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Vents d’Est – “Vents d’Est Trouxeram Animação Ao Chiado – A Leste, Nada De Novo”

cultura >> sábado >> 25.06.1994


Vents d’Est Trouxeram Animação Ao Chiado
A Leste, Nada De Novo


Lá vão passando, as músicas outras, pela programação de Lisboa-94. Com mais ou menos (quase sempre menos) público, mais ou menos promoção da parte da organização. Na quinta-feira, coube a vez ao agrupamento Vents d’Est atraírem ao S. Luiz, em Lisboa, um número, apesar de tudo simpático, de pessoas para assistirem à sua fusão bem-humorada de várias músicas tradicionais da Europa com alguma improvisação e um cheirinho a “vaudeville”.
Com 14 elementos a encherem o palco de som, a prestação dos Vents d’Est saldou-se por um ambiente de festa a que o público aderiu por completo e uma certa frustração para quantos procuravam algo mais nesta superbanda em cuja formação avultam, entre outros, os músicos húngaros dos Vujicsics.
Afinal foi mais uma questão de partilha coletiva, de solidariedade multinacional e multicultural, com Michel Montanaro, director artístico dos Vents d’Est a assumir na perfeição o seu papel de maestro, e menos de boa música. Montanaro, francês provençal de origem servo-croata, contou histórias, tocou, com competência e algum (pouco) virtuosismo, uma infinidade de flautas (incluindo a combinação flautim-tambor característica do folclore da Provença), piano e acordeão. Aliás é difícil encontrar nos Vents d’Est músicos de excepção. Para além dos instrumentistas dos Vujicsics – cordas discretas e um saxofonista soprano que se contorceu como mandam as regras e pouco mais – apenas sobressaiu o tocador de “cembalon” (modalidade magiar do saltério) e um violinista com mais sentimento do que técnica. Mesmo a voz da checa Ecsi Gyongyi, de timbre bonito mas demasiado mortiça e quase nula agilidade rítmica, ficou a milhas do que seria de esperar atendendo ao que dela conhecíamos do segundo disco da banda, “Migrations”. O “percussionista”, vamos chamar-lhe antes bate-chapas, foi um desastre, destruindo sempre que fazia bater o martelo, tudo o que era música. Houve também uma gaita-de-foles mas mal se ouviu. Convidado surpresa, o cantor e guitarrista espanhol Pedro Aledo, trouxe alguma contenção e interioridade ao tom “estamos aqui para nos divertirmos” reinante ao longo do concerto.
Tudo isto, porém, não chegou para arrefecer o entusiasmo da assistência que no final a cantou em couro com os Vents d’Est uma espécie de espiritual, em surdina, naquele registo fraterno típico de coisas como “We are the world”. Nos dois últimos temas, um dos quais um tradicional português com a previsível complexidade tipo meia bola e força de que nós portugueses tanto gostamos de acompanhar com palminhas, dois elementos dos portugueses Cantaril – com quem Montanaro colaborou no ano passado – juntaram-se à farra, e o líder dos Vents d’Est mostrou que tocar cavaquinho não é de certeza um dos seus maiores dotes. Enfim, percebe-se que a banda tem prazer naquilo que faz, que há alegria na sua música e a intenção louvável de ultrapassar barreiras linguísticas e geográficas. Já não foi mau.

Vários (Miguel Azguime, Zíngaro / Montéra / Lovens, Denis Colin, Didier Petit e Pablo Cueco, Giancarlo Schiaffini, Idéfix Generator – “Ciclo De Música Improvisada Em Lisboa – Silêncio, Folia E Um Elefante”

cultura >> quinta-feira >> 23.06.1994


Ciclo De Música Improvisada Em Lisboa
Silêncio, Folia E Um Elefante


Muito boa música aconteceu no Ciclo “Improvisação na Música do séc. XX”. Mas a maior, aquela que está para além das notas, teve lugar com o trio formado por Denis Colin, Didier Petit e Pablo Cueco. Solistas de outra galáxia.



