cultura >> segunda-feira >> 26.09.1994
“Diário De Notícias” Festeja Aniversário Com Música
“A Que Vem A Seguir É Mais Fácil!”

O jazz, o rock, os ritmos étnicos e a música sinfónica juntaram forças num espectáculo de “Música em festa” em jeito de reconciliação. Só foi pena as jactâncias do maestro. Na noite em que pela primeira vez os “Contentores” dos Xutos e Pontapés tiveram o brilho de uma orquestra.
“Esta música é preciso merecê-la”, lançou do alto da cátedra o maestro Miguel Graça Moura à populaça, antes de mergulhar no labirinto complexo da “música erudita”, acolitado pela orquestra metropolitana de Lisboa, convicto da menoridade mental dos cerca de sete, oito mil jovens que acorreram na noite de sábado ao relvado do Restelo para ouvir em primeiro lugar os Xutos e Pontapés.
Não poderiam ter começado de pior forma as comemorações musicais do 130º aniversário do “Diário de Notícias”, subordinados ao tema “Música em Festa”. O despropositado das palavras de Graça Moura, que ao longo da noite proferiria outras barbaridades como “tenham calma, a que vem a seguir é mais fácil”, “Sejam civilizados e não aplaudam entre os andamentos”, concluindo com um apelo dramático, “Vamos lá ver se vão curtir agora a 2ª parte de uma maneira mais civilizada”, são próprias de um provincianismo que se escuda no fraque e na batuta e uma traição ao próprio espírito do acontecimento. Não ficaria mal ao hoje maestro, que os mais velhos recordam do tempo dos Pop Five Music Incorporated e, mais tarde, dos Smoog (inesquecível aquela primeira parte do espectáculo de B. B. King no Coliseu dos Recreios em Lisboa, em que MGM se embeveceu a tirar sons do vento do seu “mini Moog” acabado de desembrulhar…) aproveitar o exemplo dado por Leonard Bernstein nos seus famosos concertos “promenade” que a televisão portuguesa transmitiu há alguns anos.
Miguel Graça Moura deve lembrar-se. Até porque foi precisamente Leonard Bernstein, com as suas danças sinfónicas de “West Side Story”, o primeiro compositor – “difícil” – a merecer honras de interpretação pelo mestre, perdão, maestro, portuense. Não menos “difíceis” – o público sentiu-se amiúde angustiado, incapaz de entender o que via e ouvia, confundido com tanta gente sobre o palco a tocar instrumentos desconhecidos – foram os “Dialogues for Jazz Quartet and Orchestra”, de Howard Brubeck. Mário Laginha, solista convidado, fez os possíveis para não se destacar em demasia do colectivo orquestral e parece ter-se divertido.
A excitação e os primeiros sons verdadeiramente interessantes ocorreram durante a execução de uma obra para percussionistas e orquestra, da autoria de Pedro Osório. O batuque, por um grupo de percussões angolano, e uma concepção cíclica, intuitiva da música, de um lado, aposta à discursividade histórica e ao rigor matemático, do outro, travaram lutas, estabeleceram pontes de diálogo, entraram pelos túneis do tempo. Conseguiram o mais difícil: uma síntese e morfologia coerentes rigorosas e ao mesmo tempo deixando transparecer um gozo imenso.
“E pronto””, suspirou MGM por fim, “aí vem quem muitos de vocês estavam à espera”. Eram os Xutos, na sua primeira experiência sinfónica, repetindo o “In Concert” dos Deep Purple, à entrada dos anos 70, com a Royal Philharmonic Orchestra. Não deixa de ser curioso e matéria de reflexão o facto de serem eles, arautos da revolta juvenil e suburbana do país, a darem esta reviravolta de 180 graus, inflectindo numa vertente que à partida parecia estar distante dos seus horizontes. Mais curioso ainda é que a coisa resultou. “Contentores”, “Jogo do empurra”, “Pequenina” (com um solo “Gilmouriano” de João Cabeleira e toda a prestação dos Xutos a fazer lembrar os Pink Floyd…) e “Remar remar” trouxeram de volta os anos 70 e a ideia, para muitos perigosa, de que o rock liga bem com o sinfonismo. O último tema dos Xutos, “Poço da salvação” foi de apoteose. Miguel Graça Moura, que nesta altura atirara já para as urtigas a pose e a compostura, bamboleou-se de sorriso nos lábios, ao ritmo da música, a batuta fremente de emoção, incapaz de conter a desbunda geral de todos os participantes, entretanto reunidos em palco.
Como se vem tornando hábito nestas ocasiões, a noite fechou com uma sessão de fogo de artifício que alguém, ao acender inadvertidamente uma torre de iluminação, quase ia estragando. Mais. O programa anunciava quinze minutos de fogo quando na realidade durou apenas quatorze! Tem a palavra a Defesa dos Consumidores (DECO). Ao “Diário de Notícias”, os nossos parabéns!