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Vários – “Gala Dos Artistas Contra O Mal Do Século, No Coliseu De Lisboa – A Arte E A Sida” (gala / sida / coliseu / concerto)

Secção Cultura Domingo, 03.02.1991


Gala dos Artistas contra o mal do século, no Coliseu de Lisboa
A Arte E A Sida


Realizada sexta à noite no Coliseu dos Recreios, a Gala dos Artistas contra a Sida alcançou plenamente o seu objectivo – ajudar a combater uma das pragas do século, a sida.
Organização perfeita, boa música e um público participativo contribuíram para que assim fosse. Sabe bem, quando a Arte se confunde com a Vida.



Casa cheia. Público diversificado. O programa apelava ao gosto de diversas camadas culturais e etárias. Sem distinções. Havia uma razão comum que a todos ligava – a vontade de lutar contra um flagelo que a todos diz respeito. Música e palavras transmitiram a mensagem que importava: tentar a todo o custo vencer o mal, o medo e a incompreensão. Não se tratou propriamente de uma festa – nada havia para festejar -, mas tudo foi feito com alegria.
Meia hora depois do programado (única falha sensível de uma organização impecável), actuou a Orquestra de Jazz do Hot Clube de Portugal, com um reportório “mainstream” adequado às circunstâncias. Actuação calorosa que recolheu os primeiros aplausos da noite.
Quando Herman José subiu ao palco, como apresentador do espectáculo, foi o delírio. Esperava-se a habitual torrente de piadas, o humor delirante, a irreverência. Herman compreendeu que a ocasião não se prestava a excessos, optando por um registo mais discreto. Brincou quando devia brincar. Foi sério quando a gravidade do tema o justificava. Só não resistiu quando, a propósito de alguns estampidos na amplificação sonora, afirmou tratar-se de uma pequena homenagem aos mísseis “Patriot”. De resto, ao longo das quase três horas que durou a Gala, conseguiu evitar momentos mortos.
Dona Amália Rodrigues desta vez não cantou. “Sou uma pessoa muito atrapalhada” – começou por dizer. Não é nada, D. Amália. Disse o que sentia, com o coração, como costuma fazer sempre. Por isso a amamos. Por isso não tem nunca que se sentir atrapalhada. Apresentou a sua amiga Line Renaud, presidente da “Associação dos Artistas Franceses contra a SIDA” que, na ocasião, dissertou sobre o combate à doença. Seguiu-se um caudal de boa música. Primeiro, o dueto pianístico de Pedro Burmester e Mário Laginha, fluido como um rio, aliando a intensidade emocional do Romantismo a estruturas rítmicas próximas do Minimalismo.

O Corpo E A Voz

Maria de Medeiros surgiu para ler, tímida e belíssima, um texto de José Saramago. Menos tímido, bastante menos, era o mini-vestido negro que envergava. Depois, o terramoto. A Arte Absoluta. Na voz, na Alma, no corpo, em tudo, de Maria João. A cantora portuguesa, que vive no estrangeiro (somos um país mimoso e pequenino que não consegue suportar aquilo que é grande), encheu o recinto com a sua voz e uma presença avassaladora. Quando canta Maria João vive, no sentido literal do verbo, a liberdade total. Acompanhada por Bernardo Sassetti ao piano e Carlos Bica no contrabaixo, cantou um tema tradicional português. Depois, tudo – o gemido, o ritmo da respiração, os graves másculos subindo em vertigem até à ternura de uma mulher no Céu. Os jogos, a intuição fulgurante, as piscadelas de olho a Meredith Monk e Billie Holiday, os Blues, o Amor, o Corpo. Nas costas e ombros desnudos, muito brancos, luminosos, contrastando com o negrume das vestes. Erotismo em que a carne e a alma se confundem e são a própria essência da mulher. Na fila de trás, uma senhora queixava-se porque não conseguia perceber bem as palavras.
Lena d’Água, logo a seguir no alinhamento do espectáculo, tinha de ressentir-se da comparação. Mesmo assim, foi de certo modo surpreendente a forma como a intérprete soube puxar as pessoas das alturas superiores onde ainda flutuavam, atraindo-as para os terrenos onde se sente mais à vontade. Cantou, acompanhada ao piano por Pedro Osório, duas canções, ambas tristes: “Não é fácil o amor”, de Janita Salomé e “Chanson Triste” composta por Henry / Marie LeJeune, no século passado, Masculino / Feminino a jogar às escondidas.
Olga Pratts trouxe para o Coliseu o dramatismo da música de Astor Piazolla, sensual e dolorida, obrigando a repensar o termo “tango”, fechando com chave de ouro a primeira parte da Gala.

