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Madredeus – “Madredeus Surpreendem Em Início De Nova Digressão – Lisboa À Média Luz”

cultura >> domingo, 05.03.1995


Madredeus Surpreendem Em Início De Nova Digressão
Lisboa À Média Luz


Sombra, calor, silêncio. Três tons que deixaram rasto na música dos Madredeus, no seu concerto de regresso a casa. Lugar de sonho de uma Lisboa uterina “ainda” por revelar. Ficou a certeza de que cada chegada é sempre ponto de partida.



Recém-chegados de uma digressão por Espanha, onde esgotaram lotações – “sobrou apenas um bilhete, que guardámos simbolicamente”, diria Pedro Ayres de Magalhães na conferência de imprensa realizada poucas horas antes do concerto – e alcançaram um “disco de ouro” pelas vendas de “O Espírito da Paz”, os Madredeus já estão de novo em viagem. “Uma vida de astronauta em que é impossível conceber um mecanismo mental para tocar todos os dias”, ainda segundo Pedro Ayres. A nova digressão, por território nacional, teve início sexta-feira na Aula Magna e prosseguirá ao longo de todo o mês de Março, culminando num concerto duplo no Porto, a 31 de Março e 1 de Abril.
Na sala da Universidade de Lisboa, a mesma onde o grupo há anos se estreou em espectáculos de maior dimensão na capital, os Madredeus conseguiram algo de que à partida não se estaria à espera: surpreender. Com um novo álbum prestes a sair, “Ainda”, banda-sonora para o filme de Wim Wenders, “Lisbon Story”, sobre Lisboa, o actual sexteto composto por Teresa Salgueiro, Pedro Ayres, Francisco Ribeiro, Gabriel Gomes, José Peixoto e Carlos Maria Trindade se é verdade que não se afastou do ambiente de serenidade – talvez mais aparente do que real – que caracteriza “O Espírito da Paz”, fê-lo com uma descontracção que contraria a solenidade, e até alguma frieza, sensíveis no disco.
A fase actual dos Madredeus é, comparativamente com o passado, de maior interioridade. Estão todos a tocar não só melhor como mais baixo e com maior melancolia. Uma melancolia assumida, acentuada na Aula Magna pela iluminação, quase sempre difusa, por vezes próxima da escuridão, que obrigou à total concentração na música. Ganharam proeminência o violoncelo abissal de Francisco Ribeiro e os teclados de Carlos Maria Trindade, cujo som, mais rigoroso e diversificado na escolha de timbres que o do antigo teclista, Rodrigo Leão, se afirmou como o grande inventor de paisagens ambientais.
“Moinhos”, um dos vários instrumentais tocados ao longo da noite, abriu o concerto, seguido de “Milagre”, primeiro de “Ainda” a ser apresentado, e “Senhores da Guerra”. Arrepiante foi o diálogo vocal de Francisco Ribeiro e Teresa Salgueiro na evocação arabizante de “Pregão”. Teresa Salgueiro cuja voz preferimos quando canta mais próxima do silêncio. Com as palavras a nascerem como gotas de espírito. Pequenas chamas frias. Inversamente, sempre que ergueu mais alto a voz, as notas saíram mais empasteladas, não deixando perceber metade das palavras. Ou seria por termos sido atirados para as profundezas da segunda plateia, a quilómetros de distância do palco? “O mar”, “Céu da Mouraria” – interpretado com a alma e a garra do fado, “As cores do sol”, “Maio maduro Maio” (de José Afonso), valorizado pelo delicado diálogo final das guitarras, e o clássico “O pastor” concluíram a primeira parte.
Aproveitámos o intervalo para nos fazer convidados e dar o salto para as filas da frente. Excelente o “Concertino”, nas suas várias alíneas, desde o folclórico “minuete” até à noite de “Silêncio”, sublime oração de Teresa Salgueiro. “Ajuda”, “Ao longe o mar”, “As ilhas dos Açores”, cruzamento interessante de Albinoni com Richard Clayderman, e “Vem”, outra vocalização de espanto, antecederam a longa despedida, com “Ainda”. Um “mantra” bem português onde a voz de Teresa Salgueiro envolveu em nevoeiro as duas sílabas, despojando-as da semântica para, por fim, nada mais restar senão o som. Corolário perfeito de uma “fantasia musical e poética de raiz portuguesa”, como Pedro Ayres Magalhães define a estética do grupo.
“Amargura”, “Guitarra” e uma “Alfama” em ritmo de fado-tango, os três “encores”, fizeram despertar do sonho. A música dos Madredeus leva-nos como crianças até ao outro lado.

