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Vários (Amândio Bastos + Manuel Faria + José Mário Branco + Carlos Maria Trindade + Mário Martins) – “Produtores Musicais – Uma Profissão Portuguesa”

pop rock >> quarta-feira >> 22.06.1994
DOSSIER


Produtores Musicais – Uma Profissão Portuguesa

“Não há em Portugal produtores capazes” foi o lugar-comum utilizado durante muitos anos pelos músicos portugueses, dentro daquele outro lugar-comum mais vasto que era a “falta de condições”, para justificarem todo o tipo de deficiências. Os que podiam rumavam então para o estrangeiro, em busca da varinha mágica do produtor milagroso que transformaria o esboço tosco ou a ideia difusa no êxito estrondoso capaz de espantar o mundo. Claro que nem mesmo os produtores lá de fora fazem milagres. Seguia-se inevitavelmente o desencanto e o regresso a casa com mais umas dúzias de pistas e enfeites de estúdio desnecessários debaixo do braço e a frustração de se ter despendido dinheiro inutilmente. Enquanto isso, por cá, os produtores – que, embora poucos, existiam – lutavam contra a incompreensão e a falta de trabalho. Hoje, a situação alterou-se de forma significativa, com os músicos portugueses a solicitarem sem preconceitos os serviços dos produtores nacionais. O sucesso recente, em termos de vendas e aceitação, do projecto Filhos da Madrugada veio definitivamente romper as ideias feitas do passado e confirmar que há em Portugal produtores tão bons ou melhores do que os estrangeiros. Convidámos e colocámos cinco questões a outros tantos produtores, da velha e da nova guarda, no sentido de definirem as suas concepções e estratégias. Eles explicaram como se educa os músicos e a música – como se constrói o som.



1. O produtor é alguém que, desligado do artista, põe em prática as ideias deste ou, pelo contrário, é, em estúdio, um representante dos gostos do público?
AMÂNADIO BASTOS – Não acho que as duas componentes da pergunta sejam incompatíveis. Um produtor, ao liderar um processo de gravação, é obrigado a avaliar o trabalho segundo vários prismas e a “meter-se na pele” do público consumidor, do artista, do editor, dos “media”, etc. Não creio que haja uma fórmula que, aplicada, resulte sempre da mesma amaneira. Parece-me mais correcto pensar nos produtores como pessoas que lideram os processos de gravação de música utilizando formas e técnicas variadas em função das características de cada trabalho.

MANUEL FARIA é músico dos Trovante e produtor de, entre outros, Trovante, Mafalda Veiga, Sérgio Godinho, Vitorino, Piratas do Silêncio, Essa Entente, Carlos Zel e, em colaboração com Tim e João Gil, do projecto “Filhos da Madrugada”. Actualmente, prepara os espectáculos “Fados” de Ricardo Pais e “Filhos da Madrugada”. Dirige um estúdio de som, Play It Again, juntamente com Ricardo Galera.

