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Carlos Zíngaro, Tó Zé Ferreira, Miguel Sá, zzzzzzzzzzzzzzzzzzP! – Electro-Reparadora Lusitana! – (entrevista aos 3 músicos)

Sons

14 de Janeiro 2000


Electro-reparadora Lusitana!

Carlos Zíngaro, Tó Zé Ferreira e Miguel Sá (dos ZZZZZZZZZZZZZZZZZP!) responderam a um questionário sobre o estado actual da música electrónica portuguesa e sobre a música electrónica em geral. A reparação é possível.



PÚBLICO – É possível a criação de um circuito regular de música electrónica (edição de discos, espectáculos, seminários, etc.), em Portugal? Em que moldes? Quais os principais obstáculos?
CARLOS ZÍNGARO – Apesar de algumas fronteiras se diluírem, continua a existir uma diferença determinante entre o que é comercial e de consumo e o resto (as margens?). Como tal, deixando de lado a discoteca ou a “rave”, pergunto: onde estão os locais para a apresentação das “live electronics” contemporâneas, experimentais, interactivas, etc., com um mínimo de regularidade e condições económicas e técnicas? Onde estão os editores minimamente interessados na publicação/divulgação destas músicas? Ainda, quais as instituições vocacionadas para a organização de seminários temáticos? (Em abono da verdade, o CCB organizou um em 1998, comigo e com o Richard Teitelbaum – desconheço outras iniciativas do género.)
A música electrónica sofrerá exactamente dos mesmos problemas daquelas áreas no nosso país. Por um lado, um eruditismo formal(izador), fechado, institucional e museológico da chamada “obra” – nos casos das músicas contemporânea e electroacústica –, por outro, a quase total marginalização e mesmo boicote para com todas as outras…
Principais obstáculos? Sendo [certo] que o público existe (já o comprovei repetidas vezes), só poderá ser a ignorância, incultura, reaccionarismo e analfabetismo generalizados de quem decide, divulga e organiza… – apenas para ser elegante na linguagem.
TÓ ZÉ FERREIRA – Se pensarmos em termos da existência de produção ou de obras que deveriam ser difundidas ou divulgadas, é claro que existe um pequeno mundo em Portugal à espera de ser ouvido. Posso citar a actividade do músico-compositor Miguel Azguime com o seu festival (anual) Música Viva. Estou ciente das dificuldades de logística em termos de organização. Para além da questão financeira, há a questão de pessoal técnico motivado. Um primeiro passo seria a produção de um calendário dos eventos que se realizam pelo país e sem restrições de géneros ou estéticas, talvez nos moldes da Electronic Music Foundation.
Um dos maiores problemas é que, paradoxalmente, para um país tão pequeno – não em termos físicos, mas no número de praticantes – se saiba tão pouco das actividades dos músicos, compositores, intérpretes, DJ, etc. Creio que um melhor contacto entre “almas gémeas” seria um bom catalizador de eventos. A mencionada Electronic Music Foundation organizada por Joel Chadabe dispõe na internet de calendários, glossários, informações diversas e CD. O próprio festival Música Viva na edição deste ano promove um concurso de obras electroacústicas a nível nacional.
MIGUEL SÁ – Visto Portugal ser um país periférico, apenas com um súbito e não muito provável florescimento de novos projectos, o surgimento de uma publicação especializada de qualidade e um significativo incremento nos concertos/ciclos de música electrónica, que promova o encontro com e entre músicos internacionais, se pode alimentar uma cena electrónica consistente, que abra caminho a uma edição discográfica estimulante e regular.

