Joaquim D’Azurém, Carlos Maria Trindade e Nuno Canavarro – “Novas Músicas Para Novas Atitudes” (concertos | reportagens)

Secção Local Sábado, 14.12.1991


Novas Músicas Para Novas Atitudes

Joaquim D’Azurém, Carlos Maria Trindade e Nuno Canavarro escolheram ter voz própria. A nova música portuguesa perdeu o medo de não ser popular. É possível seguir por estradas solitárias e retirar prazer da aventura.

Ontem à noite, no Teatro S. Luiz, em Lisboa, os três músicos, mais alguns convidados, mostraram vias alternativas para a música portuguesa. Na sala, houve quem os acompanhasse na descoberta. E houve quem dormisse, quem não compreendesse. Outras formas de comunicação que urge aprender.
Joaquim D’Azurém gravou, vai para dois anos, um álbum de “transparências”. Ontem trouxe consigo os seus sonhos para a guitarra portuguesa. Primeiro em peças a solo, evocativas de um passado que é fado, amor, luto e tradição. Cruzado de referências à modernidade: o etnominimalismo de Laraaji, nos “clusters” de cristal, no dedilhar circular, nas sobreposições e nos ecos, tudo a fazer lembrar paisagens de Oriente e mediterrânica maresia.

Ragas

D’Azurém pouco falou ao longo de uma actuação que aliou o virtuosismo à interiorização. Um aceno da cabeça trouxe para o palco o primeiro convidado da noite, um bom tocador de tablas de quem gostaríamos de saber o nome. Excitou e dialogou com os fraseados da guitarra, no batimento de compassos típicos da música indiana. A música fez-se raga, distendeu-se em hipnose, vibrou segundo outras lógicas e latitudes interiores. Percussões que a dado momento ficaram sós no palco, num longo solo encantador. Depois foi a vez de João Pires de Campos (Flak, nos Rádio Macau) se juntar ao duo, arrancando da sua guitarra eléctrica sons sintetizados como pano de fundo para as divagações melódico / harmónicas dos outros dois músicos.
De súbito, sem que nada o fizesse prever, Joaquim D’Azurém pede desculpa e abandona o palco, dando a ideia de ter de satisfazer uma necessidade urgente, quiçá de ordem fisiológica. Cumprindo à risca a máxima do “quando mija um português mijam logo dois ou três”, os outros seguem-lhe o exemplo e abandonam por sua vez o palco. Risinhos entre a assistência, indecisa se haveria ou não de lhes imitar o gesto e transformar o evento em ritual de vertimento de águas. Os músicos regressam, mais aliviados, para o último número. E afinal o intervalo viria logo a seguir…
No hall do S. Luiz, notava-se a presença de vários músicos da nossa praça, entre eles José Cid, António Pinho Vargas, Rodrigo Leão, o LX-90 Rui Pregal da Cunha e os “resistentes” Fernando Cunha e Pedro Ayres, atentos a estas coisas alternativas.

Sedução Digital

Chega então a vez das máquinas terem uma palavra a dizer. Carlos Maria Trindade e Nuno Canavarro ligam os computadores, os “samplers” e outros brinquedos de alta tecnologia e dão um recital de sons étnicos / ambientais extraídos do recente álbum “Mr. Wollogallu” (“wollogallu” designa um tambpr ancestral), um dos melhores discos do ano na área da música electrónica. Exploração bem sucedida do universo das fusões, na linha de nomes como os Cluster, Manuel Göttsching ou da dupla italiana Musci / Venosta. Vozes tribais sequenciadas misturam-se com o piano computorizado ou com processamentos de folclores, reais ou imaginários. Em certos temas a música faz-se acompanhar pela projecção de imagens abstractas de computador. Mantras digitais, prenunciadores da “nova idade”.
Já perto do final Carlos Maria Trindade desculpa-se pela falta de diálogo com o público. A culpa é das “exigências da máquina”. O despropósito das palavras não chegou para apagar a sedução dos sons, a predisposição para a aventura.

