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Donovan – “Donovan O Homem Da Atlântida” (concerto | antevisão)

pop rock >> quarta-feira >> 26.05.1993


DONOVAN o homem da Atlântida



“Atlantis” moeu o juízo a muita gente, da mesma forma que contribuiu para a união de muitos casalinhos nas festas e convívios que ajudaram a ultrapassar os estertores finais dos anos 60. Uma balada meio declamada, meio sussurrada, que foi um dos maiores êxitos de Donovan Leitch, o cantor escocês que começou por ser uma imitação de Bob Dylan e acabou por se tornar no rosto angélico do “flower power” e do psicadelismo.
Era a época das altas ondas do ácido e Donovan embarcou na viagem até à descoberta das “Cosmic Wheels” que fazem girar o universo – um bom álbum precedido de outros, sobretudo o duplo “A Gift from a Flower toa a Garden”, que não ofenderam ninguém e conseguiram mesmo funcionar como massagem aos neurónios, excitados até ao massacre pelas investidas de Hendrix, Joplin, Morrison, Velvet Underground e outros adeptos da “bad trip” com fins criativos.
Canções como “Colours”, “Season of the witch”, “Sunshine superman”, “Mellow Yellow” (onde fazia a apologia das drogas leves, tais como a casca de banana frita), “Jennifer Juniper” e “Hurdy gurdy man”, pelo contrário, navegavam pelos oceanos sem “speed” do submarino amarelo, onde, aliás, Donovan embarcou, na companhia dos Beatles, até à Índia.
O melhor de Donovan – que poucos conhecem e ninguém refere na sua discografia oficial – encontra-se, porém, no duplo “HMS Donovan”, (apareceu incluído numa antologia em caixa de quatro álbuns, juntamente com “Cosmic Wheels” e um registo com a banda Open Road), uma fantasia centrada nas personagens de “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carroll.
Quando nada o faria prever, os anos 90 têm-se mostrado favoráveis ao regresso do trovador. Os Happy Mondays gravaram uma versão de “Hurdy Gurgy Man” e incluíram o tema “Donovan”, em sua homenagem, no álbum “Pills ‘n’ Thrills and Bellyaches”. Será que o mundo já está preparado para o ressurgimento do continente da Atlântida? Ou, pura e simplesmente, enlouqueceu?
DIA 16, TEATRO S. LUIZ, 22H00

Anne Clark – “Anne Clark E Os Anagramas”

pop rock >> quarta-feira >> 26.05.1993


ANNE CLARK e os anagramas



A palavra ocupa lugar central na produção artística de Anne Clark. No seu caso não faz sentido falar de cantora, no sentido tradicional do termo. Ela é antes uma declamadora, uma voz que manipula os sons e o significado das palavras. Poetisa da idade cibernética, talvez.
“The law is na Anagram of Wealth”, assim se chama o seu mais recente álbum gráfico, denota desde logo pelo título esse gosto pela manipulação semântica e fonética. A música funciona como suporte de um discurso desapaixonado, musicalmente apoiado nas sequências repetitivas dos sequenciadores. Tem sido assim até agora. Este novo trabalho, gravado ao vivo, desvia-seporém no sentido de um maior classicismo. Na primeira meia dúzia de temas, o violoncelo constitui o único apoio instrumental dos textos, o que lhe confere outra intensidade dramática e um maior humanismo.
Anne Clark começou a trabalhar em Londres, em 1980, pelos livros, fundando nesse ano, com Paul Weller (The Jam, Style Council), a editora Riot Stories, vocacionada para a divulgação dos novos poetas ingleses, ao mesmo tempo que lançava um fanzine de nova poesia. Seguiram-se a realização de um documentário, “Something else”, sobre o insucesso e dificuldades das editoras livreiras em Inglaterra, que levou à posterior publicação da antologia “Hard Lines”.
Realiza em Croydon, no Warehouse Theatre, espectáculos de música e teatro “new wave”. Em 1982, escreve para o Channel 4 o filme “Isolation – a Sketch for Someone”. O primeiro álbum, “The Sitting Room”, sai nesse mesmo ano. “Changing Places”, o álbum seguinte, inclui o “hit” de culto “Sleeper in Metropolis”. Colabora com Vini Reily, dos Durtti Column. “Joined Up Writing” conta com a colaboração de Virginia Astley. John Foxx (fundador dos Ultravox) participa no álbum número quatro, “Pressure Points”. “Hopeless Cases”, “R.S.V.P.” (ao vivo) e “Unstill Life” procedem o novo álbum “The law is na Anagram of Wealth”, com Martyn Bates e Peter Becker, dois ex-Eyless in Gaza, entre os convidados.
A banda que acompanha Anne Clark a Lisboa (e Porto, no dia seguinte) é formada por Bates, guitarra, Michelle Chowrimmootoo, percussão, Ida Baalsrud, viola de arco, saxofone, Andy Bell, teclados, Gordon Reany, guitarra, e Paul Downing, violoncelo. No Teatro de São Luiz será montada uma banca Greenpeace, organização de que a artista faz parte.
DIA 9, TEATRO S. LUIZ, 22H00

June Tabor – “June Tabor, Em Lisboa, Braga E Porto ‘Basso Profondo'”

Cultura >> terça-feira >> 02.03.2019


June Tabor, Em Lisboa, Braga E Porto
“Basso Profondo”


Na sua terceira apresentação em Portugal, as circunstâncias estiveram por fim à altura da cantora. June Tabor, mais do que desenrolar um reportório, criou um ambiente. A sala do teatro S. Luiz encheu-se de silêncio para escutar a sua voz grave cantar canções de amor e desencanto.