O paradigma Aphex Twin

P. – Nesta transição de milénio, o termo “electrónica” impôs-se como “medium” universal. Qual o ponto da situação na relação entre uma música mais conceptual (com “background” na música contemporânea, música industrial, minimalista, ambient, kozmischrock, etc.) e a música de dança?
M.S. – A música de Richard D. James (Aphex Twin, Poligon Window, entre outros disfarces) é o paradigma da difícil definição de fronteiras na actual música electrónica e vital para a compreensão dos géneros musicais que circundam a música de dança urbana. Quem acompanha a sua obra tem assistido à quebra regular de regras formais. Trabalhando com gira-discos, mesas de mistura, computadores e “instrumentos” por ele criados através da modificação dos circuitos electrónicos das suas máquinas, e usando como matéria-prima fontes sonoras processadas de LP, CD, ficheiros de computador, fontes acústicas e eléctricas.
C.Z. – Não poucos praticantes da música de dança foram buscar, manipular, referir, elementos experimentados e divulgados nas áreas mais conceptuais, assim como também se assiste ao inverso: a entrada do DJ, do beat e de outras preponderâncias do dance nos conceptualismos mais alargados. Convém, no entanto, assinalar que este tipo de mestiçagens se verifica em realidades mais abertas e universalistas. Em Portugal, o que é pop continua orgulhosamente a sê-lo e o sério permanece de costas voltadas para os outros sons, cada um no seu minúsculo cubículo…
T.Z.F. – No limite, qualquer gravação, da captação à difusão, digam o que disserem os puristas da música acústica, está dependente de meios electrónicos. Existem, simplificando, duas atitudes: uma de engenharia, em que o sistema deve ser o m ais neutro possível e outra em que a cor do sistema é causadora de estímulo para a criação; no extremo, o sistema gera o próprio som.
Distinções entre géneros de músicas são cada vez mais difíceis de concretizar. Impulsionados pela sua própria actividade, os criadores de música de dança acabam por se ligar a uma corrente pluralista electroacústica. Certas peças de dança lembram-me formalmente algumas experiências da música concreta dos anos 60.

“À espera que o ‘load’ funcione”

P. – O computador e o “software” composicional são factores de normalização. Um músico como Paul Schütze recusa liminarmente a utilização de “software”, alegando que o resultado sonoro denuncia o programa utilizado.
C.Z. – Essa afirmação de Schütze é muito relativa. Talvez fazendo um “blindfold test” às diversas composições alegadamente assistidas por computador, chegássemos a conclusões interessantes… Quando o “software” é denunciado na composição, estaremos talvez a referir a sua utilização mais primária e “democrática”… São infelizmente raros aqueles que sabem ou se interessam por perverter/subverter as máquinas ou os programas! Em contrapartida, a tecnologia permitiu que o compositor se tornasse mais no “performer”/intérprete. Com alguns riscos… Se nos antigos concertos de electroacústica passávamos umas horas a olhar para uma série de colunas de som n um palco, agora encontramos alguns senhores sentados atrás de um computador, com um ar geral de erudito enfado, carregando em teclas que não vemos e à espera que o “load” funcione…
T.Z.F. – Como alguém com experiência em programação, compreendo o ponto de vista acima apresentado. É verdade que a implementação de uma ideia sobre a forma de programa reflecte escolhas e a habilidade de quem o faz. Um determinado programa ou processo tem sempre um “som” próprio. É de facto no campo de organização dos sons que a utilização de programas se pode tornar problemática. Mas tal só acontece se os aceitarmos como aquilo que não são – “soluções” universais para problemas de composição. Solução óbvia seria implementar-se programas escritos pelo próprio compositor.
P. – O “sampler” – muleta, fábrica de sons, arquivo… Veio democratizar a criação electrónica, vulgarizando-a ou, pelo contrário, desfiar a criatividade dos músicos?
C.Z. – Esta apregoada democratização veio colocar diferentes questões aos que querem fazer música. Todos sabemos que basta carregar num botão para fazer música… E vivam as benesses das facilidades consumistas! Continuo a tocar um instrumento tão antiquado como o violino e, apesar de fazer electrónica há mais de 20 anos, continuarei a ser cuidadoso (cínico?) em relação às “novas descobertas”, que são fáceis, baratas e dão milhões…
M.S. – O “sampler” permitiu um novo olhar sobre o passado, colocando todos os sons do mundo ao alcance de quem os manipula, deixando deste modo de ser determinante o modo de reproduzir o som. Hoje em dia, a música pode ser feita em casa, mas sem prescindir do conhecimento e da intuição.