Hector Zazou – “Hector Zazou Apresenta Música Frágil Na Aula Magna – Berço De Sonhos”

cultura >> domingo >> 02.10.1994


Hector Zazou Apresenta Música Frágil Na Aula Magna
Berço De Sonhos


Depois das orquestrações “difíceis” do maestro Moura, foi a vez de Hector Zazou alertar para a “fragilidade” da sua música e a pedir cuidado, para não a partirem. Está certo que temos todos a sensibilidade musical de orangotango mas, caramba, podiam ter um bocadinho mais de confiança. Ele e Harold Budd embalaram e desejaram bons sonhos. Com classe.

Havia quem dormisse a bom dormir, sexta-feira à noite, na Aula Magna, em Lisboa, enquanto Hector Zazou, Harold Budd e Renault Pion aproximavam perigosamente a sua música do silêncio. O francês, autor de “Sahara Blue”, começou logo por avisar que ia ser uma coisa frágil, a exigir a atenção e disponibilidade de todos. E avisou: ou estavam com ela – a música – ou contra ela. No final se contariam as armas. Também aconselhou s pessoas a juntarem-se no centro da sala, onde a estereofonia era melhor. Ora bem, como a imprensa foi atirada para os lugares eufemisticamente designados “doutorais”, ou seja o mais de lado possível, a imprensa teve que se desenrascar para conseguir escutar o tal “som frágil” nas melhores condições.
Na primeira parte uma rapariga também de aspecto frágil, Barbara Gogan, no passado vocalista da banda pop The Passions cantou e tocou guitarra acústica temas intimistas, com a tristeza de uns Durutti Column e a pose baladeira dos anos 60. Zazou, na consola, alterava os timbres e introduzia reverberações cujo efeito prático foi enviar parte do público em viagem precoce para o mundo dos sonhos. Esses foram os que sem esforço permaneceram até ao fim, gozando daquela felicidade só ao alcance dos que atingem a total paz de espírito. Em contrapartida, os que se mantiveram acordados tiveram a oportunidade de apreciar as tonalidades melancólicas da voz da senhora, embora nos dois últimos temas, retirados de “Sahara Blue” – “Lines” e o título-tema – andasse um bocado à deriva, em busca do lugar certo entre os teclados de Budd e Zazou e o clarinete baixo de Pion.
A seguir ao intervalo, a Sahara Blue Band mostrou que a fragilidade anunciada era-o tão só para quem permanecesse na superfície de um som oceânico, com a transparência e os reflexos matizados de um cristal. Uma música que envolve lentamente os sentidos mas que, por outro lado, corre o risco de parecer e, pior que isso, ter de facto efeitos soporíficos sobre os ouvidos menos atentos ou dispostos a sonharem acordados. Harold Budd afagou o piano, perdido nas reminiscências maçónicas de Satie, por muito que afirme não apreciar este compositor. E disse poemas, em surdina. Pion, flutuando entre as ondas produzidas pelos dois teclistas, soprou brisas e ergueu-se em levitação num pequeno oboé até ao Oriente. Zazou, impressionista, maníaco do pormenor, confirmou ser um mestre dos sintetizadores, acabando prejudicado por desagradável ruído parasitário que a partir de determinado momento poluiu o som de uma coluna. Mas enquanto houve claridade a Aula Magna balouçou num berço de sonhos, embalada em micro-climas em constante mutação pelas mesmas águas que banham as margens da música contida em álbuns como “Le Verbe, L’Amour, La Parure…” e “A Propos d’un Paysage” e Benjamin Lew e Steven Brown.
Com o aparecimento do ruído instalou-se na sala uma sensação de desconforto. Por um lado, o quase silêncio da música fazia aumentar cada vez mais o número dos que abandonavam a sala e dos que não resistiram ao sono. Por outro, os músicos, também eles incomodados, pareceram demitir-se do universo até então miraculosamente elaborado. Nessa ocasião Budd abandonou o piano, levantou-se, segredou qualquer coisa a Zazou e o tema acabou de forma abrupta. De repente, e sem que nada o fizesse prever, Zazou levantou-se, por sua vez para anunciar “C’est fini”, tendo o cuidado de premiar a assistência com um “estiveram muito bem, bravo”, de aprovação. Como quem diz passaram no exame. Budd ainda se deixou ficar sozinho atacar um derradeiro tema no piano. Uma solidão diferente que deve ter sentido parte da assistência, para a qual um concerto exige um tipo de comunicação mais directa e imediata. Algo se partiu, de facto.

Quim Barreiros – “Quim Barreiros Deu ‘Show’ Na Aula Magna – E Lisboa Cheirou O Bacalhau”

cultura >> quarta-feira >> 28.01.1994


Quim Barreiros Deu “Show” Na Aula Magna
E Lisboa Cheirou O Bacalhau



A cultura portuguesa sofreu na noite de quarta-feira, na Aula Magna, um forte abanão. Nada voltará a ser como dantes. Quim Barreiros, desde anteontem, tornou-se uma lenda viva das artes nacionais. E Lisboa mostrou aquilo que é. Uma grande aldeia de chinela no pé.