Perdidamente

O maestro José Rodrigues dirigiu de forma exuberante o coro açoriano Eduardo Machado de Oliveira que acompanhou os solistas Teresa Salgueiro (MadreDeus), Pedro Mosquitela e Theresa Maiuko (única dama de branco), esta cantando a solo logo de seguida. Depois contaram-se armas, que é como quem diz, preservativos, com Herman José contando a história daquele senhor já de idade mas prevenido que comprou a colecção inteira, para depois se referir com ternura “a todas as pessoas que amamos e, porque não dizê-lo, que comemos”.
Paulo de Carvalho cantou sozinho uma canção, dando lugar à voz e guitarra de Sérgio Godinho, outro dos momentos altos do espectáculo. “Alice no País dos Matraquilhos”, “Lisboa que Amanhece”, histórias nostálgicas das misérias quotidianas do nosso desencanto. Disse que “A Vida é a Grande Desforra do Corpo” vingando-se “de tudo aquilo que o quer matar”.
Palavras em que todos acreditaram antes de o Coliseu explodir com o rock dos GNR e dos Trovante. Os primeiros provocatórios como sempre, com “Dunas”, “Morte ao Sol” e “Vídeo Maria”, os segundos interpretando “Que Assim Seja”, “Peter’s” e “125 Azul”. Finalmente a despedida apoteótica, com Lena d’Água, Teresa Maiuko, Paulo de Carvalho e Sérgio Godinho juntando-se a Luís Represas e restantes Trovante para cantar “Perdidamente” as palavras de Forbela Espanca. Enquanto o público ia abandonando a sala, alguns adolescentes pulavam ainda de contentamento. Para eles não há vírus capaz de vencer a alegria.

Mário Laginha E Bernardo Sassetti – “Dois Pianos A Contar De Cima” + “Mário Laginha e Bernardo Sassetti” (entrevista + crítica de discos + artigo de opinião)

(público >> cultura >> portugueses >> entrevistas + crítica de discos)
sábado, 8 Novembro 2003
capa



Mário Laginha e Bernardo Sassetti é a estreia discográfica nascida da colaboração e das afinidades entre estes dois pianistas. Um encontro de sensibilidades complementares onde a improvisação tem um papel determinante. O jazz deles. Tocado com a naturalidade, mas também com o espírito de viajante comum a ambos. A apresentação oficial está marcada para o dia 13 deste mês na nova Fnac, em Gaia


Dois pianos a contar de cima



Freddy Kruger contra Jason Voorhees. Mário Laginha “contra” Bernardo Sassetti. Dois monstrous sagrados do jazz feito em Portugal combatem lado a lado em “Mário Laginha e Bernardo Sassetti”, disco de piano, dois pianos, apostados em fazer sobressair de duas sensibilidades musicais necessariamente distintas uma terceira pessoa nascida de uma cumplicidade que tem vindo a fortalecer-se ao longo de várias etapas em espetáculos ao vivo, como o de Junho do ano passado no Centro Cultural de Belém, em Lisboa. Sassetti e Laginha chegaram ao jazz por vias diferentes e nem sempre permanecem por lá. Mas o gusto pela improvisação e pelo diálogo é notório. Laginha, cuja agenda com a cantora Maria João, seja na gravação de álbuns como “Danças”, “Chorinho Feliz”, “Lobos, Raposas e Coiotes”, “Mumadji”, “Cor” e “Undercovers”, seja em concertos, tem deixado pouco espaço para outras aventuras, já dialogara com outro pianista, Pedro Burmester, em “Duetos” (1994). Sassetti, por seu lado, gravou “Mundos” e um “Nocturno” que é um dos grandes discos de jazz nacional lançados o ano passado. Recentemente lavrou a sua assinatura nos arranjos orquestrais para o concerto de celebração dos 40 anos de carreira de Carlos do Carmo. Viajantes por natureza, dos lugares e dos sons, combinam semelhanças e diferenças. Laginha é o extrovertido capaz de juntar no espírito Bach, Keith Jarrett e os ritmos africanos. Sassetti, o introvertido dobrado sobre os silêncios, enredado nas sombras e nas luzes que Bill Evans legou ao jazz, mas também o impressionista dos pontos e manchas que adquirem sentido à distância mais íntima. No disco, porém, trocam por vezes de papel e nem sempre o que parece é. Da alma até à ponta dos dedos e destes até ao marfim das teclas vai um instante de eternidade. Os próprios explicam como se percorrem os caminhos.