Vários (Talking Heads, R.E.M., Nick Cave, Lou Reed, U2, Elvis Costello, Depeche Mode, …) – “Banda Sonora Antecipa Novo Filme De Wim Wenders – Enquanto O Fim Do Mundo Não Chega”

Secção Cultura Sexta-Feira, 13.12.1991


Banda Sonora Antecipa Novo Filme De Wim Wenders
Enquanto O Fim Do Mundo Não Chega


Em “Until the End of the World”, o realizador alemão rodeou-se de nomes sonantes da música actual, entre eles os Talking Heads, R.E.M., Nick Cave, Lou Reed, U2, Elvis Costello e Depeche Mode. Sob a aparência sombria, as canções – como o cinema de Wenders – perseguem a luz.



Conhece-se, viajando. Mas conhece-se apenas enquanto esse movimento de deslocação corresponder a uma dupla transformação: do sujeito que evolui e, como consequência, do território percorrido, já que a visão da realidade está condicionada pelo “lugar de onde se olha”. Uma questão de perspectiva. O cinema de Wenders dá a ver as várias fases de um percurso, o que está “antes da curva da estrada”. Viagem iniciática, de procura e descoberta em espiral.
Cineasta da viagem, Wim Wenders, analisa-a nos seus múltiplos registos. “Alice nas Cidades”, “Ao Correr do Tempo” (obra-prima sobre os infinitos da comunicação, da permuta de sentidos, do silêncio para-gramatical que nos habita e, no limiar do território, nos transcende), “Paris, Texas” (demanda do amor e da linguagem, de certa forma inversa à de “Ao Correr do Tempo”) “Luz sobre a Água” (viagem terminal até ao derradeiro limite – ritual de transformação / decomposição do corpo e do cinema, e da redenção pela voz dos personagens que à deriva sobre as águas, dissertam sobre o que é, ou foi, a vida e o cinema, tema recorrente em “O Estado das Coisas”) e o novo “Until the End of the World” perseguem a transfiguração, a luz (da luz e dos jogos de iluminação nos fala ainda Wenders em “As Asas do Desejo”), o real nas suas duas vertentes: a das imagens cinematográficas e aquela que julgamos mais consistente, do “mundo material”. Em qualquer dos casos, projecções.

A Lei Do Movimento

Para compreender o que o termo “road movie” significa na economia do autor, é preciso compreender primeiro o preceito Zen (caro ao cineasta), segundo o qual o sujeito que observa e a realidade “observável” constituem uma realidade única, decorrendo a pseudo separação da subjectividade da razão analítica.
Pode definir-se o cinema de Wim Wenders em termos de geografia: humana, planetária e metafísica. Mesmo quando o movimento, circular, anti-iniciático e luciferino (como entende Abellio), não leva a lado nenhum – “Movimento em Falso”, presente apenas no alinhamento temporal das palavras, da fala destituída de sentido (isto é de direcção) por forma a permitir a ilusão. O “realismo” confunde-se aqui com o não-movimento existencial de “Para Além do Paraíso”, de Jim Jarmusch). David Byrne define na perfeição esse lugar de morte: “O paraíso é um lugar onde nunca acontece nada.”
“Until the End of the World” almeja a totalidade, a visão global do planeta. Viagem culminante, de síntese apocalíptica que, a partir da Europa e seu lastro cultural, acaba por fixar-se e centrar-se nessa terra de ninguém que é o continente australiano, lugar paralelo, alternativo, de início, que se presume ser o único capaz de sobreviver à catástrofe nuclear.

