21 de Julho 2000
Dossier Alemanha
O século da eletrónica kraut
Existe um elo a unir a música eletrónica alemã dos anos 70, 80 e 90. O krautrock cedeu o lugar à “neue deutsche welle” e esta aos atuais magos do “powerbook”. Os sonhos da “kosmische muzik” transformaram-se em pesadelos industriais e estes deram lugar a brincadeiras de crianças. Mas há quem nunca tenha perdido a última carruagem deste comboio. O PÚBLICO traçou o mapa dos principais músicos, conceitos, movimentos que ao longo das últimas três décadas, na Alemanha, desenvolveram novas relações entre o Homen e a máquina.
ANOS 70: O SONHO
Tínhamos ficado em meados dos anos 70, na Alemanha (ver “dossier” sobre Krautrock na edição do SONS de 7 de Maio de 1997). A eletrónica (pela via dos mestres “eruditos”, como Karlheinz Stockausen e Oskar Sala ou do space-rock-psicadélico excretado dos Pink Floyd de “Atom Heart Mother” e “Meddle”) mandava. Kraftwerk, Klaus Schulze, Tangerine Dream, Ashra, Faust, Can, Amon Düül II, Popol Vuh, Harmonia, Cluster, Yatha Sidhra, Mythos, Agitation Free, Eiliff, Wallenstein, Dzyan, Eroc, Achim Reichel, Embryo, Sand, Annexus Quam, Cornucopia, Brainticket, Cosmic Jokers viajavam pelos novos espaços abertos pelos osciladores e filtros LFO e VCF.
As palavras de ordem eram: Kosmische, freakout, psicadelismo, planante, cogumelos mágicos, jam, space rock, experimentalismo, zen, meditação, free rock, LSD, improvisação, alucinação, sintetizadores gigantescos usados também como elementos estéticos/decorativos, agit rock, romantismo, vida em comuna, underground, ficção científica…
Editoras principais: Ohr, Kosmische, Muzuk, Baccilus, Bellaphon, Brain, Kuckuk, Pilz, Sky.
Quando o punk rebenta em Inglaterra o krautrock agonizava já com o rock sinfónico e o hard rock FM de bandas como os Atlantis, Eloy, Birth Control, Message, Jane e Triumvirat. Os clássicos que resistiram e prosseguiram carreira traçavam o seu próprio caminho alheios aos movimentos e às correntes de estilo: os Tangerine Dream vendem milhões e batizam a new age; Klaus Schulze troca de equipamento e regula pela 346ª vez os seus sintetizadores para tocar o mesmo tema na sua viagem sem fim pelo cosmos; os Can hipnotizam-se a eles próprios e Holger Czukay é o único que se mantém acordado; os Popol Vuh meditam numa igreja; os Embryo descobrem o jazz e a world music; os Faust entram num período de hibernação de 20 anos; os Kraftwerk transformam-se em robôs e inventam o som da modernidade.
Mas era necessário fazer a transição do krautrock para os anos 80, acompanhando as novas revoluções da tecnologia, da sensibilidade e das ideias. Os principais transmissores do testemunho foram – depois da papinha ter sido toda feita pelos Neu!, punks “avant la lettre” – os La Dusseldorf, os Cluster e os D. A. F. Os La Dusseldorf fizeram a adaptação germânica da “new wave”, a chamada “neue deustche welle”, colando-lhe a batida electro-rock conhecida como “motorika”. Os Cluster abriram caminho ao “dark ambient” e ao industrialismo; os D. A. F. foram militantes do “disco” na versão sadomaso/militarista, escancarando as portas da cultura das discotecas. Uma última palavra de novo para os Cluster, que teriam de esperar mais uma década para verem o sentido lúdico da sua obra-prima, “Zuckerzeit”, ser reconhecido como absolutamente fulcral para o desenvolvimento de grande parte da produção eletrónica europeia dos nossos dias. Não estavam sós nesse papel: Kurt Dahlke, enquanto Pyrolator ou com os Der Plan, fazia com dez anos de antecedência a eletrónica brincalhona dos anos 90.
ANOS 80: A ENERGIA
Desbravado o território, o cinzento e o niilismo dos anos 80 abateram-se com violência sobre os novos “eletrónicos” alemães. A música industrial (preconizada de forma exemplar na década anterior pelos Kluster/Cluster, em todos os álbuns até “Cluster II”, pelos Kraftwerk até rolarem na auto-estrada, e por Conrad Schnitzler na solidão da sua obra a vermelho, em “Rot”) foi rapidamente assimilada e posta em prática, como sempre acontece com a maior parte dos músicos alemães, na sua vertente mais radical e experimentalista. Como os Einsturzende Neubauten e a sua declaração de intenções de destruição não só do rock como de toda a música em geral, à frente de todos os outros. Ao lado deles, Dieter Moebius, em paralelo com o seu trabalho nos Cluster, punha igualmente em funcionamento a sua própria indústria de metalurgia, com o auxílio da eminência parda Conny Plank.