A riqueza da “imprecisão”

P. – Digital ou analógico, eis a questão. O pós-rock recuperou os sintetizadores analógicos (Moog, ARP, Korg). E que dizer quando um antepassado dos próprios sintetizadores, como o theremin, ganha de novo protagonismo na produção electrónica mais recente?
M.S. – desde 1906, altura em que foi criado o primeiro instrumento electrónico, o Telharmonium, e feita a primeira emissão via rádio, foram surgindo os meios para a criação electrónica: Ondes Martenot (1928), gravação estéreo (1930), sintetizador RCA (1955), “sampler” analógico mellotron (1965), sintetizador Moog (1965), gravador de pistas (1966), sequenciador digital Roland MC-8 (1977), “sampling keyboard” Fairlight CMI (1979), “compact disc” (1980), MIDI (1983). O “software” composicional, assim como os exemplos anteriores, veio expandir a capacidade de criação de novos recursos tímbricos. O seu surgimento em nada impede uma saudável coabitação com a invenção de 1920 de Leon Theremin.
C.Z. – É perfeitamente possível obter as mais diversas sonoridades analógicas com a recente tecnologia digital. O que se passa é que – como de costume com a música de consumo – mais uma moda atravessa inúmeras discussões técnicas e temáticas. A tecno descobriu os velhos monstros analógicos assim como “descobriu” formas de fazer música já praticadas há vinte a tal anos. Nada mais lógico que utilizar os mesmos meios, as mesmas máquinas, até porque sempre dão uma certa “patine” e “look”… Interessante ver superestúdios “hi-tech”, com a mais sofisticada tecnologia digital, gastarem fortunas em periféricos digitais que irão dar uma “cor analógica” (inclusive ruído) à mistura final… O cúmulo dos “modismos” e outros “ismos”…
Pessoalmente continuo a manipular o meu velho ARP 2601, adquirido em 1978, e que tem agora um valor museológico acrescido. É uma dor de cabeça se comparado com a facilidade de tecnologias mais recentes, mas continua a ser um ruidoso monstro sagrado!
T.Z.F. – Creio que é mais nostalgia do que qualquer impossibilidade dos sistemas digitais actuais. No entanto, existem talvez outras razoes para o retorno da popularidade destes sistemas. Uma forma de onde triangular produzida por um gerador analógico é mais ou menos impura – com bastantes harmónicos adicionais – o que, combinado com os filtros, gerava os tão procurados sons. Conseguem-se representações mais controladas sob a forma digital, mas perde-se um pouco a riqueza da imprecisão. Mas claro que, com programação e sistemas digitais flexíveis, se conseguem também sons extremamente ricos e creio que quase todos os sintetizadores actuais são digitais de uma maneira ou outra. Quanto ao theremin, a sua expressividade como instrumento advém muito do seu interface, sendo necessário ter alguma prática, como, por exemplo, num violino, para poder retirar a sons e/ou gestos expressivos satisfatórios.
P. – Quais os discos de música electrónica que considera mais importantes ou que mais o influenciaram?
C.Z. – MEV (Musica Electronica Viva, com Richard Teitelbaum, Alvin Curran, Frederic Rzewsky), John Cage, John Chowning, Charles Dodge, Pierre Henry, Max Matthews, Ilhan Mimaroglu, David Tudor.
T.Z.F. – As primeiras composições de Karl Heinz Stockhausen, como “Gesang der Junglinge” e, de Bernard Parmegiani, “De Natura Sonorum”. Como influência recente, as composições da jovem Natasha Barrett.
M.S. – Kraftwerk, “Autobahn” (1974); Negativland, “Escape from Noise” (1988); Oval, “Diskont 94” (1995). Nos Cluster, Coil e Aphex Twin, o brilhantismo reside no conjunto da sua obra.