“Mário Laginha e Bernardo Sassetti” é o prolongamento lógico dos vossos espetáculos ao vivo?
Bernardo Sassetti — Tem menos a ver com os concertos do que com o repertório, apesar de haver temas antigos que aparecem em novas versões, como “A menina e o piano” ou “Señor Cascara”.
Mário Laginha — No ano passado começámos a tocar juntos mais regularmente e a sentir necessidade de arranjar mais repertório. O que tínhamos dava um bocado à conta… para um concerto relativamente curto.
Grande parte dos temas são improvisações, ou “Imprevistos”, como lhes chamaram…
M. L. — Foram improvisados no estúdio. E temas como “Diabolique”, “Fisicamente” e “A segunda gaveta a contar de cima” são temas novos, mais longos.
Tocam sempre os dois em simultâneo, ou também há solos?
B. S. — Há momentos a solo…
M. L. — …Tudo sem truques nenhuns.
Aos primeiros “takes” ou foram necessárias repetições?
B. S. — Foi uma sessão de estúdio extraordinária. Em geral saiu tudo ao primeiro “take”, fi cou mais fresco. Às vezes nota-se, quando se repete de mais…
Algum motivo especial para o título se ficar pelos vossos nomes?
B. S. — Foi propositado. Mas pensámos muito nisso. Como disco de apresentação resolvemos não recorrer a um título.
M. L. — Embora a ideia não nos fosse desagradável. Mas não queríamos pegar num dos temas e usá-lo como título. Quando isto acontece, as pessoas pensam logo: “Olha este é ‘O tema’!” Para nós conta apenas o todo.
Este é um disco de jazz. Mas a conceção que cada um de vocês tem do jazz é diferente. Tiveram que proceder a adaptações?
B. S. — Eu comecei na música clássica, mas a partir do momento em que me apaixonei pelo jazz foi de rompante. Deixei totalmente de parte a clássica. Mas essa é uma questão pertinente…
M. L. — Não houve esforço nenhum. Se tivesse havido, perdia um bocado a graça. Nenhum de nós está a tentar aproximar-se linguisticamente do outro. Agora… ambos temos intuição. Quando se está a tocar, é preciso saber ouvir o outro.
B. S. — Ouvir o outro com ouvidos diferentes. Não digo que noutras formações não tenhamos a mesma atenção, mas aqui estamos a falar de dois pianos.
M. L. — O que faz com que não haja nenhum tema para encher. Há ótimos discos, por músicos fabulosos, que improvisam muito bem, mas…
O que é que vos separa e vos aproxima musicalmente?
M. L. — Ambos gostamos imenso de improvisar, ambos gostamos imenso de escrever, ambos gostamos imenso de arranjar.
B. S. — O Mário tem uma característica extraordinária que encontro em muito poucos pianistas — uma capacidade polifónica e de criar melodias e contrapontos com as duas mãos em tempo real. Aprendo sempre com ele. Eu tenho uma conceção diferente.
M. L. — Ele, às vezes, é desconcertante, porque tem um lado que identifico como jazz, de alguém que conhece ao mais alto nível a história do jazz, mas que depois abriu um caminho que falta a muitos pianistas, que é o lirismo, a par da capacidade melódica.
Um é extrovertido e o outro introspetivo?
B. S. — É muito possível. Embora uma das minhas composições neste disco, o “Señor Cáscaro” seja a atirar para a frente. Mas é apenas um caso. O Mário é daqueles pianistas que toca com garra. Eu tenho talvez muita consciência, um cuidado extremo com o toque, o “touch”. Há algumas gravações minhas, antigas, em que noto alguma estridência e isso teve muita importância, fez-me mudar, neste momento estou mais lírico, presto atenção ao som de cada coisa que faço.
M. L. — Olho para a lista de temas deste álbum e noto uma coisa engraçada. Há um lado de mim menos representado. Sempre fiz temas, não digo que para fazer chorar as pedras da calçada, mas muito líricos, mas aqui, realmente, não.
Para o Mário, este álbum representou também a oportunidade de mostrar outro lado de uma música que nos últimos tempos tem andado quase sempre ao lado da voz de Maria João?
M. L. — De facto, durante uns anos, estive de tal forma enredado nesse trabalho que, embora não tenha morto outros projetos, não lhes dava continuidade. De há uns tempos para cá decidi que isso tinha que acabar. Há outras coisas que não quero deixar de fazer.
No caso do Bernardo, aconteceu o oposto. O trabalho que fez recentemente para o Carlos do Carmo é uma exceção.
B. S. — Sim. Foi um desafio que aceitei e que me deu imenso gozo — sobretudo por ele me ter dado carta branca, de me dizer: “Eh pá, faz o que quiseres!” Claro que não ia começar a fazer música contemporânea, estamos a falar de fado e de um espetáculo no Coliseu, mas, harmonicamente, muitas coisas foram mudadas. Depois esse outro gozo de poder fazer “sacanices”, no bom sentido, pôr umas coisas marotas lá pelo meio… O Hermeto Pascoal disse uma vez uma coisa muito engraçada, num concerto em Guimarães. Começou a tocar o “Coimbra” e, às tantas, vira-se para o público e diz: “Esta melodia é tão interessante, tão bonita, mas vocês aqui em Portugal… Harmonicamente isto é muito fraquinho, vocês deviam puxar a música para a frente.” E começa a fazer umas harmonias extraordinárias.