Mas outros nomes emergem como pilares da eletrónica que vingou até aos nossos dias. Holger Hiller, vindo dos Palais Schaumburg, assina um trabalho, tão pioneiro como genial, de manipulação dos samplers. Holger Czukay investe com mais moderação na mesma área que corta a golpes de “dub”. Asmus Tietchens e Peter Frohmader perfilam-se ao lado de Conrad Schnitzler na elaboração de músicas sombrias que combinam as arquiteturas e o imaginário gótico com a maquinaria industrial e um ambientalismo do inferno que era o negativo da “cosmic music”. Michael Rother percorre a década a desenhar modelos românticos, adaptando a “motorika” a um “neo-easy listening” que mal se adivinhava nos dois principais grupos a que pertencera, os Neu! e os Harmonia. O segundo Cluster, Hans-Joachim Roedelius, hesita entre o piano impressionista, o ambientalismo de Eno e sonoridades mais experimentais.
Com menor projeção internacional, mas representativos de uma originalidade assumida a cem por cento, destacam-se ainda: Klaus Kruger (considerado por alguns o Brian Eno alemão), H. N. A. S. (Hirsche Nicht Aufs Sofa), Die Krupps, Die Todliche Doris (lançaram uma edição composta por sete minúsculos discos de brinquedo, onde esses discos podiam ser tocados…), Propeller Island, Hubert Bognermayer & Harald Zuchrader, Camera Obscura, Cranioclast, Michael Obst, Peter Schaefer, Sträfe Für Rebellion, Jörg Thomasius, Uludag, Harald Weiss, Die Vögel Europas.
Palavras de ordem: industrial, teatro, cabaré, maquilhagem, sintético, disciplina, uniforme, tecnologia, motor, bandeira, eletricidade, metal, vida na cidade, heroína, bizarro, máscara, homem-máquina, sampler, apocalipse.
Principais editoras: Ata Tak, Badland, Erdenklang, Innovative Communications, Sky, Warning, Zick Zack.
ANOS 90: O PRAZER
Tudo se vai, literalmente, misturar, nos anos 90. Logo no início da década, em 1991, os Kraftwerk cumprem pela última vez o seu papel de profetas, com o lançamento de “The Mix”. Pela primeira vez na sua música, a eletrónica, que durante duas décadas fora ensinada a emancipar-se no seio da música popular, nasce do reprocessamento e reciclagem de material antigo. Não é um ato de preguiça mas um ato de visão. Os Kraftwerk remisturavam os Kraftwerk. A música dos anos 90 remistura e remistura-se “ad infinitum”. Ralf Hutter e Florian Schneider tinham completado a sua obra. A partir daí o futuro deixaria de lhes pertencer.
O computador, utensílio musical por excelência da década de 90, mostrava nesse álbum o seu rosto de grande reciclador, produtor de clones infinitos, enumerador, arquivador, programador. A música abandonava o conceito de colagem (de que o sampler fora o derradeiro e absurdo instrumento musical humanista) para se abandonar à ideia de síntese.
Sínteses múltiplas de todas as músicas e de todas as tradições. É a era das “remixes”, das fusões outrora impossíveis, da aglutinação das experiências eletrónicas acumuladas nas quatro décadas anteriores. Trautoniums e theremins juntam-se aos Macs e PCs. O pós-rock junta os Moogs e ARPs analógicos às aparelhagens digitais. No fim, o powerbook (computador portátil) tudo domina e concentra nas suas mãos. Os grupos são alter-egos de um-músico-só. A eletrónica torna-se manipulação pura. Virtual. Mas haverá quem resista.
Ao grandes armazéns e fábricas dos anos 90 vem substituir-se o escritório. A eletrónica alemã, uma vez mais, vai tão longe quanto pode. “Grupos” como os Oval e Microstoria tomam conta dos sistemas de ar condicionado, dos scanners e das fotocopiadoras para criarem a banda sonora, já não dos “novos edifícios em colapso” dos Einsturzende Neubauten, mas de edifícios doentes, infetados pela poluição digital. Os suíços The User tomam o conceito à letra e compõem uma sinfonia construída a partir dos sons processados das entranhas de fotocopiadoras de agulha em funcionamento.