MANUEL FARIA – Há dois tipos de produtores e de produções. De uma forma geral, o produtor tem como principal objectivo ajudar o artista a desenvolver todo o seu potencial e a passa-lo para o disco. Claro que, ao pôr em prática as ideias dos artistas, simultaneamente acompanha o trabalho de uma forma mais fria e desapaixonada, aproximando-se mais do sentimento do público.
CARLOS MARIA TRINDADE – Existem basicamente três tipos de produtor: o musical, o técnico e o auto-suficiente. O primeiro pode arranjar, compor ou dirigir o intérprete a nível musical. O segundo pode gravar, misturar e desenvolver toda a parte de engenharia envolvida num processo de estúdio. O terceiro acumula as duas funções. Em qualquer dos casos, o produtor deve ter a noção de que está ao serviço de um artista e de que a sua função é basicamente a de maximizar as suas ideias e potencialidades. No caso de o produtor ser delegado por uma companhia editora, pode ter também de escolher reportório e assegurar um mínimo de “viabilização comercial” (ao encontro dos gostos dos vários públicos), a par da gestão de um orçamento.
JOSÉ MÁRIO BRANCO – Se, como diz a pergunta, o produtor está “desligado do artista”, ele não poderá , evidentemente, ser o executor dos gostos ou do projecto estético do artista que propõe; será então um representante dos gostos que a editora pretende promover, que nem sempre serão os gostos do público, mas sim os gostos que a editora quer promover junto do público (como escreveu Bénard da Costa, “os gostos não se discutem, mas educam-se…”).
MÁRIO MARTINS – Pode ser as duas coisas. Exemplo: “O Nazareno” – dei a ideia ao autor Frei Hermano da Câmara, que compôs a música, os textos foram escolhidos por ambos e depois, com o maestro Jorge Machado, trabalhámos laboriosamente na produção continuada em estúdio. Foi a mais complexa produção que fiz. Outro exemplo: um disco de Marco Paulo – escolhi sempre todos os sucessos, ultimamente fazia as versões, trabalhava depois com o músico que orquestrava e com o cantor. Em qualquer dos casos, como produtor ao serviço de uma editora tinha de pensar obviamente no gosto do público a quem os discos são dirigidos.

2. Em que medida os produtores são criadores?
A.B. – Os produtores são criadores na medida em que são os responsáveis pelo elo final da cadeia criativa, ou seja, intervêm na criação do produto final, o fonograma. E se, nalguns casos, essa intervenção se limita à adaptação da obra do artista



JOSÉ MÁRIO BRANCO é o compositor e arranjador de álbuns como “Ser Solidário”, “Margem de Certa Maneira”, “Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades” e “A Noite”. Membro fundador das cooperativas GAC e, anos mais tarde, da UPAV e do Teatro do Mundo. Recentemente entrou para a formação do Grupo de Gaiteiros de Lisboa

A padrões de consumo, noutros a acção do produtor é bem mais profunda e decisiva. O produtor pode ser chamado a intervir em todos os estádios do processo criativo, corrigindo ou propondo alternativas à composição original ou mesmo criando soluções para colmatar eventuais deficiências.
M.F. – Os bons produtores são sempre criadores. Devem ser criativos no acompanhamento aos artistas, na escolha de todas as soluções logísticas, de todas as soluções musicais ainda não resolvidas pelos músicos. Têm, acima de tudo, de saber onde devem para de criar. Nos discos de artistas, ao contrário dos de bandas, o produtor tem muito mais influência no resultado musical.

AMÂNDIO BASTOS é. Desde há dez anos, técnico de estúdio da Valentim de Carvalho, com um ano de interregno em que trabalhou como “free lancer”. Técnico de som e de iluminação. Produtor de, entre outros, Pop Dell’Arte, Rádio Macau, Rui Veloso, Tubarões, Trovante, Waldemar Bastos e Sétima Legião. A sua produção mais recente é a do novo disco dos Pop Dell’Arte, “Sex Symbol”.



C.M.T. – Os produtores são, média geral, criadores, mas quantas vezes isso não sai para o domínio público… Nalguns casos, essa criatividade é defendida por um “royaltie” de produção.
J.M.B. – Tal como nas outras artes que implicam processos de criação colectivos e complexos – a arquitectura, o cinema, a ópera, etc. -, os “producers” (entendidos como produtores autênticos) têm um papel decisivo na configuração do produto final que veicula para público o impulso criador do artista titular. Neste sentido, há inúmeros exemplos que demonstram que o verdadeiro autor da obra, aquele que lhe dá o cunho intrínseco e distintivo, é o produtor – vide os casos de Quincy Jones nos princípios da “soul music” ou George Martin nos primeiros discos dos Beatles.
M.M. – De várias maneiras. Se descobrir, como eu, vários artistas, há que lhes encontrar a “medida” através da escolha doo reportório adequado à voz, às características e à imagem. Esse trabalho, da escolha do reportório, quer seja da autoria do artista em causa, que r de outros autores, é de criatividade. Há casos em que essa escolha marca, define, o estilo futuro e interfere na personalidade interpretativa do cantor. O reportório hoje em dia é fundamental.