10 DISCOS FUNDAMENTAIS

NUNO CANAVARRO: Plux Quba-Música para 70 Serpentes (Ama Romanta/Moikai, 1988)
TÓ ZÉ FERREIRA: Música de Baixa Fidelidade (Ama Romanta, ed. em vinilo, 1988)
CARLOS MARIA TRINDADE & NUNO CANAVARRO: Mr. Wollogallu (União Lisboa, 1991)
TELECTU: Evil Metal (Área Total, 1992)
JOÃO PEDRO OLIVEIRA: Electronic and Computer Music (Numérica, 1993)
CARLOS ZÍNGARO: Musiques de Scène (Ananana, 1993)
NO NOISE REDUCTION: The Complete No Noise Reduction (Moneyland, 1995)
NUNO REBELO: M2 (Ananana, 1996)
VÍTOR JOAQUIM: Tales from Chãos (Ananana, 1997)
ZZZZZZZZZZZZZZZZZP!: Ficta 003 (Ananana, 1998)

Isabel Silvestre – Isabel Silvestre Lança Segundo Álbum A Solo – “‘Eu’, Portuguesa, Me Confesso” (entrevista)

Sons

10 de Março 2000


Isabel Silvestre lança segundo álbum a solo

“Eu”, portuguesa, me confesso


“Eu”, portuguesa, me confesso. Poderia ser o dístico afixado no novo álbum a solo de Isabel Silvestre. Depois da canção popular, em “A Portuguesa”, a cantora do Grupo de Cantares de Manhouce regressa com um álbum de originais. Música que os seus pais cantavam à lareira. Chamado “Eu”. Um eu de todos.



Produzido por João Gil e Mário Delgado, “Eu” reúne 12 temas tradicionais portugueses com a participação de Mário Delgado, João Nuno Represas e, num dos temas, Rão Kyao. Isabel Silvestre falou ao PÚBLICO sobre este seu novo trabalho onde o “eu”, afinal, se dissolve numa entidade colectiva.
PÚBLICO – Depois da canção popular, a tradição. Faz sentido. Foi uma decisão sua?
ISABEL SILVESTRE – Nasceu de conversas com o João e com o Mário. Ao fim e ao cabo foi uma escolha de toda a gente envolvida. Mas fui eu que trouxe os temas de Manhouce. Alguns dos temas já tinham sido cantados pelo Grupo de Cantares, mas as versões para este disco são diferentes.
P. – “Eu” é um título bastante personalizado, quase orgulhoso. O que quis dizer com ele?
R. – É um bocado complicado. Não sou bem eu, nós somos todos um produto de nós todos, da sociedade em que vivemos, daquilo que nos ensinaram, da casa onde nascemos, dos brinquedos que tivemos. Ninguém é “eu”. Este “Eu” é a minha terra, a minha música, as minhas raízes. No meio disto tudo também lá estou eu.
P. – “Eu” é um filme de todas essas memórias?
R. – Sim. De toda a música que canto, e sobretudo daquela que se cantava ainda antes de eu ter nascido, a música de Manhouce. Sem querer e sem saber estamos a cantar dentro do próprio ambiente em que nos foram ensinadas essas músicas. Estamos nas festas, nas desfolhadas, nas romarias, onde as ouvimos. Essas músicas são mais eu.
P. – Músicas que os seus pais cantavam em casa?
R. – Sim, à lareira, nas noites de Inverno. Tive a sorte de nascer e de fazer parte de uma família grande em que havia tias solteiras que nos criaram como filhos. E a mãe, claro, que gostava muito de cantar e cantava muito bem. O Grupo de Cantares praticamente é tudo família. Nesta música está a família, a casa, o afecto.
P. – Hoje, em Manhouce, ainda se cantam estas canções à lareira? Ou vê-se televisão?
R. – Sem dúvida nenhuma. A televisão e, ainda antes, a rádio e os discos distraem as pessoas. Antes o povo tinha necessidade de fazer a sua própria música. Como é que eles a faziam? Indo às romarias, inclusive recebendo influências da música de outras regiões. Em Manhouce, por exemplo, ia-se muitas vezes à romaria da Senhora da Saúde, estavam ao pé da gente da beira-mar. Traziam músicas de lá. Não quer dizer que as copiassem, ouviam-nas numa noite, não as captavam na sua totalidade nem na sua verdade, então davam-lhe a sua própria volta, vestiam-na com a roupagem de Manhouce. Lavavam-nas nas águas de Manhouce.

