pop rock >> quarta-feira, 03.02.1993
Três Cantoras Debatem Música Portuguesa No Feminino
CANTOS DA ALMA SENTIDA
Reunimos o trio de ouro das vozes portuguesas. Para Maria João, Teresa Salgueiro e Filipa Pais, o prazer de se saberem cúmplices juntou-as quase imediatamente nos cantos que encheram os corredores do PÚBLICO. Em jeito de antecipação de um projecto antigo de Filipa Pais e Teresa Salgueiro, baseado nos temas populares recolhidos por Michel Giacometti. Maria João, por seu lado, vai continuar a cantar pelo mundo fora com músicos de excepção: Aki Takase, Lauren Newton, Marilyn Mazur e Bobo Stensson. Alheias ao tempo e ao lugar, quando finalmente, se sentaram para falar das coisas que bordam a sua música, as horas anteriores já tinham acendido a chama. Entre a descoberta de dificuldades e entregas comuns, afirmaram-se intérpretes rodeadas de excelentes profissionais e defenderam a dignidade da música que lhes sai da alma e das vísceras. Entre a diversidade das suas imagens e personalidades, a felicidade de estar em palco arrebata-as para lá da indústria e dos seus contos imorais. Vozes de corpo inteiro partilhadas com quem as ouve, esquecidas da pequenez de um país provinciano.
No final deste encontro de raparigas, entre a promessa de um jantar e a troca de gravações de temas queridos, Maria João, Teresa Salgueiro e Filipa Pais tinham afirmado com emoção a intenção de abrir caminhos. É isso que anima os seus cantos. Soltos, instintivos, cristalinos e interiores. Porque de cantoras e mulheres de alma à superfície.
Maria João, Teresa Salgueiro e Filipa Pais contaram ao PÚBLICO segredos, riscos e estratagemas. E algumas fraquezas. Falaram de si e dos homens. Do que é ser mulher e cantora em Portugal, um país provinciano, reconheceram, onde “fica tudo uma coisa caseira”. E onde nem tudo é o que parece.
PÚBLICO – Em Portugal, na música popular, há poucas compositoras. O homem compõe e a mulher interpreta?
FILIPA PAIS – A mim, neste momento, apetece-me mais interpretar que mostrar as minhas coisas. Não me sinto ainda pronta para mostrá-las… Os homens se calhar são mais libertos…
MARIA JOÃO – É mais uma questão de pessoas, de sensibilidades. Há mulheres muito brutas e homens muito sensíveis. Eu componho quando estou a cantar. Quando improviso estou no fundo a compor. Agora, pegar num tema desde o princípio da composição, acho um disparate. Como estou rodeada de músicos excepcionais, tudo o que eu possa compor será sempre inferior ao que eles podem fazer e fazem excelentemente. Muitas vezes os temas nem sequer são para mim mas eu agarro neles e “roubo-os”…
TERESA SALGUEIRO – É isso. E talvez venhamos todas a compor nos tempos mais próximos. Era uma coisa que eu gostava de fazer. Não sei é quando…
M. J. – Os meus ídolos são três mulheres que nunca foram compositoras – a Maria Callas, a Maria Teresa de Noronha e a Elis Regina, que são apenas intérpretes.
P. – As instrumentistas também se contam pelos dedos… Uma questão de educação? De comodismo?
F. P. – Penso que é uma questão de educação. Eu vejo agora, que estou no Conservatório, que há imensas raparigas com boas vozes, com vontade, mas que não arriscam, estão sempre à espera de qualquer coisa…
M. J. – A voz é um instrumento como outro qualquer. Eu não toco piano, pois não, mas toco cordas vocais.
F. P. – Leva-se para todo o lado…
T. S. – O pior é que enquanto num piano afinado se toca um “mi” e sai um “mi”, nós, se estivermos cansadas, queremos cantar o “mi” e às vezes sai um “ré” sustenido…
P. – Em Portugal as grandes vozes pertencem a mulheres?
T. S. – Existe uma tradição de música portuguesa cantada por mulheres. Muitos mais do que por homens. Embora haja o caso do Alentejo, dos fadistas de Coimbra…
M. J. – Acho que sim, vozes femininas é que é! [Risos.] Em Portugal há mais boas vozes femininas do que masculinas. Não no conceito que normalmente ouço dizer – “o fulano tem um vozeirão, uma extensão enorme e não sei quê”. Por exemplo, o Carlos do Carmo, que é um excelente cantor, tem uma extensão pequenina, mas diz tudo, está lá tudo…
P. – Haverá da parte da mulher uma identificação mais fácil entre a voz e o corpo? Será a voz o instrumento ideal feminino?