3. O que é um disco de produtor? Considera que existe em Portugal algum disco de produtor?
A.B. – Quando o trabalho de produção se torna o aspecto mais marcante da estética de um disco, podemos estar eventualmente perante um disco de produtor. Em Portugal, estou a lembrar-me do primeiro disco dos Diva, chamado “Ecos de Outono”, produzido por Ricardo Camacho, um dos melhores produtores portugueses, com a ajuda do Francis.
M.F. – Pessoalmente, acho que os discos são dos artistas e que o chamado “disco de produtor” é um erro. Neste caso, o produtor sente-se como um realizador de cinema e toma para si a parte do espaço do artista, muitas vezes motivado pela falta de criatividade deste. Quando o artista não tem interesse ou potencial suficiente, o produtor deve declinar o convite. Acho que existirão em Portugal vários exemplos e espero nunca ter feito nenhum.
C.M.T. – Disco de produtor é todo aquele em que a personalidade musical do produtor se sobrepõe à do artista. Em Portugal existem “n”, mas lá fora são mais evidentes. A ZTT impôs-se nesse campo (Frankie Goes To Hollywood, Propaganda, Seal…).
J.M.B. – Um “disco de produtor” é aquele em que a organização logística e estética da obra é fruto de um projecto artístico do próprio produtor, sendo cada uma das suas componentes não-significante por si só. Em Portugal posso citar dois casos: uma obra de José Luís Tinoco publicada em Novembro de 1971, com as vozes de Tonicha, Carlos Mendes e Samuel sobre a poesia de António Gedeão; e a recente colectânea “Filhos da Madrugada” com versões de canções de José Afonso.
M.M. – É um disco em que o produtor escolhe o reportório, trabalha com o músico, dirige as vozes, colabora na mistura. Claro que há, no meu caso citaria o disco de Fafá de Belém, que nunca tinha cantado fado. Foi preciso fazê-la entender o tipo de música e a interpretação adequada.



CARLOS MARIA TRINDADE é antigo teclista dos Heróis do Mar, Co-autor, com Nuno Canavarro, do álbum “Mr. Wollogallu”. Produtor de discos dos Heróis do Mar, Delfins, Golpe de Estado, Xutos & Pontapés, António Variações, Rádio Macau e Paulo Bragança.