Mas, à semelhança do que aconteceu nas décadas de 70 e 80, a eletrónica alemã diverge em vários ramos. Três editoras em particular representam outras tantas tendências em vigor: a-musik, Mille Plateaux e a mais recente Storage Secret Sounds. No site da Mille Plateaux encontramos catalogações de estilo como “clickhouse”, “electronic listening”, “abstract hip hop”, “Elektroakustik”, “Noise” e “Musique concrete”. Pratica-se uma estética abstrata, conceptual, sistemática. Não sobram motivos de diversão nem para sorrir, mas , ao invés, para sofrer e ter medo. É a casa dos “powerbooks” de cenho fechado, dos estalidos de estática, das frequências puxadas até ao limite do inaudível, das programações sem piedade. No seu catálogo da net a música de um dos álbuns dos “operadores de escritório” Microstoria (de Markus Popp e Jan St.Werner) é definida simplesmente como “digital processing”, de resto um dos “géneros” preferenciais desta editora. A música já não como obra composta mas como o próprio processo “a priori”. A Mille Plateaux tirou a camada de tinta de cima da “man machine” dos Kraftwerk até deixar à vista apenas a estrutura de metal, como acontecia a Arnold Schwarzenegger em “O Exterminador Implacável”, título que poderia bem aplicar-se aos propósitos ideológicos e musicais da Mille Plateaux.
Principais nomes desta editora: Microstoria, Curd Duca, Gas, Terre Thaemlitz, SND, Porter Ricks, Christian Vogel, Pluramon.
A este reino do terro contrapõe-se a a-musik, uma tendência que ameaça tornar-se dominante. Aqui a eletrónica redescobre o prazer do som, das brincadeiras infantis, das programações Lego, das “private jokes”, das carícias dos ritmos e das melodias de carrossel. E do prazer que deriva, não da manipulação, mas do “velho” ato de “tocar”. Alguém na a-musik tinha guardados em casa “Zuckerzeit” dos Cluster e “Wonderland” dos Pyrolator e com esses dois discos construiu um mundo.
A a-musik surgiu na sequência da fusão de dois projetos: o coletivo de música industrial Kontakta, do qual faziam parte Christian Schulz e Frank Dommert, dos H.N.A.S., e a editora Erflog, fundada, entre outros, por Schulz, Dommert e Marcus Schmicker, dos Oval. Com a intenção de fazer “música industrial sem as imagens de atrocidade”, “techno sem o funk”, “new wave sem os penteados ridículos” e “eletro-acústica” sem a acústica”.
Principais nomes desta editora: F.X. Randomiz, Holosud, L@n, Sator Rotas, Schlammpeitziger, Felix Kubin.
Esta faceta lúdica é levada às últimas consequências na Storage Secret Sounds, no seio da qual artistas como Feliz Kubin (fica aqui melhor instalado do que na a-musik…), Nova Huta e Mikron 64 de deliciam a brincar numa cerca para bebés com plasticina, ursos de peluche e carrinhos de corda, e a ler histórias aos quadradinhos. A única regra é a do passeio pela feira popular. Feliz Kubin faz desenhos animados acústicos, histórias de BD para os ouvidos. Os Nova Huta (de Oleg Kostrow que não é alemão mas russo…) embrulham o easy-listening na banda sonora de um filme-negro e acompanham com uma orquestra sinfónica. Os Mikron 64 apanham o automóvel a technopop e programam melodias infantis em microcomputadores da primeira geração.
Outros nomes importantes: Arovane, Atom Heart, Bernd Friedmann, Bluthsiphon, Fetisch Park, Funkstörung, Konrad Kraft, Pole, Rechenzentrum, Sack & Blumm, Schneider TM, Sciss, Soul Center, Tele:Funken, Thomas Köner, Tied+Tickled Trio, Workshop.
Na Áustria cabe um papel importante aos Orchester 33 1/3, agora separado nas suas duas principais parcelas: Christian Fennesz e Christof Kurzmann, este último sob o pseudónimo B. Fleischmann. A editora que fundaram, a Plag Dich Nicht, transformou-se na Charhizma, para onde também gravam os Shabotinski.