Do litoral para Manhouce

P. – Os mais novos de Manhouce ainda cantam música tradicional?
R. – Tenho sobrinhos-netos que me chamam mãe. Ensino esta rapaziada na escola a cantar a três vozes. Há gente no Grupo de Cantares que já é filha de gente que me passou pelas mãos, a quem pus o bichinho da música. E, além do Grupo de Cantares, há um grupo de danças com quarenta e tal elementos. Neste momento estamos a revitalizar a serra no aspecto turístico, fazem-se encontros com música e danças. A maneira de cantar e de dançar em Manhouce vai continuar viva nos próximos tempos.
P. – Por muito tempo?
R. – Sim, os pequeninos já estão a entrar dentro da nossa música. Felizmente que em Manhouce, apesar de já ter estradas, luz e telefone, isso tudo que eu não tinha, há um gosto pela própria terra e pelas coisas que a valorizam. Além das quarenta e tal pessoas que estão no grupo de danças há mais vinte e tal que estão no grupo de cantares. Numa aldeia pequena como Manhouce já são à volta de sessenta pessoas voltadas para a música. Forçosamente têm que incutir esse mesmo gosto nos filhos e nos netos.
P. – O Grupo de Cantares de Manhouce já rompeu as fronteiras da sua região. A Isabel Silvestre grava na capital com músicos urbanos. Continuam a encará-la da mesma forma, na aldeia? A popularidade alterou a sua maneira de viver?
R. – Sou a mesma pessoa. Falo com os outros da mesma maneira. Continua a fazer tudo da mesma maneira. Por isso as outras pessoas também me tratam da mesma maneira. Claro que sentem e gostam do que o grupo faz. Sobretudo quando vão à cidade e dizem que são de Manhouce e as pessoas sabem logo que são da terra do Grupo de Cantares. E perguntam se conhece a D. Isabel. Eu sinto orgulho naquilo que faço, mas também sinto que gostaria de fazer muito mais.
P. – Sente-se tão à vontade a cantar em estúdio, sobre música já gravada, como aconteceu em “Eu”, como com o Grupo de Cantares?
R. – Quando se fala de música tradicional, pensa-se sempre, ou há pessoas que pensam, numa música menor. Eu penso que a música tradicional, sendo cantada com arranjos de qualidade, fica com um enquadramento perfeito. Não quero dizer que me sinta tão à vontade como no Grupo de Cantares…
P. – Dos doze temas que fazem parte de “Eu”, sente particular afinidade por algum deles?
R. – Talvez “Senhora do Livramento”, por causa, na altura, da morte de Amália e por ser um tema que ela própria cantou. Conheci a Amália, marcou-me muito. Estive em casa dela, cantámos em casa dela, há fotos dela a cantar ao nosso lado, com o xaile e o lenço. Era uma pessoa extraordinária, de uma simplicidade e sinceridade… A gente estava ao pé daquela mulher e havia sempre coisas que vinham ter connosco.
P. – Disse há pouco que gostaria de fazer mais. Tem ideia de quê?
R. – Em conversa no estúdio, durante a gravação deste disco, pôs-se a hipótese de eu fazer para o ano um disco de temas tradicionais religiosos. Há coisas lindíssimas na minha região, e não só…
P. – É uma pessoa muito religiosa?
R. – Sou! Embora não seja – como é que hei-de dizer? – aquela pessoa certinha que vai à missa…
P. – As pessoas continuam à espera de um grande espectáculo seu aqui em Lisboa.
R. – Olhe, na altura de “A Portuguesa” esteve previsto um espectáculo no Centro Cultural de Belém, mas depois, não sei porquê, passou a Expo, ficou tudo muito complicado, as pessoas dispersaram-se… pode ser que aconteça agora.