4. Como funciona o trabalho de produtor a) quando tem que congregar vários artistas para gravar um disco (p. ex,. “Filhos da Madrugada” e b) quando lhe cabe fazer os arranjos e as orquestrações a partir de vagas linhas melódicas, letras alinhavadas e uma ideia de ritmo apresentada pelos músicos À entrada do estúdio?
A.B. – a) No caso concreto do projecto “Filhos da Madrugada”, existem dois aspectos distintos no plano da produção a considerar; por um lado, o trabalho de conceber, planear e executar as grandes linhas do projecto, tarefa que coube ao trio Manuel Faria, Tim e João Gil. Por outro lado, a produção musical propriamente dita de cada tema, confiada a diferentes produtores indicados pelos grupos [Amândio Bastos produziu o tema dos Sétima Legião]. O primeiro aspecto passa pela definição, em conjunto com a editora, das grandes linhas do projecto, o que implica a tomada de decisões por vezes polémicas, passa pelo planeamento e acerto do calendário das gravações; escolha, em acordo com os grupos, do tema a ser trabalhado; coordenação de todas as datas e aspectos logísticos para as gravações; masterização e finalização do fonograma… Trata-se, como se pode ver, de tarefas que não passam directamente por aspectos de produção musical, mas que se revelam, em especial neste tipo de discos, de importância capital para o sucesso do projecto.
b) Apesar de existirem vários produtores portugueses com capacidade para lidar com esta situação, são bem conhecidas as vantagens do trabalho de pré-produção. Só intencionalmente e com objectivos bem definidos se abdica dessa fase da produção de um disco.
M.F. – a) No caso de “Filhos da Madrugada”, escolhemos os grupos e as canções e, a partir daí, tentámos interferir o mínimo no trabalho dos artistas. Apenas os espicaçámos para serem ousados.
b) Se um produtor esperar até à entrada do estúdio para conhecer as ideias dos músicos, está liquidado. A pré-produção, embora escassa em Portugal, é fundamental para o sucesso do trabalho. Acho muito importante o conhecimento das atmosferas que o músico pretende. De uma forma geral prefiro sempre ajudar os artistas a fazerem os próprios arranjos.
C.M.T. – O produtor, em qualquer dos casos, prepara a entrada em estúdio, num processo que se chama pré-produção. Pode revestir-se de vários aspectos: reuniões executivas para orçamentação do projecto, ensaios de grupo, escolha de reportório, harmonização de melodias, direcção de interpretação, programação em computador ou sequenciador, etc.
J.M.B. – No trabalho do produtor, as duas funções – organização logística e globalização do projecto artístico – estão, sendo distintas, intimamente relacionadas por via das características do processo produtivo. O maior pendor do produtor para uma ou outra destas vertentes dependerá das própria características iniciais do artista e do seu projecto, ou seja, da “matéria-prima” original do disco. O produtor poderá quase limitar-se a ser um organizador de situações complexas a partir de uma ideia inicial (que até pode não ser sua), caso de “Filhos da Madrugada”; ou poderá, perante a fragilidade da matéria-prima ou do artista a produzir, tornar-se totalmente protagónico na criação musical propriamente dita. Uma coisa é certa: se é verdade que “hoje já não se faz música, faz-se som”, a influência do produtor na matéria estética transmitida ao público configura-o cada vez mais como autor da obra ou, pelo menos, co-autor. E atenção: produção, arranjos, orquestrações, direcção artística, tudo isto são funções diferentes que podem, ou não, estar centralizadas num produtor.
M.M. – a) Desse tipo produzi “O Nazareno”, que é uma obra em que cantores, como numa ópera, faziam solos, duetos, tercetos, etc. e tinha além disso actores que diziam as suas partes do texto.
b) Nunca foi o meu caso. Mas, observando esse fenómeno, o que acontece em regra é que os músicos se preocupam com a parte em que são “mestres” e esquecem uma área muito importante que é a da direcção de vozes. Outra tendência dos músicos é a de valorizarem o seu trabalho em detrimento da voz solista. Eu, quando em estúdio, nas misturas, tenho sempre que, diplomaticamente, conciliar as duas vertentes.

5. Quais as vantagens e desvantagens de um produtor ser ou não igualmente músico?
A.B. – Qualquer produtor tem vantagens em dominar a linguagem musical, desde que mantenha o distanciamento necessário e que esse domínio não seja um fim em si, afastando-o da realidade e dos anseios dos criadores e consumidores. Por outro lado, é indispensável a um produtor ter capacidade de organizar, manipular e criar sons musicais, de modo a poder acompanhar o avanço das novas atitudes e formas de expressão musical que estão a marcar este fim de século.
M.F. – Se um produtor for músico, tem a vantagem de poder estabelecer um diálogo mais musical com os artistas. Mas, se se der o caso de ser um “músico falhado”, poderá tentar passar, á custa do artista, ideias que nunca conseguiu gravar. Se for um técnico, por outro lado, poderá querer apenas que o grupo tenha um “bom som”. Pessoalmente, penso que o produtor deve ser alguém tranquilo e consciente de que o disco em que está a trabalhar não é seu.
C.M.T. – A vantagem de um produtor músico é que pode aconselhar e valorizar toda a estética musical inerente ao projecto de gravação. A desvantagem é que se, por exemplo, o produtor for simultaneamente o guitarrista do grupo, ele, por imaturidade, poderá, consciente ou inconscientemente, prejudicar o trabalho de misturas, subindo as suas próprias pistas em detrimento do cantor ou de qualquer outro elemento ( a inevitável “ego trip”…).
J.M.B. – Defendo que “a cada produção, o produtor certo”. Os aspectos determinantes são a competência profissional do produtor – capacidade de (ante)visão global de uma obra e de gestão logística do projecto artístico, e a adequação do seu gosto artístico; e a adequação do seu gosto artístico pessoal e da sua idoneidade ético-estética às características premissiais do projecto artístico. De um modo geral, é evidente que o gosto musical do produtor é determinante, para bem ou para mal do resultado.
M.M. – A resposta está implícita na que dei à pergunta anterior.