T. S. – Isso acontece em qualquer cantor, penso eu. O que conta é a interpretação que se consegue dar às palavras, aos sons, seja ao que for. A alma com que se entrega ao que está a fazer.
M. J. – Olha, o Marco Paulo tem uma excelente voz…
F. P. – Dentro do estilo é o maior!
M. J. – Um cantor tem que ser como um atleta, tem que estar preparado. É o corpo todo que nós usamos como se fosse um instrumento.
Aquecimentos
P. – Vocês desde que chegaram ao jornal não pararam de cantar, como se fosse a coisa mais natural do mundo. É difícil imaginar cantores homens a fazerem o mesmo…
F. P. – Talvez nos envolvamos mais…
M. J. – Uma vez perguntei a Lauren Newton (com quem ando a trabalhar) como é que ela aquecia a voz. Ela procede de maneira diferente da habitual. Já a Jay Calyton faz o aquecimento de uma forma tradicional. Depois quis saber como é que faz o Bobby McFerrin. A Lauren respondeu-me: Ele não aquece, está sempre a cantar, o dia todo!” E é o gajo que faz aquelas acrobacias todas… Está sempre quente!
T. S. – Embora o masculino e o feminino tenham diferentes sensibilidades.
P. – As mulheres entregam-se mais? Há maior interiorização no canto?
M. J. – Se calhar nós temos mais cuidado com o instrumento… Ou será porque somos umas tagarelas? [Risos]. Porque gostamos de abrir a boca e dizer coisas?
Pernas Ao Léu E Os Manéis De Bigode
P. – Em palco vocês são cantoras mas também mulheres. Será possível existir uma Madonna à portuguesa?
M. J. – Eu acho a Madonna altamente, uma excelente profissional, curto imenso o que ela anda a fazer.
F. P. – Ninguém a critica, ela dá a volta…
P. – Não responderam à questão…
T. S. – A Madonna é mesmo Estados Unidos.
M. J. – É, os Estados Unidos funcionam muito nessa base, do produto, da encenação, do que se vê e do que se diz.
P. – Mas ela liga de forma explícita a sexualidade e a voz. É possível fazer o mesmo em Portugal?
M. J. – Mas cá há cantoras que também fazem isso. Normalmente cantoras mais ligadas à área do nacional-cançonetismo que andam sempre impecavelmente de perna ao léu, maminhas bem feitinhas, todas a mostrarem-se… É a tal componente sexual. A Cândida Branca-Flor, a Alexandra… Se repararmos bem, elas têm um cuidado extremo com o que vestem, como se apresentam, mini-saias não sei quê. Muito mais do que nós.
T. S. – Eu nunca seria capaz de cantar de mini-saia.
P. – De vocês as três, a Maria João parece ser quem mais assume essa componente…
F. P. – Perfeitamente! Tu és m ais liberta.
M. J. – Eu? Eu? [Risos]. Às vezes não é nada bonito de se ver – faço caretas…
F. P. – Mas isso é que é bonito.
M. J. – Muitas vezes a gente vê na televisão o malfadado “playback”, e as pessoas depois notam. O leigo, que está em casa, diz: “Ah, aquela está tão bonita, tão agradável de se ver!” Depois vem um concerto ao vivo e é terrível, a pessoa torce-se, tem as veias salientes…
T. S. – Quando canto determinadas coisas sinto-me diferente, mais “sexy”, mais triste, mais contida, mais atrevida, conforme a música.
P. – … A Teresa tem uma imagem discreta, mais sóbria…
T. S. – Mais quietinha!… Mas tem a ver com o tipo de música e com a personalidade.
M. J. – Mas aquilo que eu faço não é de propósito. Estou lá e é assim que sai. Sinto uma felicidade tão grande por estar em palco…
P. – Quando estão em palco, têm consciência dos olhares que recaem sobre vocês? Dos olhares masculinos, por exemplo?
M. J. – Masculinos e femininos, atenção! Mas eu nunca olho para o público. Imagina que estás a cantar uma coisa incrível e olhas para um Manuel à tua frente que se está a assoar… [Risos]
F. P. – Eu prefiro nem olhar para um Manuel de bigode! [Risos.]
T. S. – Não estou a pensar se aquele está a olhar para mim, a reparar na minha cintura… Mas penso se são homens ou mulheres que me estão a ver.