Canções De Luz E Desespero

A banda sonora chegou até nós primeiro do que as imagens. É-nos concedido algum tempo de prazer antes do “juízo final”. Muito do sortilégio que anima o cinema de Wim Wenders vive do contraponto sonoro. “Until the end of the world” não foge à regra. O realizador escolheu a dedo os músicos e estes corresponderam de forma exemplar, dando às respectivas composições a toada sombria, derradeira, que o ambiente das imagens sugere. Não por acaso, o papel de “pivot” do projecto foi entregue a Graeme Revell, compositor e teórico australiano, fundador dos SPK, dado a obscuras manipulações sonoras, entre o classicismo gótico, a música industrial e as experimentações electrónicas com computadores.
“Opening Titles”, “Claire’s Theme”, “Love Theme” e “Finale” são peças instrumentais de recorte clássico, parasitadas por sons samplados e acrescidas do violoncelo solo de David Darling, escolhidas para enquadrar as canções propriamente ditas, à excepção da dos U2, compostas de propósito para a banda sonora. O CD não integra os temas de Peter Gabriel e Robbie Robertson que constam do duplo álbum.
“Sax and Violins”, dos Talking Heads, introduz o registo “down” que prevalece ao longo do disco, dando a ouvir um David Byrne menos frenético mas mais desolado do que é costume. Julee Cruise traz consigo resíduos das trevas fluorescentes de David Lynch e Angelo Badalamenti, no pesadelo cor-de-rosa “Summer Kisses, Winter Tears”, de Elvis Presley. De base rítmica hipnótica, os temas dos Can (que já haviam colaborado em “Alice nas Cidades”) e, em versão “dub”, de Neneh Cherry, adensam o mistério. Não soam menos fantasmagóricos o minimalismo poético de Patti e Fred Smith, a “country” etérea de Jane Siberry com K. D. Laing e de Daniel Lanois, e os “blues” espectrais de T-Bone Burnett. Os Crime & The City Solution e Nick Cave, amigos de Berlim, transitam das “Asas do Desejo” com a mesma força e negritude. Cave cada vez mais empenhado em tornar-se uma espécie de Leonard Cohen cavernoso. Lou Reed sinuoso como sempre sobre uma guitarra saturada de electricidade, Elvis Costello com uma versão de “Days”, dos Kinks, os Depeche Mode e os R.E.M. apresentam canções tristes de acordo com o tom de desespero do enredo.
É preciso esperar até ao título-tema dos U2, extraído de “Achtung Baby” e editado em versão especial para a banda sonora, para que o fogo se reacenda. Enquanto o fim não chega.

Vários (Nuno Canavarro + Carlos Maria Trindade + Plopoplot Pot + Nuno Rebelo + A Máquina Do Almoço Dá Pancadas + …) – “Festivais De Lisboa – Os Sons Da Diferença” (festivais | antecipação)

Secção Cultura Quinta-Feira, 12.12.1991


Festivais De Lisboa
Os Sons Da Diferença


Os espectáculos de hoje e amanhã à noite, no S. Luiz em Lisboa, integrados nos “Encontros de Música” dos Festivais de Lisboa, prometem ser diferentes. Joaquim D’ Azurém e a dupla Nuno Canavarro / Carlos Maria Trindade actuam hoje, às 21h30. O primeiro toca guitarra de água, de cristal. “Transparências”, álbum de estreia editado há dois anos, inventa novas cores e filigranas para a guitarra portuguesa e é uma incursão serena no território das músicas ambientais. Fado astral?
Nas áreas do ambientalismo, com porta aberta para mundos paralelos, movem-se Carlos Canavarro e Carlos Maria Trindade, o primeiro ex-Street Kids, o segundo ex-Heróis do Mar. “Mr. Woologallu”, álbum acabado de editar, conta histórias de mil sons enredos, nascidos dos sonhos do computador. Imagens, sinais que se cruzam. Realidades virtuais que no cosmos de um instante se fazem e desfazem, contemplados de um “tapete voador zen, silencioso mas não sem turbulências”.
No dia seguinte a música acelera, torna-se rude, entrelaça-se em estruturas milimétricas, quase fractais. O silêncio dá lugar ao grito, a contemplação à improvisação. Da selva urbana, mensagens tecnojazz via Plopoplot Pot, de Nuno Rebelo, Luís Areias, Rodrigo Amado, Paulo Curado e Bruno Pedroso, e Máquina do Almoço Dá Panacadas, de João Pires de Campos, Rodrigo Amado, Gui, Luís Filipe Valentim, Lívio e Alberto Garcia. As duas bandas cruzam-se no CD colectânea “Em Tempo Real” onde provam que há uma ordem no delírio e prazer nesse delírio. O cérebro não necessita das pernas para dançar.
Em ambos os grupos os sopros de metal sustentam um edifício de paranoia, de vertigem. Desestruturar para estruturar mais à frente e encontrar o outro lado das formas, novos equilíbrios e maneiras de coabitar o pesadelo. “Catástrofes de todo o mundo desaguando nas planícies do silêncio?” O cataclismo supõe uma estratégia, a exigência de mudança, passagem, revolução. Nada é definitivo. Do silêncio depois do caos os sons renascem. Sempre pela primeira vez.