Guardamos até à data na memória, como paradigma do acto de improvisação e entrega plena à música, uma memorável actuação do grupo de Michel Portal, há muitos anos, num pequeno cine-teatro em Sintra. O trio de franceses liderado pelo clarinetista baixo Denis Colin andou lá perto. Recapitulemos porém os actos prévios destas “improvisações” que decorreram segunda e terça-feira no Teatro de S. Luiz em Lisboa, uma organização das Miso Produções de Miguel Azguime integrada no programa de Lisboa-94.
Na segunda-feira, com cerca de uma centena de pessoas na sala, Miguel Azguime apresentou a peça “Ícones”, para percussão solo. Percutiu uma escada, uma vasilha (inclusive por dentro), fez cantar um vibrafone, extraiu sílabas da luz e das palavras. Intuitivo, “performer”, atento como sempre à vibração e cor dos materiais, Azguime brilhou sobretudo no já habitual desempenho em três caixas de madeira com diversas afinações/ressonâncias, dele se podendo dizer que cada vez mais se assemelha, na estética e na postura, a Stephan Micus.
Irene Schweizer é uma notável contadora de histórias. Nas citações constantes a estilos e épocas que lhe fez passear pelo teclado (e, num dos trechos, em exploração cavernosa nas entranhas do instrumento), a pianista suiça mostrou uma técnica que enfatiza a articulação e o detalhe em detrimento da energia.
Caótica foi, em certos momentos, a prestação do trio Zíngaro / Montéra / Lovens. Mais contido do que noutras ocasiões, o violinista português acabou por ser o mais atento dos três e o único que procurou pôr alguma ordem na casa. Lovens, jogando com a aleatoriedade dos gestos e dos sons, e Montéra, tecelão de mil ruídos na guitarra (deitada sobre uma mesa, submetida a mil torturas, à maneira de Fred Frith em dia de desbunda), mataram à nascença qualquer ideia ou discurso articulado que surgisse, numa espécie de “coitus interruptus” musical onde Zíngaro procurou construir pontes e acrescentar poesia.

Música Animal

No dia seguinte, a assistência era ainda menos numerosa do que na véspera. Mas as pouco mais de 70 pessoas presentes assistiram ao milagre. Partindo de peças compostas, Denis Colin, Didier Petit e Pablo Cueco deram uma lição, a vários níveis. Tocando embora para um público diminuto, entregaram-se totalmente à música, numa procura incessante de além, na ultrapassagem constante de si próprios. Fizeram teatro, no sentido mais nobre do termo, como o entendia Artaud.: não como uma imitação da vida mas sim a própria vida enquanto teatralização, encenação nua, sem filtros nem barreiras.
Didier Petit é um monge. O modo como cria no violoncelo faz dele um asceta. Orquestrador de sentimentos e dos diferentes planos do real, cantou literalmente e subiu, subiu até regiões insuspeitadas da música. Inesquecível a maneira como se “introduziu” num solo de Cueca no “zarb” (tambor de toque algures entre a “darbouka” e as tablas), fazendo-o apenas com movimentos (no sentido mais lato, música é movimento, os sons nascem depois) do instrumento e do arco, em arquitectura gestual que provou de uma vez por todas que o silêncio (fonte e término da música) pode ser moldado e audível.
Denis Colin é um prodígio. De técnica (percorre com a agilidade de um “flaneur” todas as alturas, da estridência ao telurismo abissal) e de “feeling”. O(s) seu(s) discurso(s) é percorrido pelo fogo. O corpo agita-se-lhe em folia criativa. Lirismo, humor, força, recolhimento, segundo os ditames do momento. Metamorfose. Ao ponto de numa fase em que a música inflectiu em pulsação tribal, primitiva, quase de batuque, se transformar num elefante em fúria, soltando bramidos pavorosos, abanando o clarinete baixo como uma tromba. Naquele momento, Denis Colin era um elefante, da mesma forma que um xamã confunde a sua alma humana com a dos animais.
Cueco é um percussionista ao estilo homem-aranha de Glen Velez, criando imperceptivelmente teias de soluços, síncopes, explosões, filamentos de ar, dúvidas tornadas certezas, pedras, batimentos cardíacos. Os três juntos, só visto. Ainda por cima tinham “swing”!. Saíram do palco como entraram, discretamente, por uma porta aberta no enorme painel em metal que na ocasião substituiu o pano de cena, encimado pela frase “evitai o pânico”.
Perdoem-me então finalmente Giancarlo Schiaffini e as suas impressionantes manipulações tímbricas e harmónicas realizadas no trombone com a ajuda de “live electronics”. Algures nas imediações de Stuart Dempster (na criação de tempos de reverberação artificiais), J. A. Deane (no massacre sonoro) e Terry Riley (em certas circularidades evocativas do tema “Poppy nogood and the Phantom band” de “A Rainbow in Curved Air”). Fecharam os portugueses Idéfix Generator numa onda de jazz rock bem tocado mas sem rasgos, com o saxofonista Paulo Curado em muito bom nível, por vezes em curiosa interiorização do universo de John Lurie. Lisboa 94 nem deve ter reparado, mas alguma da melhor música ao vivo deste ano esteve nestas “improvisações”.