No meio da confusão, alguns dos “velhos” continuam imperturbáveis: os Faust, ressuscitados pela mão de Jim O’Rourke, tornaram-se ainda mais os maus da fita, destruindo e incendiando os palcos por onde passam. Moebius prossegue nos Ersatz o seu percurso inigualável. Roedelius compõe sinfonias de eletrónica bizarra. Os Neu! e os La Dusseldorf fundiram-se na entidade coletiva dirigida por Klaus Dinger sob o genérico La! Neu?. Holger Czukay continua a esburacar. O espírito do “krautrock” revive nos Space Explosion, supergrupo formado por Moebius (Cluster), Mani Neumeier (Guru Guru), Jürgen Engler (Die Krupps), Chris Karrer (Amon Düül II) e Zappi Diermaier e Jean-Hervé Peron (ambos dos Faust). Quanto aos Einsturzende Neubauten, garantem que o silêncio é sexy e compões canções de amor…
10 álbuns dos anos 80
D.A.F. Gold und Liebe (1980)
EINSTÜRZENDE NEUBAUTEN Halber Mensch (1985)
HOLGER CZUKAY On the Way to the Peak of Normal (1980)
HOLGER HILLER Oben im Eck (1986)
KRAFTWERK Computer World (1981)
MOEBIUS & PLANK En Route (1986)
DER PLAN Es Ist ein Fremde und Seltsame Welt (1987)
PROPELLER ISLAND The Secret Convention (1988)
PYROLATOR Wonderland (1984)
DIE VÖGEL EUROPAS Best Before (1989)
20 álbuns dos anos 90
B. FLEISCHMANN Pop Loops for Breakfast (1999)
ERSATZ Ersatz II (1992)
FUNKSTÖRUNG Appetite for Destruction (2000)
F. X. RANDOMIZ Goflex (1997)
HANS-JOACHIM ROEDELIUS Sinfonia Contempora No. 1 (1994)
HOLOSUD Fijnewas Afpompen (1998)
KONRAD KRAFT Alien Atmospheres (1996)
KREIDLER Appearance and the Park (1998)
L@N L@n (1996)
MICHAEL ROTHER Esperanza (1996)
MOUSE ON MARS Iaora Tahiti (1995)
ORCHESTER 33 1/3 Orchester 33 1/3 (1997)
SCHLAMMPEITZIGER Spacerockmountainrutschquartier (1997)
SHABOTINSKI (B)ypass (K)ill (1999)
TELE:FUNKEN A Collection of Ice Cream Vans vol.2 (2000)
THOMAS KÖNER Nunatak Gongamur (1990)
TIED & TICKLED TRIO EA1 EA2 (1999)
TO ROCOCO ROT CD (1996)
WORKSHOP Meiguiweisheng Xiang (1997)
Rococós
Começou por ser o nome de uma galeria de arte de Berlim, dirigida pelos irmãos Ronald e Robert Lippok, antes de se tornar o nome de um dos grupos mais interessantes e criativos da nova eletrónica alemã: To Rococo Rot. Os dois decidiram começar a fazer música chamando um terceiro elemento, Stefan Schneider, de outra banda recém-formada, neste caso oriunda de Dusseldorf, os Kreidler. Da primeira sessão realizada pelos três resultou o álbum “CD”, de 1995, uma coleção de sons eletrónicos plenos de força e originalidade, onde eram detetáveis as influências dos Can e de Dieter Moebius, dos Cluster. Ronald Lippok integrava ao mesmo tempo os Tarwater enquanto o seu irmão se dedicava a trabalhos de remistura e djing. Em “Veiculo”, segundo álbum dos To Rococo Rot, o som e as batidas tornam-se mais suaves, numa transição semelhante à dos Kraftwerk, de “Ralf and Florian” para “Autobahn”. Colaborações com Move D, da Source Recods, e D, da Soul Static, culminam na participação do DJ I-Sound numa das faixas do terceiro álbum da banda, “The Amateur View”.
Marcianos
Entre os inúmeros nomes da nova escola eletrónica alemã destaca-se o dos Mouse on Mars, dupla composta por Andi Toma (natural de Colónia) e Jan St.Werner (Dusseldorf). Cedo abandonaram a cena techno para se concentrarem na produção de sonoridades eletrónicas mais abstratas mas não menos desprovidas de “groove” que alternam o paisagismo alucinado e programações ora raivosas ora subliminares, nas quais são percetíveis as marcas deixadas pelos Cluster e pelos Kraftwerk. Eles gostam de citar igualmente os Can e os Neu!, com os quais dizem ter aprendido a “usar instrumentos ‘vivos’ como a guitarra, o baixo e a bateria”. Mas quem já os viu atuar ao vivo pode verificar que os instrumentos “vivos” que Andi e Jan utilizam estão mais de acordo com o espírito dos anos 90: um emaranhado de circuitos e dispositivos eletrónicos dispostos sobre uma mesa de trabalho a partir dos quais os dois alemães constroem uma barreira sónica que vai da hipnose ao massacre, do minimalismo brutal a cadências “clusterianas” em suspensão. Para ouvir com urgência são os álbuns “Vulvaland”, as danças mentais do novo “Niun Niggung” e, sobretudo, o disco que entrará para os anais do novo electrokraut, “Iaora Tahiti”.
NOTA (do SONS – dia 28 Julho): Algumas correções relativas ao texto “Um Século de Eletrónica Kraut” publicado na última edição do Sons. É Markus Popp o mentor dos Oval e não Marcus Schmickler, elemento dos Pluramon e “alter ego” dos projetos Wabi Sabi e Sator Rotas. Os The User compuseram uma sinfonia eletrónica, não para fotocopiadoras, mas para impressoras de agulha. Finalmente, Oleg Kostrow não faz parte dos Nova Huta.