Vários – “N.A.T.O.” + Vários – “Trans Slovenia Express”

pop rock >> quarta-feira >> 09.11.1994


Auto-Estradas De Informação

N.A.T.O. (6)
Trans Slovenia Express (7)
Mute, distri. BMG



No centro de operações destes dois discos estão os ex-jugoslavos Laibach, acusados de neonazis, totalitaristas e percursores da música industrial. Como vem acontecendo com grande parte dos cultores da serra eléctrica e do martelo pneumático, os Laibach, conscientes que o industrialismo foi chão que já deu pregos, reciclaram-se e foram bare à porta da “techno”.
“N.A.T.O.” é pura “música de martelinhos”, disfarçada pela pose militarista, a versão “kitsch” recontextualizada do costume (neste caso de “Final countdown” dos Europe), a estética construtivista e a grandiosidade wagneriana que caracterizavam “Nova Akropola”, o seu melhor álbum de sempre, ou o esotérico e operático “Krst Pod Triglavom-Baptism”. Um caso típico de acomodamento.
“Trans Slovenia Express” já é outra história. Trata-se de uma compilação de bandas da Eslovénia – antigo território jugoslavo que escapou à loucura da guerra, tornada independente em 1991 -, organizada pelos Laibach e constituída por versões de temas dos Kraftwerk. A questão que se coloca à partida é saber qual a relação existente entre esta banda germânica e aquela região da Europa. No texto impresso na capa do CD, o jornalista musical Biba Kopf, entre outras considerações, encontra “o elemento comum entre os Kraftwerk e a cena pós-punk na Eslovénia” numa “idêntica concepção da música como velocidade e movimento”. Por outro lado Ralf Hütter, dos Kraftwerk, definiu a música do grupo como “som analógico ou digital gerado electronicamente e não notação musical”. Ao contrário dos Balanescu Quartet – que em “Possessed” desafiaram este enunciado, ao decalcarem para naipe de cordas as melodias criadas por meios electrónicos pelo grupo de Düsseldorf -, o naipe de bandas eslovenas aqui reunidas põe em prática precisamente aquelas noções de velocidade e movimento, tornando em alguns casos praticamente irreconhecíveis as melodias originais. O idealismo idílico associado a este território, cuja história e cultura sofreram desde sempre a influência alemã, desaparece num ápice quando se entra nas auto-estradas (“Autobahn”, em alemão) que o ligam aos Alpes ou a Trieste. A analogia destas vias rodoviárias com as auto-estradas digitais de informação surge como evidente, estabelecendo mais um elo com a visão socio-político-profético-musical dos Kraftwerk.
Entre a introdução de “Trans Slovenian Express”, assinada pelos próprios Laibach, e a conclusão, onde os mesmos Laibach aglutinam a sua designação à dos germânicos, transformando-se em Kraftbach, 13 bandas eslovenas recuperam um tema de “Autobahn”, cinco de Radio Activity”, dois de “Trans Europe Express”, quatro de “The Man Machine” e um de “Computer World”. Os registos vão do “electropunk” dos Coptic Rain, em “The robots”, ao “cybermetal” dos Strelnikoff, em “Man Machine” e à “industrial surf music” dos Beitthron”, em “Airwaves”. Vozes femininas conferem uma nova frescura a “Radio Activity”, pelos April Nine, e “Spacelab”, pelos Videosex. Os 300.000 V. K. (presentes no álbum “N.A.T.O.”) tornam assustadora a beleza original de “Kometenmelodie 1”, enquanto os Data Processed Corrupted põem “Transistor” em estado de fusão latente. Se os Random Logic se limitam a alterar os timbres e a velocidade a “Home computer”, os Demolition Group introduzem os delírios de um saxofone em “The model” e os Mitja V. S. seguem uma estratégia idêntica à dos Balanescu Quartet, no recurso aos instrumentos de arco, de molde a transformar “Neonlight” em algo parecido com a música de salão tocada pelos Penguin Café Orchestra. Uma homenagem merecida a um dos grupos mais importantes e influentes do planeta.

Mathilde Santing – “Under A Blue Roof”