Vents d’Est – “Vento Com Múltiplos Sabores”

pop rock >> quarta-feira >> 22.06.1994


Vento Com Múltiplos Sabores



O colectivo Vents d’Est, originário da Hungria, actua amanhã em Lisboa no Teatro S. Luiz, em espectáculo integrado nas Festas de Lisboa 94. Vasmalom, Kolinda, Muzsikas, Sebo Ensemble, Okros Ensemble, Zsaratnok e Vujicsics são alguns dos grupos de música tradicional da Hungria conhecidos pelos melómanos portugueses. Os Vents d’Est são diferentes. Não são propriamente um grupo mas um projecto do tipo Hent San Jakez, estes na vertente céltica, ou seja, uma agremiação de músicos de proveniências diversas aglutinados por uma proposta musical comum. Michel Montanaro, um servo-bosno-croata de ascendência francesa-occitana, é o director musical desta formação que reúne mais de uma dezena de músicos – entre os quais os grupos Vujicsics e os checoslovacos Ghymes – e pratica uma síntese inesperada do jazz com as músicas tradicionais da Hungria e do Mediterrâneo, da música clássica com a Idade Média, do gelo eslavo com o calor cigano, do rigor com o humor. Características que podem ser apreciadas no segundo álbum dos Vents d’Est, “Migrations”, gravado a seguir ao disco homónimo de estreia, por sua vez gravado ao vivo em Budapeste.
A voz belíssima da cantora Ecsi Gyongyi, gaitas-de-foles e sanfonas juntam-se aos metais, à bateria e ao piano de cauda, na criação de uma música sem fronteiras onde, apesar do privilégio concedido à composição escrita, a improvisação acontece quando menos se espera.
Não se deu por isso, mas Montanaro já trabalhou com os portugueses Cantaril. Assim como Konomba Traore, do Burkina Faso, Barre Phillips, lendário baixista dos Trio, formação emblemática da “free music” britânica dos anos 70, e Pedro Aledo, um espanhol especialista das músicas do Sul do seu país.
Paticamente desconhecidos entre nós, os Vents d’Est tiveram honras de capa na edição de Novembro/Dezembro do ano passado da revista francesa “Trad Mag.” E um artigo no qual Montanaro faz a definição da sua música: “um diário de viagem de um compositor que passou 15 anos da sua vida a percorrer a Bulgária, a Hungria, a Alemanha do Leste, a Indonésia e a América, que praticou todo o tipo de encontros e toca como um músico de jazz, de música contemporânea ou medieval”. “World music”? Mais do que isso, pois “nos Vents d’Est há qualquer coisa que ultrapassa a moda – a necessidade de encontro num mosaico que respeita cada cultura”. “O mundo é como um prato de comida chinesa”, diz Montanaro, “com vários sabores dos quais cada um escolhe a sua ementa pessoal”.
VENTS D’EST, 23 de Junho, Teatro S. Luiz, Lisboa