Maria Bethânia – “Maria Bethânia, Ontem, No Coliseu De Lisboa – Matéria Essencial”

Cultura >> Domingo, 31.05.1992


Maria Bethânia, Ontem, No Coliseu De Lisboa
Matéria Essencial

ELA não é bonita, longe disso. A testa, o nariz, enfim… Depois começa a cantar e começamos a vê-la de outro modo. Reparamos que há um encanto secreto. Que a voz vai modelando o corpo e o corpo a voz. Num todo. E quando damos por isso já nos deixámos encantar, por gosto e sem remédio, pelo canto da sereia.
Com Maria Bethânia, sexta à noite, no Coliseu dos Recreios, foi assim. Um encantamento crescente. O domínio absoluto do palco e da multidão em frente, de tgodas as idades e conhecedora de cor de muitas canções, que encheu o recinto. A noite era de gala, o Preseidente da República esteve presente (no final aplaudiu de pé, juntando-se à euforia geral), tudo correu como deve correr um bom concerto. E foi um bom, um óptimo concerto, aquele que a artista brasileira proporcionou.
A voz não será a mesma de outros tempos. Amadureceu. Perdeu em potência o que ganhou em sageza e subtileza. Durante cerca de hora e meia, a cantora passeou todo o seu talento por um reportório que incluiu cançõea antigas, das que toda a gente conhece, com as do novo álbum, “Olho d’Água”, ecologista e astral, muito à maneira brasileira. A música fluiu aquática. Sempre variada, sempre apoiada em arranjos diversificados, uma volta pelos trópicos da inteligência e da emoção.
Maria Bethânia viajou do intimismo às tonalidades mais dramáticas. Sorriu como uma menina e quase chorou. Abriu os braços, deixando cair para a frente a farta cabeleira, que é das coisas mais “sexy” que tem, do ponto de vista carnal, claro. Correu descalça de ponta à ponta do palco, fazendo esvoaçar o vestido (o segundo que envergou, o primeiro era prateado, clássico) longo e decotado, azul turquesa bordado de estrelas com um sol ao peito que fulgia. Correu e cantou como o vento e a terra. Matéria essencial, a voz. Sem concessões. Das entoações “jazzy” de salão, às palavras declamadas, dos duetos com o contrabaixo às danças com o piano e a percussão. Da oração e do fado de Amália, “essa estranha forma de vida”, da luzia lusíada que fala do poeta Pessoa, a um bolero, ao baião e ao samba com que fechou, em euforia, uma actuação a roçar a perfeição. Explode coração. O dela explodiu. E o da assistência em peso, rendida, que acabou em pé, a dançar e a cantar, presa no sortilégio que a cantora soube tecer de forma imperceptível.
Renda-se homenagem aos músicos da banda, um portento de incisão e de profissionalismo, sabendo, quando necessário, deixar o sil~encio ocupar o seu lugar, retirando-se num acompanhamento discreto ou libertando-se em “feérie” de comunicabilidade colectiva, como aconteceu no instrumental que deu tempo a Bethânia de mudar o vestido.
Surpreendente, como se vê, a todos os níveis, o concerto de Maria Bethânia no Coliseu: na teatralidade interiorizada, na progressão exacta de temas, que ora jogavam com a memória ora introduziam o elemento de novidade do álbum novo. Sem quebras nem momentos mortos. Implacável, mas levando-nos pela mão, a ver devagar as paisagens dos lados. Como um rio que lentamente vai da nascente até à foz e no final nos revela o oceano inteiro. E reparar que a beleza de Bethânia é a tal matéria essencial, o cristal de água que descobre na canção. “Em baixo da terra. Em cima o céu. No meio a ideia.” Maria Bethânia dançou entre os três mundos.

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