Da junção das vossas músicas nasce uma Terceira entidade?
M. L. — Sim. Existem poucos discos apenas com dois pianos, só me consigo lembrar do Herbie Hancock com o Chick Corea. O que fizemos tem uma identidade própria, é o primeiro bom sinal de que uma música pode ter, mesmo sem ser feita para parecer novidade. A originalidade é uma coisa muito relativa e subjetiva. As pessoas têm as suas influências, a tonalidade, a partir do “free”, também já está mais do que explorada. Nós tocámos e gravámos despreocupadamente, mas essa identidade existe.
Essa despreocupação implicou ausência de tensão? Um menor esforço? Para dois pianistas que encaixam tão naturalmente, a facilidade pode não ser boa conselheira.
M. L. — Essa naturalidade tem mais a ver com a forma como encarámos o projeto. Há temas que deram um trabalho imenso a montar, difíceis tecnicamente, como “Fuga para dois pianos”, “Diabolique”, “A segunda gaveta a contar de cima” e “Señor Cáscara”.
B. S. — Quando estamos a ler uma partitura, o problema pode estar em que, ao princípio, cada um de nós se preocupa mais com a sua própria parte e deixa um bocadinho de ouvir a outra. Estamos preocupados em tocar aquilo bem, metidos um bocadinho para dentro. A partir do momento, porém, em que começamos a perceber o que são as duas vozes, quais as dinâmicas, o que cada um tem ou não que fazer, então aí é que começa o trabalho a sério. De resto, é trabalho de casa, a dois, um trabalho que demora muito tempo. “O sonho dos outros”, por exemplo, é bastante mais simples de montar. Ou a “Despedida”. Mas na “Segunda gaveta…” tivemos que perceber muito bem o que se estava ali a passar!
M. L. — Até ficar como está no disco parece não ter havido conflito. Ambos detestamos sentir que o ritmo se perdeu, um ritmo que, por exemplo, em África, acontece naturalmente, mas que no Ocidente, uma pessoa está a tocar, e até está a soar bem e, de repente, o “groove” ardeu. Odeio isso. Quando o “groove”, o “swing”, se vai embora. Há neste disco imensos temas que swingam, mas até swingarem, até se chegar lá, não foi uma coisa imediata, encaixar o sentido e as acentuações e depois fazer isso já intuitivamente.
No álbum alternam composições mais longas com miniaturas de pouco mais de um minuto. Interlúdios?
B. S. — O único efetivamente pensado como tal foi “Despedida”. No meio de tanto improviso, decidimos fazer uma versão só com o tema.
M. L. — Normalmente, durante as gravações, chegávamos ao fim do dia e fazíamos um improviso. Acabou por ser esse o espírito.
“Mário Laginha e Bernardo Sassetti” não é um disco difícil de se ouvir. Nunca pensaram em arriscar outro tipo de música, menos imediatamente apelativa ou então qualquer tipo de “tara” musical, politicamente incorreta, do tipo “easy listening”?
B. S. — Neste primeiro disco quisemos pegar em tudo o que tínhamos feito até agora. Não há grande diferença, em termos de espontaneidade, não há grandes diferenças em relação ao concerto.
M. L. — Tenho horror ao “easy listening”, embora até goste de alguma “má música” (risos) e haja bons tipos a fazer isso, mas mais facilmente aprecio uma canção pop. O “easy listening” é uma música profundamente estúpida, em que se utilizam conhecimentos razoáveis, de tipos que até sabem tocar bem, para fazer algo completamente vazio. Irrita-me. Desejo inconfessável seria, como já pensei fazer, um disco comigo a tocar guitarra e a cantar, com a minha voz absolutamente horrível (risos). Não tenho voz nenhuma, mas afino! Outra coisa, não tão inconfessável, passa pela gravação de uma música mais difícil.
B. S. — Eu tenho algumas coisas na manga, sobretudo bandas sonoras. É raro poder-se editar uma banda sonora em Portugal. É difícil as Pessoas imaginarem quão complicado isso é, em termos de produção, de entrega, de financiamento. Um disco que gostaria de fazer, embora fosse necessária muita coragem para o editar, era um de coisas trabalhadas dentro do piano, na caixa harmónica, nas cordas, na harpa. E sobretudo um disco com muito, muito silêncio. Uma coisa é certa, na rádio não passaria (risos).
M. L. — Entre o primeiro e o segundo acorde punham publicidade (risos).
Tanto “Nocturno” como “Undercovers”, os vossos discos anteriores, venderam bem. Existe finalmente um mercado para discos de jazz feitos em Portugal? Ou são exceções?