Muito antes do espectáculo reinava no templo cultural da Universidade portuguesa um ambiente calmo, distinto mesmo, como se fosse um qualquer concerto da Gulbenkian. Mas os corações saltavam impacientes no peito das senhoras de meia-idade forradas com casacos de peles e nos peitilhos dos senhores de três quartos de idade que as acompanhavam. Adolescentes excitados saboreavam com antecipação as sugestões de ordinarice. Estudantes, muitos, divertiam-se à grande, alguns trazendo na cabeça chapéus “à Quim Barreiros” que se vendiam no exterior, outros com pandeiretas. Ria-se muito. Toda a gente à espera da festa.
E a festa aconteceu. Primeiro com a Tuna Académica do Instituto Superior Técnico. Vinte e quatro rapazes de batina negra, armados de guitarras, cavaquinhos, um acordeão e boa disposição. Começaram por homenagear o Quim, “o ídolo dos estudantes” antes de tocarem três temas próprios, , “Vida de estudante”, “A marcha do caloiro” e 2Serenata ao luar”. Depois avacalharam e lançaram-se num “medley” de marchas e modinhas lisboetas, terminando em fálica apoteose, com “A pilinha” e todos os elementos da tuna a fazerem “movimentos hologénicos com as ancas”.
Nada melhor que a hologenia para acolher a preceito Quim Barreiros, na sua entrada triunfal numa Aula Magna histérica e à cunha. Quim, o rei, surgiu trajado com a fatiota do costume, camisa branca, calças, colete, chapéu e bigode negros, todo ele folclore e malandrice.
Não houve maneira de lhe resistir. Quim atacou forte e feio, com “O sorveteiro (chupa Teresa)” (que um nosso colega vespertino, dando mostras de uma espantosa lubricidade, ainda maior que a do mestre, transformou em “Chupa 13”, ali, logo de uma vez). “Toda a gente a chupar”, atirou de imediato. Logo a seguir, “Lição de Dactilografia”, o tal da “professora a ensinar” e ele “a bater por letra”, “Todos a baterem!”, pois claro!
Quim estava lançado e nunca mais parou, em ritmo de chula, em ritmo de acordeão-expresso, ao ritmo de um piquenicão selecto, na antecâmara do palavrão. “Está a nascer um negócio na tua cabeça”, “Festival da canção”, “Tanquiú véri muche”, agradece Quim, maroto. Nesta altura já os da tuna desfilavam em cordão brasileiro pela sala, enquanto aos cantos desta se amontoavam as latas de cerveja. “Rock da Miquelina”, um tema de Fernando Pereira, causou o delírio, com Quim, o artista completo, de óculos escuros, encarnando Bill Haley em “Rock around the clock”. Mais clássicos: “O grilinho” e o mais clássico de todos, “Bacalhau à portuguesa”, o tal que meia Lisboa, que digo, meio Portugal canta enlouquecido. Com a estudantada já a dançar na clareira que fica situada entre a plateia da plebe e a plateia dos VIPS, o cantor de Vila Praia de Âncora mostra a sua costela étnica, num tema dedicado a Coina, “o sítio onde gosta mais de ir”: “Oh vamos a Coina, rapaziada, vamos a todas, não escapa nada.”
“Picada de enfermeiro” antecedeu uma homenagem a Greta Garbo, feita de forma sentida e delicada: “Vamos à Greta, todos querem ver a Greta, beijar a Greta…”, estava-se no verbo ir. Cada um ia para onde a sua imaginação mandava. Nada de muito profundo supõe-se…
“Recebi um convite À casa da Jaquina”, primeira canção cantada por Quim Barreiros, em 1972, trouxe para a Aula Magna um momento de nostalgia. “Comi a sobra”, “Deixa botar só a cabeça”. A poesia fluiu livre, em “Abre as pedras”. “Abre as pedras meu amor, que é onde se esconde o peixe quando vê o pescador”. “A Little thing called love”, dos Queen”, voltou a mostrar o artista internacional. Queen Barreiros. Por fim, porque tudo tem um fim, não há mal que sempre dure nem bem que nunca se acabe, um “medley” que repescou parte de todos os “hits”, perante uma assistência que já tinha levado a sua dose. “Chupa Teresa” acabou a função como começara – “eu termino sempre como começo”, cabendo o fecho definitivo a um “funky” instrumental. Como diria Serafim Saudade, um grande momento de “music-hall”.
No fundo, muito no fundo, por detrás do riso, esconde-se a tragédia. Mas mais fundo ainda, por detrás a tragédia, esconde-se o riso. Não é, Mariazinha?