Sérgio Godinho – Sérgio Godinho Observa As Canções Do Seu Novo Álbum À Lupa – “Através Da Lente” (entrevista)

Sons
20 Outubro 2000


Sérgio Godinho observa as canções do seu novo álbum à lupa

Através da lente


“Lupa” é Sérgio Godinho “vintage”. Excelentes canções vestidas de forma superlativa por Nuno Rafael, dos Despe & Siga, e Hélder Gonçalves, dos Clã. Depois de “Domingo no Mundo” o autor de “Pano Cru” regressa em força, numa demonstração de que o seu veio criativo está longe de se esgotar. Se ele descobriu ou não o elixir da eterna juventude, ´´e irrelevante. Os efeitos são visíveis nas novas histórias que conta. Observadas pelo próprio à lupa.



Bíblias de um deus ateu – “(É que) em matéria de amor/Estamos sempre adolescendo”

A ideia de utilizar discos antigos de vinilo riscados foi do Nuno Rafael. Há uma memória. Parece que as coisas vêm de outro passado. É uma canção forte que explana um bocado o que são os meus temas, sobretudo em relação à vida e ao amor. Fala de renovação. Achei piada explicar o significado das palavras “androceu” e “gineceu”. Nota-se na juventude um fenómeno de simplificação, sobretudo ao nível da leitura. A imagem, a televisão, tirou-lhe espaço. Por outro lado, fico surpreso com o grau de liberdade destas gerações mais novas. Liberdade criativa, de diversidade e de interesse por outras culturas, depois de se ter passado primeiro por uma espécie de “vale tudo”. Mas esta canção, embora fale dos festivais de Verão, não é só sobre a juventude. Seja qual for a idade que tenhamos, como eu digo na letra, em matéria de amor, estamos sempre adolescendo.

Benvindo Sr. Presidente – “Soubera eu que o senhor vinha/E com certeza não me tinha/Apanhado na cozinha”

Canção satírica. Uma crítica ao poder e à mediatização do poder. Sem os “media”, o poder e os políticos não são nada. E não são só as idas aos mercados do Paulo Portas [risos]. São todos. A canção fala, por um lado, do tipo que é obrigado – os portugueses são bem educados… – a receber bem o político, embora a mulher tenha ido embora e esteja desempregado, e, por outro lado, do papel que são obrigados a fazer os políticos, quase sempre artificial. Quem quiser que enfie a carapuça!
Em termos musicais, tem os sons do cortejo que se vai afastando, com o ladrar dos cães, uma espécie de remate cacofónico.

Dancemos no mundo – “Separam-nos crimes/Separam-nos cores/A noite é de horrores”

Mistura géneros, com um refrão um bocadinho “retro”, idílico, embora seja uma canção mais pesada do que parece. Fala das separações dos amantes. A primeira imagem veio de uma reportagem que li sobre um casal formado por um palestiniano e uma israelita. Também podia ser um branco e uma negra. O título esteve para ser “Fronteiras”. Uma utopia sobre o sonho de podermos estar juntos. Os corpos existem, simplesmente há a intolerância religiosa, os “fatwas”, os credos, as cores, os crimes que separam…

Maçã com bicho (acho eu da praxe) – “Mas há quem ache/Graça à praxe/É divertida (hi-hon)/Lição de vida (ão-ão)”

É uma crítica, e na primeira pessoa! Gosto dos estudantes, já fui várias vezes convidado para a queima-das-fitas, mas rituais celebratórios como as praxes, em que a humilhação funciona como processo iniciático, chateiam-me! É o riso considerado como valor absoluto, quando o valor absoluto não é o riso, mas o humor. Eu aqui até uso um bocado as mesmas armas, zurro e ladro…

Na prisão – “Porque há horas tão velozes/E semanas infinitas?”