MÁRIO MARTINS “descobriu, entre outros, Marco Paulo, António Variações, Paco Bandeira, Lara Li e José da Câmara. Entre inúmeras produções, destaque para o trabalho “O Nazareno”, de Frei Hermano da Câmara, e álbuns de Luís Goes, Fafá de Belém, Nuno da Câmara Pereira, Carlos Paião, Paco Bandeira, José Cid, Júlio Pereira, Jorge Palma, Grupo de Cantares de Manhouce, Alexandra, José da Câmara, Maria Teresa de Noronha e Lucília do Carmo.

Carlos Maria Trindade & Nuno Canavarro – “Mr. Wollogallu”

Pop-Rock Quarta-Feira, 18.12.1991


CARLOS MARIA TRINDADE & NUNO CANAVARRO
Mr. Wollogallu
LP / CD, União Lisboa / Polygram



O género a que se convencionou chamar “new age” tem as costas largas. Editoras pioneiras como a Windham Hill e a Coda contribuíram para dar à expressão o sentido depreciativo de que geralmente goza, através da edição em série de objectos vinílicos consistindo, na maior parte dos casos, em pianos bucólicos, um toque de flauta e sons de vento e água por trás. Em suma, “new age” costuma ser sinónimo de “chato”.
Por outro lado, há a tendência para utilizar o termo para catalogar toda a música electrónica de carácter mais intimista, esteja ou não impregnada dos sinais prenunciadores de uma nova idade cósmica. “Mr. Wollogallu”, para além de quaisquer tentativas de classificação, é um objecto fascinante e uma tentativa bem sucedida de dar um rosto humano à música elaborada em computador.
Carlos Maria Trindade e Nuno Canavarro tomam como ponto de partida o som como estímulo sensorial. A música de “Mr. Wollogallu” (nome de um tambor primitivo), ao contrário de outras propostas de música “de computador” que jogam na exploração formal ou nas matemáticas digitais, resultando quase sempre em exercícios “frios”, passíveis de fruição exclusivamente racional (Morton Subotnick, Conrad Schnitzler, Emanuel Dimas Pimenta ou Tó Zé Ferreira), liga-se antes às correntes étnicas e a uma concepção dos sons como vibrações afectivas.
Neste aspecto, “Mr. Wollogallu” pode considerar-se parente próximo dos universos luxuriantes criados pelos italianos Roberto Musci e Giovanni Vennosta, nos clássicos “Water Messages in Desert Sand” e “Urban and Tribal Portraits”, por Steve Shehan, em “Arrows”, ou na forma de progressão sonora, por ciclos, com os alemães Cluster e Manuel Göttsching.
Dividido em dois blocos, compostos por cada um dos músicos, “Mr Wollogallu” passa do pendor classicista e da maior linearidade do traço melódico de Carlos Maria Trindade, brilhantes no tema de abertura “The Truth” ou na peça para piano “West”, para as explanações fusionistas de “Blu Terra” e “Antica / Burun” ou as abstracções de cristal de “Vem 5” e “Segredos M.”, já antes esboçados no anterior álbum a solo “Plux-Quba – Música para 70 serpentes”, sem perder a sedução nem o espírito de aventura.
Música aérea, contemplativa, para saborear como um “refresco de chá num zeppelin à deriva”. Um dos melhores discos do ano de música electrónica. (9)

Joaquim D’Azurém, Carlos Maria Trindade e Nuno Canavarro – “Novas Músicas Para Novas Atitudes” (concertos | reportagens)

Secção Local Sábado, 14.12.1991


Novas Músicas Para Novas Atitudes

Joaquim D’Azurém, Carlos Maria Trindade e Nuno Canavarro escolheram ter voz própria. A nova música portuguesa perdeu o medo de não ser popular. É possível seguir por estradas solitárias e retirar prazer da aventura.

