunciada era-o tão só para quem permanecesse na superfície de um som oceânico, com a transparência e os reflexos matizados de um cristal. Uma música que envolve lentamente os sentidos mas que, por outro lado, corre o risco de parecer e, pior que isso, ter de facto efeitos soporíficos sobre os ouvidos menos atentos ou dispostos a sonharem acordados. Harold Budd afagou o piano, perdido nas reminiscências maçónicas de Satie, por muito que afirme não apreciar este compositor. E disse poemas, em surdina. Pion, flutuando entre as ondas produzidas pelos dois teclistas, soprou brisas e ergueu-se em levitação num pequeno oboé até ao Oriente. Zazou, impressionista, maníaco do pormenor, confirmou ser um mestre dos sintetizadores, acabando prejudicado por desagradável ruído parasitário que a partir de determinado momento poluiu o som de uma coluna. Mas enquanto houve claridade a Aula Magna balouçou num berço de sonhos, embalada em micro-climas em constante mutação pelas mesmas águas que banham as margens da música contida em álbuns como “Le Verbe, L’Amour, La Parure…” e “A Propos d’un Paysage” e Benjamin Lew e Steven Brown.
Com o aparecimento do ruído instalou-se na sala uma sensação de desconforto. Por um lado, o quase silêncio da música fazia aumentar cada vez mais o número dos que abandonavam a sala e dos que não resistiram ao sono. Por outro, os músicos, também eles incomodados, pareceram demitir-se do universo até então miraculosamente elaborado. Nessa ocasião Budd abandonou o piano, levantou-se, segredou qualquer coisa a Zazou e o tema acabou de forma abrupta. De repente, e sem que nada o fizesse prever, Zazou levantou-se, por sua vez para anunciar “C’est fini”, tendo o cuidado de premiar a assistência com um “estiveram muito bem, bravo”, de aprovação. Como quem diz passaram no exame. Budd ainda se deixou ficar sozinho atacar um derradeiro tema no piano. Uma solidão diferente que deve ter sentido parte da assistência, para a qual um concerto exige um tipo de comunicação mais directa e imediata. Algo se partiu, de facto.

Vários (Miguel Graça Moura, Orquestra Metropolitana de Lisboa, Xutos e Pontapés) – “’Diário De Notícias’ Festeja Aniversário Com Música – ‘A Que Vem A Seguir É Mais Fácil!'”

cultura >> segunda-feira >> 26.09.1994


“Diário De Notícias” Festeja Aniversário Com Música
“A Que Vem A Seguir É Mais Fácil!”



O jazz, o rock, os ritmos étnicos e a música sinfónica juntaram forças num espectáculo de “Música em festa” em jeito de reconciliação. Só foi pena as jactâncias do maestro. Na noite em que pela primeira vez os “Contentores” dos Xutos e Pontapés tiveram o brilho de uma orquestra.

“Esta música é preciso merecê-la”, lançou do alto da cátedra o maestro Miguel Graça Moura à populaça, antes de mergulhar no labirinto complexo da “música erudita”, acolitado pela orquestra metropolitana de Lisboa, convicto da menoridade mental dos cerca de sete, oito mil jovens que acorreram na noite de sábado ao relvado do Restelo para ouvir em primeiro lugar os Xutos e Pontapés.
Não poderiam ter começado de pior forma as comemorações musicais do 130º aniversário do “Diário de Notícias”, subordinados ao tema “Música em Festa”. O despropositado das palavras de Graça Moura, que ao longo da noite proferiria outras barbaridades como “tenham calma, a que vem a seguir é mais fácil”, “Sejam civilizados e não aplaudam entre os andamentos”, concluindo com um apelo dramático, “Vamos lá ver se vão curtir agora a 2ª parte de uma maneira mais civilizada”, são próprias de um provincianismo que se escuda no fraque e na batuta e uma traição ao próprio espírito do acontecimento. Não ficaria mal ao hoje maestro, que os mais velhos recordam do tempo dos Pop Five Music Incorporated e, mais tarde, dos Smoog (inesquecível aquela primeira parte do espectáculo de B. B. King no Coliseu dos Recreios em Lisboa, em que MGM se embeveceu a tirar sons do vento do seu “mini Moog” acabado de desembrulhar…) aproveitar o exemplo dado por Leonard Bernstein nos seus famosos concertos “promenade” que a televisão portuguesa transmitiu há alguns anos.
Miguel Graça Moura deve lembrar-se. Até porque foi precisamente Leonard Bernstein, com as suas danças sinfónicas de “West Side Story”, o primeiro compositor – “difícil” – a merecer honras de interpretação pelo mestre, perdão, maestro, portuense. Não menos “difíceis” – o público sentiu-se amiúde angustiado, incapaz de entender o que via e ouvia, confundido com tanta gente sobre o palco a tocar instrumentos desconhecidos – foram os “Dialogues for Jazz Quartet and Orchestra”, de Howard Brubeck. Mário Laginha, solista convidado, fez os possíveis para não se destacar em demasia do colectivo orquestral e parece ter-se divertido.
A excitação e os primeiros sons verdadeiramente interessantes ocorreram durante a execução de uma obra para percussionistas e orquestra, da autoria de Pedro Osório. O batuque, por um grupo de percussões angolano, e uma concepção cíclica, intuitiva da música, de um lado, aposta à discursividade histórica e ao rigor matemático, do outro, travaram lutas, estabeleceram pontes de diálogo, entraram pelos túneis do tempo. Conseguiram o mais difícil: uma síntese e morfologia coerentes rigorosas e ao mesmo tempo deixando transparecer um gozo imenso.
“E pronto””, suspirou MGM por fim, “aí vem quem muitos de vocês estavam à espera”. Eram os Xutos, na sua primeira experiência sinfónica, repetindo o “In Concert” dos Deep Purple, à entrada dos anos 70, com a Royal Philharmonic Orchestra. Não deixa de ser curioso e matéria de reflexão o facto de serem eles, arautos da revolta juvenil e suburbana do país, a darem esta reviravolta de 180 graus, inflectindo numa vertente que à partida parecia estar distante dos seus horizontes. Mais curioso ainda é que a coisa resultou. “Contentores”, “Jogo do empurra”, “Pequenina” (com um solo “Gilmouriano” de João Cabeleira e toda a prestação dos Xutos a fazer lembrar os Pink Floyd…) e “Remar remar” trouxeram de volta os anos 70 e a ideia, para muitos perigosa, de que o rock liga bem com o sinfonismo. O último tema dos Xutos, “Poço da salvação” foi de apoteose. Miguel Graça Moura, que nesta altura atirara já para as urtigas a pose e a compostura, bamboleou-se de sorriso nos lábios, ao ritmo da música, a batuta fremente de emoção, incapaz de conter a desbunda geral de todos os participantes, entretanto reunidos em palco.
Como se vem tornando hábito nestas ocasiões, a noite fechou com uma sessão de fogo de artifício que alguém, ao acender inadvertidamente uma torre de iluminação, quase ia estragando. Mais. O programa anunciava quinze minutos de fogo quando na realidade durou apenas quatorze! Tem a palavra a Defesa dos Consumidores (DECO). Ao “Diário de Notícias”, os nossos parabéns!