Já cantei na penitenciária. Mas gostaria de poder um dia cantar esta canção numa prisão. É uma coisa que me toca muito, sei como são as prisões por dentro… É uma canção de alguém que se sente irmão dos que estão presos. Uma série de vinhetas sobre o que é estar preso – para além de tudo o que eu possa denunciar, sobre as condições horríveis das prisões portuguesas. Ainda por cima para pessoas que não deviam ir lá parar, presas por razões ridículas, como o consumo de drogas. A justiça portuguesa é dos setores em que estamos longe de viver uma situação satisfatória. É um monstro, uma hidra que não pára de crescer. Corta-se de um lado e cresce do outro. É assustador. Os encobrimentos, os favorecimentos, a lentidão… Para mudar é necessária a coragem que falta numa situação de corporativismo.

Estou com os azuis – “I’ve got the blues/Estou com os azuis/Salvé! Tê/Salvé! Rei dos Ruis”

Uma homenagem a uma parceria. Nem sabia que havia este tributo ao “Ar de Rock” quando fiz isto. É um “gag”. Uma canção despreocupada em forma de blues. Gosto de parcerias, de vozes que se confundem. Eu, além de já ter trabalhado com o Milton [Nascimento], por exemplo, faço parcerias comigo mesmo… No sentido em que procuro encontrar a minha outra voz…

Bom prazer – “Amanhã, bom prazer eu ponho/No que faça do que hoje sonho”

Uma canção que eu já andava a cantar ao vivo, embora com uma versão muito simples, à guitarra. Também já tinha sido gravada para a Filipa Pais. Esta nova versão foi trabalhada pelo Nuno Rafael e ganhou uma nova vida. Os ambientes mudaram…

Visita guiada – “Cada qual sabe de cor/(Ninguém tem nada com isso!)/Em que ponto de que dor/Se arrisca a cauda na estrada”

Canção sobre o amor, sobre as circunstâncias do amor. O amor e as suas “atrocidades”, “felicidades” e “sacaneidades”. Mostra as maneiras como as pessoas se amam…

É nosso, o S. João – “Mas se houver um dia/Em que a gente/Negue tudo intimamente/E se preste à mais perdida confusão”

Nem sequer sou do FC do Porto; sou do Sporting, embora tenha uma costela salgueirista. Não tenho uma imagem muito conotada com o Porto, apesar de ter escrito o “Porto aqui tão perto”. E peguei no “Carteiro”, do António Mafra, que era lá do Norte. A melodia é uma marcha franca que depois o Hélder transformou em algo mais. Já não vou ao S. João há anos, mas gosto da maneira de estar das pessoas do Porto. A canção celebra a comunhão entre elas, numa noite especial que não devia ser de exceção mas algo para viver sempre. Ainda o desejo de utopia.

A última sessão – “Vimos todos o filme de rajada/Sempre de olhos postos no desfecho/Do happy-end, eu nem sequer me queixo/Só que a vida é mais emaranhada”

Teve um primeiro arranjo, mas depois chegámos à conclusão de que estava demasiado espesso, que a canção perdia simplicidade. Tem uma frase que é um bocado o resumo de tudo, a “caixa negra dos amores” que esteve mesmo para ser o título da canção. São duas personagens que estão a ver um filme onde não vai haver desgraças e de repente a realidade começa a interferir. Não é um final pessimista. É apenas a vida que é mais emaranhada…