M. L. — Acho que haverá sempre mercado para os discos de jazz, mesmo numa sociedade com tendência para a estupidificação, como a nossa. Há sempre camadas que reagem. Isso sempre aconteceu e sempre acontecerá. De uma maneira geral, o problema está em que as pessoas não são estimuladas a ouvir coisas que desconhecem. Mas, quando se aposta mais, às vezes há surpresas e descobre-se que afinal até há pessoas que compram. É claro que não compram às centenas de milhares, mas compram uns milhares. Apesar de sermos um país pequeno, quanto mais discos se fizerem, melhor.
Mas então, por que razão gravaram este álbum em edição de autor e não através de uma editora? De onde veio o dinheiro para a gravação?
M. L. — Não é um disco de autor por não ter havido editoras interessadas. Foi uma opção. Estou mais ligado à Universal e o Bernardo à Trem Azul…
B. S. — Mas é importante não termos, como não temos, exclusividade.
M. L. — No meu caso, a ligação tem mais a ver com os discos com a Maria João. Se o Bernardo viesse para a Universal, a Trem Azul era capaz de ficar um bocado melindrada. O oposto teria o mesmo efeito na Universal. Acabámos por pensar que a melhor maneira de ninguém ficar ofendido seria fazer um disco de autor. E até tivemos sorte, porque a Fnac quis exclusividade. Mas nem se trata de um disco caro…
O ambiente de estúdio foi determinante nas gravações?
B. S. — Gravámos no estúdio do Mário Barreiros, em Canelas, no Porto, um estúdio cinco estrelas, mesmo a nível mundial.
M. L. — Tudo em madeira, grande, com respiração…
B. S. — O Mário já tinha gravado lá, o “Undercovers”, cujo som considero extraordinário, e o Mário Barreiros é um técnico sublime, além de um grande músico. Tem uma inteligência e uma rapidez de fazer as coisas estonteantes.
Têm expetativas elevadas em relação à aceitação deste álbum?
M. L. — Gostaria que as pessoas ouvissem e gostassem, que acontecesse cumplicidade, comunhão. Adoro tocar ao vivo, não há nada melhor, sentir, quando entro no palco, que as pessoas já ouviram o disco e querem mesmo estar ali no concerto.
“Mário Laginha e Bernardo Sassetti” é um disco de jazz “mainstream”? O termo incomoda-os?
B. S. — Não acho que seja… M. L. — O “mainstream” nãotem a ver com ser bastante tonal ou não, mas com o tipo de linguagem. E, nesse aspecto, não é. Mas é uma música comunicativa, que não se fecha sobre si mesma.
Como é que se evolui como músico de jazz em Portugal?
B. S. — É muito importante os músicos saírem de cá. Ir apanhar ar lá fora. Vivi muitos anos em Londres, também estive algum tempo em Nova Iorque, e é realmente extraordinário. Realizam-se sessões descontraídas, à tarde, para as pessoas tocarem, só pelo gozo. Aqui é mais complicado… Chega-se a um ponto em que deixa de haver entusiasmo em relação ao meio. Os músicos novos que querem mesmo fazer esta música têm que sair daqui. Isto é muito pequeno. Uma província. Lisboa é uma cidade grande, mas, se formos a ver, tem características que me fazem pensar em fachada. Há muita fachada e pouco conteúdo. Isto empobrece o espírito. Existe a mania de dizer “nós temos”, “nós fizemos” o maior edifício, a maior sede de não sei quê, o maior oceanário, “porque nós os portugueses também podemos e conseguimos!”… É extremamente redutor.
M. L. — São os mesmos que depois se vergam ao que vem de fora!
Ambos gostam de viajar. Que viagens, musicais e geográficas, mais os marcaram?
B. S. — A música que me fez vibrar mais até hoje foi a do Brasil. Em Niterói, tanto os sons de batucada no meio da rua, durante uma manifestação popular, como, às duas da manhã, um grupo de velhinhos a tocarem forró, vestidos como se tivessem acabado de sair da cama. Quatro horas a tocar, das 2h às 6h. Sem parar! Há outra música que me fascina em particular: o flamenco. Tenho estado a tocar e a aprender com o grupo Cruce de Caminos, como o Perico Sambeat e o Gerardo Nunez. Atualmente tenho andado a ouvir música fúnebre para cordas, de Lutoslawski, pelo Kronos Quartet.
M. L. — Também o Brasil. Depois, África, pela qual sinto um fascínio enorme. Às vezes procuro imitar ritmos que não são feitos em piano, mas em guitarra, numa kora ou num balafon. Isso dá-me ideias — por exemplo, há um tema no “Cor”, “Rafael ou a cor de Moçambique”, cujo balanço foi conseguido a partir da imitação de uns balafons, até transformer o ritmo numa coisa pianística.
Existe um jazz português, da mesma maneira que existe um jazz inglês, um jazz francês ou um jazz italiano?
B. S. — Sim! Uma sonoridade específica. No Mário, por exemplo. Oiça-se várias das “Danças”. Também em temas do João Paulo, do Carlos Bica e do Carlos Barretto.
M. L. — Mas não são elementos óbvios. O José Duarte dava como exemplo – do qual discordo completamente – o Chano Dominguez, ao pegar num “standard” qualquer e transformá-lo numa rumba. Eu isso acho que não. Agora misturar flamenco com outras coisas, como fazem os Cruce de Caminos, acho bem. Pegar em temas populares portugueses e adaptá-los… Se isso é jazz português, prefiro estar a milhas!