Sexta-feira à noite, no velho recinto do Chiado, em Lisboa, aconteceu finalmente a consagração de uma grande cantora, após as más condições com que foi recebida nas duas anteriores visitas ao nosso país, no mesmo ano, 1991, no Folk Tejo e na Festa do “Avante!”. O som esteve perfeito e a assistência, que encheu pouco mais de metade da sala, soube sintonizar na frequência adequada. A voz e a música de June Tabor fizeram o resto. Decerto, também ontem em Braga. O Porto recebe a cantora esta noite, no Rivoli.
Música que exige silêncio e concentração absoluta, não admitindo transgressões nem falhas de atenção. Semelhante à superfície de um lago, pode ser espelho e pode ser lente. Mas é necessário que as águas estejam calmas e planas se quisermos ver, além da imagem reflectida, o fundo.
A voz falou devagar, preocupada em tornar compreensível cada palavra, cada história encerrada no coração das canções. Uma voz grave, sem mácula nem rugosidades que, pela vibração, irradia directamente do centro, com a profundidade de um oráculo. June Tabor foi sacerdotisa de um magistério iniciado há longos anos no templo das músicas tradicionais e finalmente depurado em escolas e linguagens contemporâneas.
Oficiou logo de início com a tradição, em “Month of January”, que deu o mote a todo o concerto: solenidade, contenção, centrados numa figura franzina, vestida de negro, de mãos caídas ao longo do corpo em pose hierática. Esfinge. June Tabor lembra essa figura ocultadora e reveladora de segredos. Por detrás da imobilidade, e através dela, arde uma chama, invisível aos olhos de quem não souber romper o véu das aparências.
June Tabor não cantou “All tomorrow’s parties”, o clássico de Lou Reed e dos Velvet Underground que a voz de Nico imortalizou – esse lado de tragédia que também habita em si, mas que na sua voz é redimido. June Tabor dobrou o Cabo das Tormentas e optou pela serenidade da maioria dos temas que integram o seu disco mais recente, “Angel Tiger”: “Hard Love”, “All our trades are gone”, “Sudden Waves”, “The doctor calls” (de Ian Belfer, dos Oyster Band, cuja ambiência sinistra comparou ao “film noir”), “All this useless beauty” (Elvis Costello) e “10 000 miles”.
Cada tema foi antecedido de uma curta explicação, dita em voz baixa de maneira a reforçar o tom de intimismo que caracterizou o concerto. “Esta é uma história de amor que acaba mal”. O estilo de histórias que disse gostar mais de cantar mas que ela própria, com quase imperceptível ironia, desmistificou comentando várias vezes no final de cada canção: “Afinal esta tem um final feliz! Estranho, não me estou a reconhecer!…”. “Game keepers”, em interpretação “a capella”, dedicou-a ao “homem” que ama, o seu cão Flynn (em homenagem a Errol Flynn…), inveterado bebedor de cerveja Guiness. O standard “I’ve got you under my skin2, de Cole Porter, dedicou-o igualmente ao amigo canino. Distanciação. Um sorriso de mil rostos, a sugerir enigmas.
Momentos altíssimos, viveram-se sobretudo nos duetos mantidos com o piano de Huw Warren, de longe o melhor instrumentista da noite: “You don’t know” e “Sudden waves”. A Mark Emerson, violino e viola de arco, e Marl Lockheart, saxofones, foi deixado espaço para brilharem no compasso emaranhado de um tradicional da Bulgária, “Rucenista”, (deu para perceber que não são búlgaros…) e em duas polkas tradicionais igualmente mal aproveitadas. O segundo solou, esforçado, no sax tenor, em “I’ve got you under my skin”, tema que serviu ao mesmo tempo para mostrar não ser este, em definitivo, o campo onde a voz da cantora se sente mais à vontade.
“Dogs of Money”, de Richard Thompson e os tradicionais “Mount and go” e “10 000 miles”, subiram alto numa actuação que nunca chegou verdadeiramente a tocar a terra. “Retreat”, outra composição de Richard Thompson, trouxe para o S. Luiz o espectro da diva desaparecida, Sandy Denny. Um único “encore”, “Light Dragon”, encerrou o ciclo de luz. Com a chave do silêncio. No intervalo, alguém da assistência comentara: “Esta mulher tem qualquer coisa de comovente!”