F. P. – É uma massa enorme e assustadora…
M. J. – … Que nos dá uma pressão e uma felicidade imensas!
F. P. – Eu estou ali no meio daqueles quatro irmãos Salomé, dos Lua Extravagante, de bigode (risos). São uns companheiros fantásticos e meus amigos. Mas é evidente que sinto qualquer coisa quando entro em palco.
M. J. – No vosso espectáculo da Aula Magna levaram bastantes assobios (risos).
F. P. – Eu ouvi.
Contos Imorais
P. – Quem as ouvir falar, assim amigas diria que não existe qualquer rivalidade entre quem trabalha neste ramo. É mesmo assim, não há competição?
T. S. – Cada vez mais as pessoas se querem juntar para aprender umas com as outras.
M. J. – É saudável. Não há competição, é na boa. Fulana está a cantar e pensa “Não sou ninguém se não cantar como ela canta.” Mas rivalidade, rivalidade, acho que não existe.
P. – Dentro da indústria, quais são os vícios e virtudes?
F. P. – Virtudes, a existência de bons compositores e grandes ideias. E estão a criar-se condições para que as pessoas possam trabalhar cada vez melhor.
M. J. – Vícios, de venda e de mercado. Acho que a indústria está viciada em certos padrões de comprar, vender e promover, o que acaba por condicionar os músicos e os cantores. Embora no meu caso as coisas sempre tenham sido mais fáceis, justamente por ser mulher.
F. P. – Às vezes é complicado, porque… não sei se quero dizer isto…
M. J, T. S. e PÚBLICO – Diz lá!
F. P. – Às vezes há coisas que acontecem mais facilmente se…
P. – Como? Propostas, digamos, de índole não propriamente artística?
F. P. – Por exemplo. Há coisas que parecem tomar um caminho porreiro até certa altura, a amizade e não sei que mais, até que chega um momento em que afinal é mais qualquer coisa. Se tu dizes que não, deixam-te cair.
M. J. – Nesses casos também não interessa. Se alguém te quer usar para fazer não sei quê, esse alguém também não te vai servir para mais nada.
P. – Não chegando a casos tão extremos, poderá dar-se o caso de a indústria pensar em primeiro lugar numa imagem apelativa que possa vender – e menos na música?
F. P. – Evidentemente que pensam logo nisso.
T. S. – A mim não me passa pela cabeça.
M. J. – Ai é, pensam não sei quê? Fixe! Vou aproveitar-me disso. Se alguém acha que me pode vender porque sou mulher, por uma imagem, não me vai pôr as mãos em cima de certeza absoluta, se eu não quiser. Então vou aproveitar-me dessa ingenuidade para poder fazer as minhas coisas. Se uma pessoa olha para nós e diz: “Vou comer esta querida” (risos), eu só tenho é que lhe dar a volta. Se, por exemplo, um produtor me disser: “Vou promover esta mas quero algo em troca”, eu, na troca, não lhe vou dar coisa nenhuma. Se calhar não devia estar a dizer isto.
F. P. – Acho que é uma questão de tacto. Se apostarem em mim, não vou dar nada em troca que não seja o meu trabalho. As coisas depois avançam ou não.
Primeiro Passa-se A Roupa A Ferro
P. – Em Portugal assiste-se presentemente ao fenómeno da reciclagem musical – pessoas que já andam nisto há muito e se juntam para formar novos agrupamentos. É possível acontecer um equivalente feminino?
M. J. – Era bom as pessoas juntarem-se. Lá vou eu ter que falar nos Resistência, dos quais não gosto nada. Penso que é uma forma inteligente de sobrevivência, de sobrevivência a um alto nível, pois aquilo vende imenso. Mas há outras hipóteses das pessoas se juntarem. Por exemplo, aquilo que nós fizemos [espectáculo de Maria João com Lena d’Água, Xana, Teresa Salgueiro e Anabela Duarte realizado em Novembro de 1991, no Teatro São Luiz, integrado nos Festivais de Lisboa]. Foi diferente – um encontro por prazer.