Obcecados pelo belo

MÁRIO LAGINHA E BERNARDO SASSETTI
Mário Laginha e Bernardo Sassetti

Ed. de autor, distri. Fnac
8 | 10



A música nasce em crescendo, escorre como água, em acordes que aos poucos se vão organizando, como a lição de piano da criança deslumbrada que descobre a origem dos sons, em “A menina e o piano”, ponto de partida do primeiro álbum de dois pianistas que procuram na música do outro o complement e uma resposta para as suas interrogações musicais. Escutam-se evidências. Nesta nova versão do tema compost originalmente para “Chorinho Feliz”, à semelhança dos outros compostos por Laginha (“Fuga para dois pianos” e “Despedida”, ambos do álbum “Hoje”, de 1994, e o inédito “Fisicamente”), o ritmo impõe-se como fio condutor, o “touch” é marcado, o “swing” quase “ragtime” na “Fuga”, gismontiano na “Despedida”, e “Fisicamente” um poderoso diálogo de “riffs”, sugestões de chorinho e harmonias em cascata. Já “A segunda gaveta a contar de cima”, escrita em primeiro lugar para a Orquestra de Jazz de Matosinhos, jarrettiana na essência, será o mais natural ponto de confluência entre os dois pianistas portugueses. Jogo quase telepático, de notas vivas e vívidas, “clusters” e expressividade a roçar a euforia. A métrica pode soar insistente, quase repetitiva, mas é também daí que as surpresas e as soluções brotam, a justifi car a explicação dada pelos seus intérpretes: “Temos ambos um fascínio por um lado obsessivo, em usar uma repetição lógica e explorá-la até à exaustão.” À pergunta “Onde é que isto nos vai levar”, respondem com a disciplina antidogmática dos espíritos nómadas: “Entramos numa tonalidade e às tantas começa a fundir-se numa linguagem mais impressionista e menos tonal.” Em Sassetti, pelo contrário, a intrincada rede de luzes, por vezes ofuscantes, do novo arranjo para “Señor Cáscara” (do álbum “Mundos”) é a excepção às filigranas impressionistas de “O sonho dos outros” (de “Nocturnos”), janela entreaberta para a matemática secreta de Satie, “Diabolique” (surpreendente pela violência dos contrastes) e um “Renascer” com a mesma tranquilidade de Brian Eno. A escrita de Billy Strayhorn em “take the A train” introduz o universo ellingtoniano na teia harmónica da dupla e acaba por ser nos três “Imprevistos” que os dois completam a fusão das respetivas linguagens pianísticas, pela improvisação. É também aqui que, ao esbaterem-se as diferenças, a música deixa diluir alguma da sua força “narrativa” para se revelar como geometria de um jardim zen, aspeto em que o “Imprevisto nº2”, minimal como um mantra de Terry Riley, se mostra exemplar.