Ontem à noite, no Teatro S. Luiz, em Lisboa, os três músicos, mais alguns convidados, mostraram vias alternativas para a música portuguesa. Na sala, houve quem os acompanhasse na descoberta. E houve quem dormisse, quem não compreendesse. Outras formas de comunicação que urge aprender.
Joaquim D’Azurém gravou, vai para dois anos, um álbum de “transparências”. Ontem trouxe consigo os seus sonhos para a guitarra portuguesa. Primeiro em peças a solo, evocativas de um passado que é fado, amor, luto e tradição. Cruzado de referências à modernidade: o etnominimalismo de Laraaji, nos “clusters” de cristal, no dedilhar circular, nas sobreposições e nos ecos, tudo a fazer lembrar paisagens de Oriente e mediterrânica maresia.

Ragas

D’Azurém pouco falou ao longo de uma actuação que aliou o virtuosismo à interiorização. Um aceno da cabeça trouxe para o palco o primeiro convidado da noite, um bom tocador de tablas de quem gostaríamos de saber o nome. Excitou e dialogou com os fraseados da guitarra, no batimento de compassos típicos da música indiana. A música fez-se raga, distendeu-se em hipnose, vibrou segundo outras lógicas e latitudes interiores. Percussões que a dado momento ficaram sós no palco, num longo solo encantador. Depois foi a vez de João Pires de Campos (Flak, nos Rádio Macau) se juntar ao duo, arrancando da sua guitarra eléctrica sons sintetizados como pano de fundo para as divagações melódico / harmónicas dos outros dois músicos.
De súbito, sem que nada o fizesse prever, Joaquim D’Azurém pede desculpa e abandona o palco, dando a ideia de ter de satisfazer uma necessidade urgente, quiçá de ordem fisiológica. Cumprindo à risca a máxima do “quando mija um português mijam logo dois ou três”, os outros seguem-lhe o exemplo e abandonam por sua vez o palco. Risinhos entre a assistência, indecisa se haveria ou não de lhes imitar o gesto e transformar o evento em ritual de vertimento de águas. Os músicos regressam, mais aliviados, para o último número. E afinal o intervalo viria logo a seguir…
No hall do S. Luiz, notava-se a presença de vários músicos da nossa praça, entre eles José Cid, António Pinho Vargas, Rodrigo Leão, o LX-90 Rui Pregal da Cunha e os “resistentes” Fernando Cunha e Pedro Ayres, atentos a estas coisas alternativas.

Sedução Digital

Chega então a vez das máquinas terem uma palavra a dizer. Carlos Maria Trindade e Nuno Canavarro ligam os computadores, os “samplers” e outros brinquedos de alta tecnologia e dão um recital de sons étnicos / ambientais extraídos do recente álbum “Mr. Wollogallu” (“wollogallu” designa um tambpr ancestral), um dos melhores discos do ano na área da música electrónica. Exploração bem sucedida do universo das fusões, na linha de nomes como os Cluster, Manuel Göttsching ou da dupla italiana Musci / Venosta. Vozes tribais sequenciadas misturam-se com o piano computorizado ou com processamentos de folclores, reais ou imaginários. Em certos temas a música faz-se acompanhar pela projecção de imagens abstractas de computador. Mantras digitais, prenunciadores da “nova idade”.
Já perto do final Carlos Maria Trindade desculpa-se pela falta de diálogo com o público. A culpa é das “exigências da máquina”. O despropósito das palavras não chegou para apagar a sedução dos sons, a predisposição para a aventura.