F. P. – Há um projecto meu com a Teresa, mas não quero falar antes de as coisas acontecerem.
P. – Conseguem conciliar a vossa carreira, cheia de “timings” e digressões, com a vida familiar?
M. J. – Tenho uma criancinha, um rapaz quase com três anos, e é muito difícil para mim estar longe dele. E ele começa também a sentir a minha falta. Passada uma semana fora fico doente de tristeza, começo a embirrar com toda a gente, sou mal educada, chego mais atrasada que o costume…
T. S. – Atrasada? Tu também?…
M. J. – Uuii!…
T. S. – Ah, que alívio…
F. P. – Eu estou a melhorar.
M. J. – Mas a gente não chega atrasada por falta de respeito. Eles [os músicos] quando chegam tarde é porque ficaram sentados na cama a ver televisão (risos). Sei que é assim porque tive essa experiência na minha última “tournée”. Eles, coitados, já estão mais que escaldados com os meus atrasos, de maneira que eu chegava a horas, num esforço sobrehumano, e acabava por ficar à espera que eles viessem. E eles, naquela: “Ela deve estar atrasada.”
P. – O atraso sistemático é o arquétipo feminino desconhecido?…
M. J. – Nós temos mais coisas para fazer do que os homens. Os homens fazem a barba, tomam banho já está. Nós tomamos o banhinho, secamos o cabelo, que é comprido, pintamos os olhos, estamos quase a sair e pensamos: “Será que estamos bem, será que vou vestir isto ou não vou”…
F. P. – A mim o que me acontece é que arranjo sempre qualquer coisa – não gosto de sair de casa e deixar a cama por fazer. O homem está-se nas tintas.
M. J. – Eles chegam aos concertos, fazem o ensaio de som, depois vão para o quarto, vestem-se em cinco minutos e estão prontos. Enquanto nós, eu pelo menos, deixamos a roupa na cama, dobrada e passada a ferro com um ferrinho minúsculo, o que dá umas dores nas costas atrozes, numa posição não de todo ideal para quem vai cantar a seguir. Depois, lavar a cabeça, as pinturas… É um “stress” enorme (risos).
F. P. – Eu começo sempre a preparar-me umas duas horas antes…
T. S. – Também eu.
M. J. – Nem tenho tempo para comer.
F. P. – Normalmente eles vão jantar enquanto eu me vou pintar. Até porque cantar com a barriga cheia… Eles também não gostam.
M. J. – As pessoas pensam que os cantores, os músicos, levam uma vida altamente, vão curtir, vão ver o país – “rica vida, rica vida!”
F. P. – Mas é deitar cedo e cedo erguer!
As Luzes
P. – Afinal sempre dão uma importância decisiva à imagem…
T. S. – Evidentemente. Arranjo-me e pinto-me para me sentir bem.
F. P. – Nos tempos que correm, a imagem é cada vez mais importante. Por altura do 25 de Abril, em 74, lembro-me que as pessoas cantavam como se fosse uma luta. Hoje isso está um bocado morto. As pessoas agora querem é luzes, grande espectáculo.
M. J. – Num concerto estamos em frente das pessoas e temos que nos sentir bem connosco próprios.
T. S. – É uma espécie de máscara que resulta para eu estar à vontade em frente a uma multidão que está a olhar para mim, e que não possa dizer mal dos sapatos ou achar o penteado esquisito…
P. – Nesse aspecto, as cantoras portuguesas também não primam pela ousadia…
F. P. – Não concordo. A Xana, por exemplo, não tem uma imagem clássica.
M. J. – A Anabela Duarte é bastante extravagante.
P. – O negócio, e não só, da música em Portugal poderia comportar excessos do tipo dos cometidos por Sinead O’Connor?
F. P. – Se for uma coisa que faça sentido…
M. J. – O que é isso de excesso?
P. – No sentido de provocação. Lá fora há uma mediatização e assimilação por parte da indústria. Mas num país de brandos costumes como é o nosso?…
M. J. – Se aparecesse cá uma mulher assim, na província chacinavam-na! Quanto à indústria, é Lisboa e Porto e pouco mais.
P. – Somos um país de provincianos?
F. P., M. J. e T. S. – (em coro) – Acho que sim!
M. J. – Somos um país pequeno, conhecemo-nos todos uns aos outros. Conhecemos os críticos, eles conhecem mais não sei quem, fica tudo uma coisa caseira.