Maria João e Mário Laginha lançam álbum com orquestra – “Turbo junkies” – (Entrevista)

Sons

8 de Outubro 1999

Antes da edição de “Cor”, Maria João e Mário Laginha já tinham pronto outro álbum, gravado com a Orquestra Filarmónica da Rádio de Hanôver, “Lobos, Raposas e Coiotes”, agora editado. Ao poder que o pianista sentiu a manipular grandes massas sonoras correspondeu o desafio e o rubor da cantora. A orquestra delirou e meteu o turbo.


Maria João e Mário Laginha lançam álbum com orquestra

“Turbo junkies”


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Uma vez mais, Maria João e Mário Laginha surpreenderam. Acompanhados por uma orquestra, exploraram em “Lobos, Raposas e Coiotes” novas possibilidades oferecidas pela sua música, em temas brasileiros e improvisações que ganharam novo espaço para voar. A cantora explicou ao PÚBLICO as razões físicas que, em absoluto, a impedem de usar as mesmas técnicas de Bobby McFerrin.
PÚBLICO – Porquê “Lobos, Raposas e Coiotes” e não “Chimpanzés, Gorilas e Orangotangos” ou “Papagaios, Catatuas e Araras”?
MARIA JOÃO – É um nome bonito. Não soa bem? E são animais bonitos, alguns deles em vias de extinção. É um título romântico. O Mário tocou o título-tema pelo telefone. Fez-me lembrar logo lobos, raposas e coiotes em liberdade…
P. – De quem partiu a ideia de um disco com orquestra?
MÁRIO LAGINHA – Já há muito tempo que tínhamos estes desejo, mas em que a orquestra tivesse um papel diferente do habitual. Não queríamos um ou dois solistas e a orquestra por trás a servir de fundo, aquilo que, na gíria, chamamos “a cama”. Pensámos num papel mais interveniente.
P. – Ao escrever para orquestra sentiu alguma espécie de poder, por ter à sua disposição uma massa sonora de enormes dimensões?
M. L. – Pode haver essa sensação de poder mas depois fica a sensação de saber que já tanta coisa foi escrita… Tive a preocupação de não ter que ser original, ou pelo menos, de chegar à originalidade pelo lado racional, formal, pôr um fagote a fazer uns agudos e as flautas uns graves… Preferi pensar na nossa música num contexto orquestral.
P. – A Maria João estava habituada a cantar em duo, trio ou quarteto. Como é que se sentiu? Cantava com três ou quatro músicos da orquestra de cada vez e depois chamava o grupo seguinte?
M. J. – Foi assustador. Não tanto pela massa sonora, mas por ter tanta gente no palco ao mesmo tempo, com os olhos postos em mim. A cantora tem sempre responsabilidades acrescidas, está sempre à frente, a desgraçada… [Risos] Depois, detesto ensaiar e ter pessoas a assistir aos ensaios. Para mim, ao princípio, foi ter ali 90 pessoas, de outro país, que não conhecia, a olhar para o meu ensaio. Tinha o coração aos pulos.
P. – Imagino o que terá sentido nas partes em que improvisou com o seu “scat” bastante pouco ortodoxo…
M. J. – Nessas alturas foi quando me senti melhor. Bem, estive o tempo todo a corar, coradíssima. Mas é um pouco a minha característica, quando aparece uma situação difícil que tem que ser feita, vou em frente. E improvisar é a situação de que mais gosto.
P. – O maestro, Arild Remmereit, teve um papel ingrato?
M. L. – Foi porreiro. Gostava de outros tipos de música, de rock, inclusive, e cantava. Quando os outros não se entusiasmavam tanto como ele, desatava a gritar: “Men, now let’s turbo! Turbo!!”
M. J. – Até porque costuma haver sempre nas orquestras um grupinho mais conservador, com a sua rotina diária, sempre de pé atrás. Havia dois canastrões mesmo ao meu lado, muito eles falavam um com o outro. Uma delas – era mulher – dizia em alemão que parecia um “kindergarten” (jardim infantil), com o maestro aos pulos lá em cima e aos gritos: “Turbo now!” E eu a dançar, durante os solos…
M. L. – Para eles foi um mundo novo. Ela começou a improvisar e eu a tocar um compasso sete por quatro, estava complicado. Mas aquilo começou a andar, ela fez o improviso e, quando chegou ao fim, desataram todos a bater palmas. Ficaram loucos. Criou-se um ambiente de trabalho óptimo. Fizemos o disco em três dias, atendendo a que era ensaiar e gravar a seguir.
P. – Por que razão gravaram com uma orquestra alemã? Não havia orquestras portuguesas à altura?
M. L. – Para as pessoas não pensarem que houve da nossa parte snobeira, tentámos e lutámos para que fosse uma orquestra portuguesa e para que o disco fosse gravado cá. Só que ficava mais cara a orquestra e o estúdio. Os produtores ainda andaram a ver estúdios, mas os que havia, ou não cabia lá uma orquestra ou havia sempre qualquer coisa em mau estado…