pop rock >> quarta-feira >> 09.11.1994


Mathilde Santing
Under A Blue Roof
Columbia, distri. Sony Music



Sempre que sai um novo disco desta holandesa de cabelo curto e voz longa como uma noite de Verão, nasce a promessa de canções que pedem a intimidade do coração para se darem a conhecer até ao fundo. Um fundo e um céu que nunca foram tão longe como em “Water under the Bridge”, um álbum literalmente do outro mundo, saído da pena de Rolf Hermsen, agora activo como arranjador de “Under a Blue Roof”. Depois desta incursão no “outro lado”, já distante de alguns anos, Mathilde resolveu cantar canções de outras latitudes e sensibilidades musicais e dar-lhes o brilho da sua própria personalidade.
No álbum anterior interpretou de forma superior as de Randy Newman. Neste é sensível uma mudança de orientação significativa. Ao nível do som, mais directo, resolvendo-se maioritariamente pelos Whole Band na clássica combinação guitarra/baixo, bateria/órgão, com sublinhados do violoncelo e do acordeão, mas também da própria escolha de canções, mais propícias a leituras imediatas e onde a voz denota a firma intenção de se voltar para emoções mais tangíveis.
A “soul music”, pois claro, ganha pontos nas preferências da holandesa, através de “Bad Weather, de Stevie Wonder, e “”Choosy beggar” e “I don’t blame you at all”, de Smokey Robinson. Tod Rundgren prova mais uma vez ser dos autores que Mathilde não dispensa, estando presente com “Lost Horizon” e “Tiny Demons”. Menos óbvias, mas de resultados surpreendentes, são as revisitações de “Gold”, escrito por Peter Blegvad, mestres da excentricidade, alguém que andou pelos Faust, Henry Cow, Slapp Happy e Golden Palominos, e de “Hey Joan”, transformação radical de “Hey Joe” que lança novas sombras sobre a imortal canção de Jimi Hendrix. Uma grande senhora, em tempo de descompressão. (7)

Júlio Pereira – “Acústico”

pop rock >> quarta-feira >> 09.11.1994


Feitiço Da Maré
O Cântico Dos Átomos

Júlio Pereira
Acústico
Columbia, distri. Sony Música



Reconhecido como um dos poucos “virtuose” da música portuguesa, Júlio Pereira encontrou sempre como principal obstáculo o desequilíbrio entre as suas facetas de instrumentista, compositor e produtor. Se em relação à primeira há que louvar-lhe o trabalho que levou a efeito de recuperação e popularização de instrumentos tradicionais como o cavaquinho, a braguesa e o bandolim, já em relação à sua actividade nas outras duas áreas nem sempre as soluções encontradas revelaram ser as mais felizes. “Acústico”, o mais recente trabalho deste músico que no passado fim-de-semana actuou em Portugal ao lado dos Chieftains, vem de certa forma alterar este estado de coisas e instaurar na sua obra algo que esta há muito exigia: o espaço e o silêncio necessários para a afirmação, sem artifícios, dos instrumentos de corda em que Júlio Pereira é mestre. É uma lógica de contenção e despojamento que em “Acústico” se exprime, sem rede, em sete temas que são outros tantos solos absolutos no cavaquinho, na braguesa, no bandolim e na guitarra, nos quais Júlio Pereira explora toda a gama de possibilidades tímbricas, melódicas, harmónicas e rítmicas daqueles instrumentos,
Logo no primeiro tema, “Afroriente”, a braguesa desdobra-se em pulsações africanas, fazendo passar para segundo plano o coro feminino constituído por Minela, Maria João e Filipa Pais. Em “Festa do sol”, o cavaquinho fala com a voz de percussões orientais e, em “Amanhecer”, a guitarra move-se nas ondulações graves de umas “tablas”, enquanto em “Tarde quente”, um dos dois temas em que participa Maria João, é a vez de o bandolim se submeter à dolência sensual provocada pela raspagem dos dedos nas cordas. “Ilha inquieta”, um dos temas mais belos de “Acústico” e um dos vários que falam do fascínio pela ilha de Santa Maria, nos Açores, sustenta a sua beleza na arte do contraponto e no domínio dos harmónicos. “Floresta dos espelhos”, num registo mais tradicional, faz a clássica homenagem a José Afonso e “Fado” viaja na descoberta das fontes do Oriente, no estilo rasgado do cavaquinho. “Bandolinata” – celta, indiana, portuguesa? – e “Ecos”, um improviso, enfeitado com respostas “delay”, sobre um excerto do Coral, opus 10, de Bach, pedem por seu lado para a vertente clássica e para o exercício de estilo. Do par de participações vocais de Maria João, a nota mais positiva vai para o diálogo solto da voz – percorrendo uma gama de alturas e emoções que corre da estridência para a surdina – com o bandolim, em “Tarde quente”, sendo menos feliz um “Feitiço da maré”, onde a cantora se acomoda a um tipo de ornamentações que recordam Janita Salomé. Se ao longo do disco são detectáveis ecos remotos dos Genesis, de Steve Hackett, em “Maré de Agosto”, ou dos Penguin Café Orchestra, em “Amanhecer” e “Aguardente de cana”, é porém na assimilação da estética minimal, presente nas repetições cíclicas que vão cavando em cada tema a sua própria verdade, que o discurso global e 2Acústico” encerra motivos de maior interesse. “Acústico” exige do ouvinte um investimento e uma atenção maiores do que o habitual. A compensação é gratificante. (7)