Pendurados

P. – Num álbum com sete temas, dois são de compositores brasileiros: “Beatriz”, de Edu Lobo e Chico Buarque, e “Asa branca”, de Luís Gonzaga. Simples coincidência?
M. J. – “Asa branca” andava comigo há uma quantidade de tempo, já o tinha cantado a solo, em contextos muito experimentalistas. Finalmente descansou nessa forma, com o piano. Este tema, com aquele tom todo do Nordeste, é mesmo a minha cara. “Beatriz” é um amor nosso e uma das canções mais amadas no Brasil. É um primor, uma obra-prima, mas também um desafio já que exige uma extensão vocal razoável.
M. L. – Toda a gente nos perguntava em que disco é que estava “Asa branca”. O Joel Zawinul, dos Weather Report, chegou um dia ao pé de nós, entusiasmadíssimo: “Man! I love that song! This is music!” Era um dos nossos ex-libris ao vivo. Acabámos, num disco com orquestra, por fechar com este tema, em duo. Mas já estamos a pensar em fazer o próximo disco só com cantores e instrumentistas brasileiros. Gostaríamos de contar com o Gilberto Gil e o Lenine…
M. J. – Mudei de agência, na Alemanha, que passou a ser a mesma do Joe Zawinul. A primeira coisa que fizeram foi mostrar ao Joe Zawinul o “Cor”: “Ouve lá esta cantora!” O gajo ouviu e convidou-me para cantar com ele. Foi uma doidice. Vim do Senegal, passei por Lisboa, 24 horas sem dormir, parti para Colónia, para entrar em dois espectáculos filmados sobre a vida dele. Cheguei lá às oito da noite, sozinha, para ele me dizer que não tínhamos tempo nenhum para ensaiar. Limitou-se a um “See you on stage!”. Eu sem dormir, de repente desaguo naquele homem, um ídolo. Ainda pensei que ele fosse anunciar-me, eu começava a cantar e ele ia atrás de mim. Mas cheguei ao palco e mal peguei no microfone ele começou a tocar. Já anda há mais tempo nisto do que eu… [Risos] Fizemos uma coisa absolutamente sem rede. Ficou gravado e ele vai usar o material no seu próximo disco. Sem qualquer tratamento adicional. “Vamos chamar a isto ‘See you on stage’.” Ficou mesmo assim.
P. – Maria João, alguma vez encarou a possibilidade de fazer um disco “clássico”, só com canções, sem o tipo de experiências a que nos habituou?
M. J. – Chateio-me se não puder dançar com os sons, se não puder dançar eu própria. Era mortal, todos os dias cantar a mesma canção, da mesma maneira. Poder improvisar, usar a minha imaginação mais doida, é vital. Uma vez perguntei ao Mário como é que ele me definiria como cantora. Ele respondeu: “Tu podes fazer tudo!” Se me impedissem de fazer esse “tudo”, dava-me uma coisinha má. Acho que morria de tédio.
P. – Na nova versão de “Várias danças”, que já aparecia no álbum “Danças”, a Maria João faz o “número” vocal do Bobby McFerrin?…
M. J. – Isso nem vem do Bobby McFerrin. O meu primeiro inspirador foi o Al Jarreau.
P. – Nunca bateu no peito, como ele faz, para criar aquele efeito vocal?
M. J. – É que, precisamente, eu tenho peito e era capaz de ser um bocado doloroso. [Risos.] Sentir-me-ia mal ao fim de uns quantos concertos! O Bobby McFerrin imita outros instrumentos, no que é absolutamente genial, eu procuro sons vocais esquisitos, vou até onde a voz pode ir.
P. – O vídeo promocional que fizeram para este disco é bizarro, aparecem pendurados no ar a cantar e a tocar…
M. L. – O ponto de partida foi um espectáculo ao vivo semelhante, que demos no rockódromo do Caramulo, com o piano pendurado e fixo, para eu poder tocar, ela também pendurada…
M. J. – No vídeo, estou a 15 metros de altura, sobre o Tejo! Pendurada como se faz com os gatos. Fiquei com umas feridas de lado. E da primeira vez enjoei, estava excitadíssima e não tinha comido o suficiente…